quinta-feira, 29 de maio de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 13


– BONS NEGÓCIOS –
São sete horas da manhã. Vai chegando à “Fazenda Apuizeiro” o grande e novo barco denominado “Jutaicica”, que um tripulante imobiliza nos esteios da maromba onde o gado se espreme. Como o rio está sereno, sem ondas que sacolejem a embarcação veloz, pode-se permitir a manobra, sem ameaças de avarias no curral. Havendo interrompido os serviços de carpintaria que reiniciara dentro de casa, Antônio observa a cena, quase tão curioso quanto a família, uma vez que novidades assim animam o ambiente alagado, modorrento e sem graça da várzea.

Silenciando o motor de duzentos cavalos, desembarca um cavalheiro alto, espadaúdo, com uma pasta de couro na mão esquerda. Usa bermudas vermelhas, camiseta branca, de mangas, e sandálias de borracha. Um chapelão de palha, do artesanato santareno, cobre-lhe a cabeça. Mas uma calva se exibe ridicularmente quando, de longe, o desconhecido sujeito retira a proteção e, com toda a cortesia, saúda os moradores, apoiados na cercadura do alpendre: – Salve, salve, amigos! Um maravilhoso dia eu desejo ao distindo casal e aos seus simpáticos filhinhos!

– Bom dia, seu menino! – diz Maria Flor, largando no chão, a chorar, o pimpolho de que extraiu um purulento bicho-de-pé, usando espinho de limoeiro como instrumento cirúrgico, enquanto o sério marido mal sussurra a resposta ao espalhafatoso cumprimento.

Aproximando-se devagar, o bigodudo cidadão pergunta, distribuindo sorrisos: – Que tal? Como vão as coisas por aqui? Tudo bem, não é? – É, seu cuisinha, não pode tá mas melhor – admite Maria, irônica e já implicando com o sujeito. Entretanto, pondo a mão na boca, em forma de concha, resmunga, aborrecida com o desastrado ou cruel zombador: – Eu não sei onde eu tô que não mando logo esse cachurro pra baixa da égua. Aparece lá do inferno pra vim mangar da desinquietação da gente aleia.

Afinal, a se equilibrar como pode sobre a oscilante e bem estreita ponte de tábuas, o homem chega à escada, pede licença para “entrar no palacete” e, estendendo a mão onde cintila um graúdo brilhante em reforçado anel de ouro, apresenta-se: – Sou Raimundo da Silva, comprador da firma “Jesus dos Anjos Ltda”, de Santarém. Tenho enorme prazer em conhecê-los pessoalmente, pois já ouvira as mais elogiosas referências a esta bonita propriedade de vocês.

Maria Flor, que decididamente não simpatizou com a fachada feiosa e algo cínica do indivíduo, vai explodir quando Presidente se antecipa, evitando o terremoto: – Sente nesse tamburete aí. Descurpe que tá meio sujo de tabatinga. Que mar eu pergunte: o que é que o senhô quer da gente? – Bem – fala o forasteiro, acomodando-se sobre o enlameado banquinho e pondo a pasta em cima das pernas cabeludas. Eu vim ver o que se pode comprar por aqui. Minha firma é a mais nova e poderosa exportadora de juta desta região. Mantemos também um grande frigorífico na cidade, onde vendemos carne verde, frangos abatidos e peixes.

Joga a ponta do cigarro dentro d’água e prossegue, sob os olhares atentos de todos: – Gostaria, portanto, de saber que negócio nós podemos fazer. E garanto, de saída, empenhando nisto a minha palavra de homem honrado, que faz da honestidade a sua religião: ninguém – mas ninguém mesmo! – paga tão bem como nós em todo o Baixo Amazonas. Nossa fama anda correndo longe, porque sabemos valorizar esplendidamente a labuta desumana do varzeiro oprimido.

Coçando o sinal do rosto, Antônio Presidente sorri, sem entusiasmo. Gira o braço musculoso num círculo que abrange toda a fazenda e pondera ao discurseiro cidadão: – É, mas o senhô deve saber como as coisa tão. Esse marzão tomou de conta tudinho e é um tempo muito ruim pra gente negociar. – Compreendo perfeitamente, meu irmão – diz Raimundo. A calamidade é geral, não poupa ninguém, mas por isso mesmo é que eu estou aqui, como bom amigo. Quero, acima de tudo, evitar os prejuízos de vocês e de outros agricultores e pecuaristas que ainda visitarei nesta cruzada apostólica pelos pobres.

Até então calada e muito séria, olhando sempre na cara daquele falante embarcadiço, Maria Flor dá um cascudo no menino que ainda choraminga e intervém, de mãos nas cadeiras: – Como então, seu menino? O senhô nem conhecia a gente e já tá murrendo de pena de nós... Essa é bua! Nós não tamo percisando disso, não.

Engolindo em seco, o loquaz viajante investe outra vez: – Ora, ora, não me leve a mal, distinta amiga. Minha empresa é especial, tem um fraco por pessoas carentes. Nossos diretores possuem corações muito maiores que as vis ganâncias dos lucros selvagens. Daí o prestígio que temos em toda parte, como verdadeiros e desinteressados amigos dos pobres ribeirinhos. Não esqueçam que o nosso nome comercial já diz tudo: “Jesus dos Anjos”. Procuramos ser bons como Cristo.

Preocupado com os serviços que o esperam, na ampliação da maromba doméstica, Presidente dá um jeito de abreviar o enjoativo diálogo. Receia também a potência trovejante da mulher, com explosivo sangue cearense a lhe esquentar as veias. Por isso, corta a verborragia do bigodudo: – Tá certo, seu moço, mas nós não temo muita coisa pra vender pro senhor. E pra não perder mais tempo conversando fiado, vamo dar uma ulhada na jutinha que eu tenho e, dispôs, no gado. Que mar pergunte: quanto é que o senhor tá pagando? – Bem, o boi, naturalmente, depende do estado geral. Isto a gente acerta na hora. Quanto à fibra, se for de primeira qualidade, não se preocupe: já lhes assegurei que os nossos excelentes preços matam de raiva a concorrência, sem condições de nos acompanhar – esclarece o “caridoso” homem que pisca um olho para o ressabiado caboclo e garante, rindo: – O senhor vai receber uma bolada de dinheiro de dar inveja à sua vizinhança, seu Antônio!

Saem. Maria Flor vai atrás. No meio da caminhada, Silva escorrega na estiva úmida e despenca, de cara, no lamaçal! Presidente ajuda-o a se levantar, mas a esposa e os garotos, vendo a figura do bonitão, disparam a debochativa gargalhada: – Quá!... Quá!... Quá!...

Vermelho, mais sujo que alma de terrorista, o sujeito tenta recompor-se fazendo gracinha: – Podem rir, porque a coisa foi mesmo divertida. Gente da cidade só vem fazer bobagem no interior.

Limpa-se como pode, esfrega o lenço no rosto, nos braços e se declara recuperado. Chegam ao barracão da ladainha, onde se armazena a juta salva da enchente. Correndo a vista sobre os fardos, o negociante apanha um pouco do produto, esfrega várias vezes os fiapos entre as palmas das mãos e diz, com cara de velório: – É uma pena, meu caro Antônio! O senhor perdeu praticamente toda a sua safra. A gente só vai levar isto para ajudá-los e porque é difícil se encontrar coisa menos ruim por aí, com essa água tão grande. Mas quase tudo é refugo.

A palavra final atingiu Maria Flor como uma bofetada. Com o sangue a lhe ruborizar o rosto, ela rosna, de dentes cerrados: – Refugo? O senhô tá maginando que nós vinhemo mexer com juta só este ano? Seje homem de vergonha ou nós não negoceia coisa arguma, de jeito nenhum, nem um pinto goguento o senhor tira daqui!

Tendo percebido, desde o início, que a malcriada cabocla seria um espinho em sua garganta, Raimundo da Silva reveste-se de toda a paciência. Só de pôr os olhos nos fardos, logo soube que a fibra, embora não seja excepcional, é de boa qualidade. Por isso, fingindo que não ouviu o insulto, dirige-se ao dono da casa, aparentemente mais fácil de ser iludido: – Eu levo todo o seu estoque, amigo Antônio, porque a redução da colheita, devido à enorme enchente, será considerável e a gente precisa aproveitar tudo. Quantos quilos o senhor tem aqui? – Quando nós pesemo a primeira vez, deu novecentus e dezuito – revela o varzeiro, com o chapéu encostado no peito. Mas com as quebra, deve ter diminuído arguma coisa.

– Para não desperdiçarmos tempo, vamos, então, fechar o negócio: eu lhe dou setecentos cruzeiros por tudo, sem pesar novamente, pois me basta a sua palavra, honrada como a minha. Sei que a firma perde dinheiro com esta transação, mas eu estou decidido a não sair daqui sem ajudar meus irmãos que me recebem com tanta fidalguia. – Eu não quero nem saber da sua figadia, mas vá ajudar os desinfeliz assim no inferno! – dispara Maria Flor. Pois olhe, seu cara: nós não lhe entrega essa juta por menos de mir e quinhentus cruzeiro, viu? E tamo com muita pressa, porque o Antônio tem que pelejar na maromba da casa.

– É, seu Raimundo – concorda o marido, meio encabulado com a brabeza da companheira. Nós tamo ruim de vida, eu tenho que pagar umas conta na cidade e comprar madeira, mas o preço do senhô tá muito vagabundo. Assim não dá.

Com a estratégia inteiramente pronta, o escorregadio comprador oferece: – Dou, então, novecentos paus pelo produto. É muito, meu irmãozinho, pois a juta não presta.

– Pois se tá pudre, não presta, deixe ela aí e vá simbora! – metralha a madame. Ninguém convidou o senhô pra butar defeito nas coisa aleia. Inda mas essa! Como nós percisa de dinheiro, vamo acabar logo com essa chatice que tá me enjuando: pague mir e duzentus cruzeiro e mande embarcar essa porquera. Vute! Que peste de homem!

Sorrindo para a zangada senhora, Silva fala-lhe em tom amistoso: – Está fechado o negócio! Mas a minha comadre é fogo mesmo, hein? Deus ainda há de mostrar a vocês como fui generoso. É a primeira vez que “Jesus dos Anjos” paga uma fortuna por juta de inferior gabarito. Mas nunca me arrependi de haver agido com amor cristão.

Já tendo desabafado uma parte de sua raiva e achando, intimamente, que a venda foi boa, Maria vai saindo, calada. Na maromba do gado, outra novela de “puxa-encolhe” se desenrola. Após mais alguns desaforos engolidos, o manhoso comerciante consegue adquirir seis reses, “a olho”, sem levá-las à balança. Ele sabe que o peso fará ultrapassar bastante a importância que, evangelicamente, se dispôs a pagar: seiscentos cruzeiros por cabeça.

Embarcada toda a mercadoria, distribuindo bombons às crianças e abençoando-as, uma a uma, Raimundo da Silva aperta efusivamente as mãos do “formidável casal de arejados pecuaristas” e o garboso barco “Jutaicica” deixa a “Fazenda Apuizeiro”.

Alegres, agora, com a dinheirama em tempos tão bicudos, Presidente, a esposa e os meninos ficam, por alguns minutos, comentando as ocorrências. Riem muito da queda, que consideram merecida, de "seu Mundico", e das "poucas e boas" que ele ouviu de Maria Flor. Depois, voltam à trabalheira normal.

À tardinha, regressando da faina do capim, Zé Potoca diz aos padrinhos que, tendo levado o rádio para se distrair, ouviu a notícia de que já estão pagando, em Santarém, até dois cruzeiros pelo quilo da escassa juta e que a carne aumentou para seis cruzeiros. Na hora das mensagens para o interior, a “Rádio Rural”, de fato, confirma tudo o que o vaqueiro disse: novos preços mínimos entraram em vigor...

Não há nada que se possa fazer ante o esbulho sofrido. Os caboclos foram assaltados dentro de casa. No cocuruto do apuizeiro, um passarinho grita, como se vaiasse: – Bem-te... Bem-te... Bem-te-vi! Bem-te-vi!...

– Vai mangar da tua mãe, cachurro! – berra a dona da casa, tirando o bucho de uma piranha-caju. Porrada em cima de pobre só presta se for grande! Tisconjuro! –

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 12


– MAROMBA DE GENTE –
A “Rádio Rural” de Santarém, oráculo do Baixo Amazonas, vai envenenando o éter e as almas com as mais alarmantes notícias sobre a enchente de 1971. Na “Fazenda Apuizeiro”, todavia, já se resolveu ligar o rádio apenas em certas horas, principalmente quando há programas de mensagens para o interior, pois sempre é possível aparecer algum recado importante para a família. De fato, o receptor, acionado a pilhas, despeja, durante o dia, coisinhas estimulantes assim: – Temem as autoridades que a inundação deste ano supere a de 1953! – Ou isto: – Terríveis cardumes de piranhas devastam o gado na região do Aritapera!

– Tisconjuro! – amaldiçoa Maria Flor, benzendo-se. Esses cão que fala aí só dá recado mardoso. – Desliga, zangada, o agourento aparelho e completa: – Esses menino devia é dizer que o tar de prefeito abaixou decreto mandando o Amazona vazar logo e não ficar contando desgraceira pra gente.

O rio!... Todos se põem de joelhos ante o ditador sem entranhas, cuja brincadeira predileta consiste em infernizar, até intoleráveis limites, as vidas obscuras de tantos milhares de pessoas, que sofrem monstruosas punições pelo crime imperdoável de morarem nas várzeas.

O rio!... Se maltratasse apenas os bichos e as plantas, ninguém se queixaria tanto. Mas os padecimentos maiores, porque conscientes, estão reservados, por boçal ironia e requintes de sadismo, aos seres humanos e, sobretudo, àqueles que menos sabem, podem e devem sofrer: as crianças.

O rio!... Insulta e mata quando sobe... Ofende e assassina ao vazar... Enchendo, destrói pastagens, desaloja famílias, dizima rebanhos. Diminuindo de volume, deixa aos ribeirinhos, como diabólica herança, um rastro de epidemias que completam a devastação inacabada, terminando de aniquilar os frangalhos pensantes e os animais que se atreveram a sobreviver.

O rio!... Ah! O rio!... De tantos desesperos, de tamanhos ódios entope os corações, que provoca estranhos desabafos como o do velho Gigi Cebola que, urinando dentro d’água após mais um prejuízo, trovejou, de punhos crispados, no gesto inútil da raiva potente: – Ah! Seu bandidão covarde! Se pau-de-fugu desse jeito em ti, as coisa não ia ficar assim!

Mas o rio, embora não fale, possui os seus autorizados, competentes e cínicos porta-vozes. Quando o caboclo fechou a boca de dois dentes podres e únicos, a cinco metros de si boiaram três botos, soltando, juntos, a vaia zombeteira e humilhante: – Uaaá!...

Hoje, após um esplêndido dia estival em pleno inverno, vem surgindo, triunfalmente, a Lua cheia de abril. Numa tradição que se confirma em todos os anos, esta é a fase temida de modo especial porque as águas crescem com mais rapidez e violência, decidindo, em geral, as proporções finais da enchente.

Depois de alimentar as reses e remover um garrote que morrera pisoteado pelos demais, Antônio dá uma volta em torno da casa e, detendo a montaria, conserva-se calado, mão no queixo, a refletir sobre a séria situação. Rema novamente, entre em casa, sacode o chapéu molhado e previne a esposa: – Amanhã a gente já percisa fazer a primeira maromba aqui dentro de casa. Tá fartando uma só uma cuisinha pra água lamber o sualho por baixo. Nesses dois dias ela tufou quase dois parmo. – Vumbora – concorda Maria Flor. Tu quase me tirou a palavra da buca. Quando dá banzeiro, já ensopa tudinho aqui.

Presidente descasca uma banana e resume os planos: – Nós inda temo uma porção de maçaranduba que sobrou da maromba dos boi. Vai dar pra alevantar o estrado. Eu vou cumbinar com o Zé. – Come a fruta e vai conversar com o afilhado, lá na quitanda. Há, sobretudo, o problema crucial do corte de capim: o preto irá sozinho, no barco “Flô das onda II”. Saindo muito cedo, poderá fazer duas viagens, enquanto o fazendeiro trabalhará duramente para erguer o piso da residência.

Tudo acertado, Antônio embarca outra vez na canoa para tomar o seu banho de cuia, quando, de repente, se lembra: – Mas me diz uma coisa, Zé. Naquela hora em que o lacrau te sapecou a ferrada, tu tava me falando num tar do teu casamento, não foi? Que diabo é isso?

Risonho e meio encabulado, retruca o vaqueiro: – É, meu padrinho. Eu tô noivo com a Mundinha, aquela filha do seu Mário Catinga-de-mulata. Nós tamo mardando de se casar no verão que vem.

Sem rir, indaga o pai de criação: – Mas cumo é que tu pode tá nuivo sem namurar, rapaz? – Eu tô nuivinho da sirva, sim, senhô – confirma o galã. Quando ela veio aqui, no dia da ladainha, eu dancei dois baião esquentado com ela e disse: “Mundinha, eu quero casar cuntigo. Tu topa?” – Aí ela me ulhou bem de pertinho, virou os zóio e respondeu: “Eu topo. Faz uma semana que eu aresorvi meter o chifre no Pedro, filho da Raimunda Goiaba. Troquei ele pelo Cazuzinha, do seu Malaquia Pé Grande, mas huje nós briguemo. Fala com o papai, que nós se casa, pois eu já tô enjuada de ser mulher surteira.”

Reprimindo a muito custo a gargalhada, fala Antônio, ensaboando-se: – Toma juízo, menino! Se a Maria Flor tivesse ouvindo essas bestera, tu ia já engolir desaforo. – Joga uma cuia com água em cima da cabeça e acrescenta: – Tu não tá vendo que isso é duidice de maluco? Pra tu te casar, é perciso juntar um dinheirinho e fazer a tua barraca. E quando tu for mesmo te amarrar, não te junta com uma galinha sem-vergonha daquela, que só não namora imbuá porque não sabe quar deles é o macho.

Ouvindo, atento e sério, Potoca admite, cabisbaixo: – O senhô tá certo. Eu não tinha maginado essas coisa. Nós ia se casar no dia da outra ladainha e eu queria ficar murando ali mesmo no barracão. – Finalmente, decide: – Mas agora, quando eu for lá no forró da Raimunda Goiaba, eu vou dizer pra Mundinha percurar outro marido. Tadinha! Ela tá me esperando.

– Te esperando coisa arguma, abestado! Aquela vagabunda já te chifrou umas dez vez da ladainha pra cá. Anda logo com esse teu banho e vumbora jantar pra dormir, que amanhã tem faxina braba – finaliza Presidente.

No outro dia as atividades são repartidas, como se combinara: enquanto o negro sai no barco, Antônio começa, penosamente, a levantar o assoalho. Resolve erguê-lo em sessenta centímetros, altura que lhe parece suficiente, pelo menos por enquanto. Inicia o trabalho pelos quartos de dormir, pois levará, no mínimo, três a quatro dias para concluí-lo. Na cozinha ou na sala, eles podem caminhar dentro d’água, mas não nos dormitórios, porque o infeliz que acorda e pisa no molhado, “istupora”.

Ao anoitecer, a maromba de gente está mais ou menos adiantada, principalmente porque as tábuas são largas. Mas, voltando da labuta, Zé Potoca informa, alarmado e alarmando: – Puxa vida, meu padrinho! A Lua cheia tá de cum furça! O rio tufou mais um parmo e uma fagulha. Vute!

Antônio já tinha visto o acréscimo amedrontador. E é por isso que resolve prosseguir trabalhando, noite adentro, à luz fraquinha do candeeiro. Nesse momento já estão com cinco centímetros do Amazonas dentro de casa! O crioulo quer ajudar, porém Presidente manda que ele se recolha cedo, porque é visível o seu esgotamento.

Maria Flor e o filho mais velho auxiliam como podem. Aí pelas duas da madrugada, quando vão repousar um pouco, ainda escutam as vigorosas batidas de martelo que alguém dá, ao longe, também fazendo maromba de gente, e que soam como bofetões na cara amarela da noite de luar. Supersticiosa, a cabocla, quase cochilando, arma uma figa nos dedos e comenta: – Vute! Credo em cruz! Mar comparando, essas pancada assim fora de hora parece carpinteiro fazendo caixão de defunto. Tisconjuro!

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 11


– MAROMBA DE BOI –
Quando é bem construída, a maromba pode servir durante sucessivos anos. O mais comum, no entanto, é o pequeno criador improvisar um tosco girau para agasalhar o rebanho por ocasião da enchente, pois as madeiras boas são muito caras. Além disso, ele jamais perde a esperança de que na próxima temporada de inverno o rio não cresça demais e se possa dispensar essa antipática alternativa. É assim na várzea: vive-se de ilusão e se morre de raiva.

A maromba da “Fazenda Apuizeiro” foi preparada no último verão e Antônio Presidente andou gastando nela um bom dinheiro para fazer uma obra duradoura. O abrigo é constituído, em sua maior parte, de maçaranduba e itaúba, o que lhe confere muita resistência, tanto à corrosão da água como ao peso dos animais. Além de sólida e bem alicerçada, a moradia provisória do gado de Presidente apresenta as necessárias – mas nem sempre introduzidas pelos pecuaristas – divisões para as vacas com crias, novilhos e reprodutores. Igualmente aceitáveis são as condições de estabilidade da cerca protetora, para impedir que as reses caiam lá de cima. Ainda assim, de um ano para o outro são inevitáveis os reparos que se precisa fazer em todo o conjunto. É que, passando de três a cinco meses nesse hotel cinco estrelas, a boiada consegue fazer bons estragos na estrutura.

Iniciados nos penosos dias do corte da juta, só agora serão concluídos os serviços de recuperação da maromba. Para tanto, o fazendeiro e seu afilhado aproveitam todas as horas livres, sobretudo após o insucesso do Igarapé da Pitanga, pois o rio sobe, sobe e sobe, esbaforido como ladrão fugindo de linchamento. As reses já principiam a pastar dentro d'água, catando, inclusive, o mureru e outros magros petiscos, desprezíveis em tempos de fartura. Pior: duas vacas já foram inutilizadas por piranhas, que lhes mutilaram as tetas, e trairambóia matou um belo garrote ao lhe decepar a língua quando pastava. Por tudo isso, é preciso correr, buscando energias no medo enorme de ficar na miséria, vendo sumirem, de bubuia, na correnteza, os bens e as esperanças. E quem trabalha apavorado não se cansa. Já disseram que, durante os naufrágios, não existe melhor bomba para retirar água do barco em perigo do que um homem aterrorizado, com um balde na mão.

Finalmente, já se pode colocar a boiada no curral aquático. Mas começará também, a partir de agora e por um prazo de que somente Deus conhece a extensão, a tortura diária, pasmosamente cansativa, de alimentar um rebanho como criança de mamadeira, trazendo-lhe de enormes distâncias o capim cortado e reunido em feixes. – Eu só queria era ver, meu padrinho – diz Zé Potoca – aqueles dotô bunitinho lá da cidade metido no capinzar, no meio de furmiga, torando canarana e premembeca. – Ri e sentencia: – Aqueles cuirão fruxo não agüentava nem uma tarde!

Realmente, é um trabalhão que deveria ser ao menos assistido pelos grã-finos que, em luxuosos gabinetes refrigerados, partejam eruditas teses e elaborados ensaios, rotulando o caboclo amazônico de “indolente, vadio, alérgico ao desenvolvimento e reles bebedor de cachaça”. Nenhum desse tão operosos boas-vidas urbanos suportaria o brutal encargo de trazer, uma só vez que fosse, um batelão cheio de forragem colhida a meia légua de distância, no mínimo. Mas os “preguiçosos” varzeiros fazem isso diariamente, durante três ou quatro meses, com qualquer tempo e, inclusive, aos domingos, enfrentando fome, chuva, sol, insetos, cobras e outros ingredientes diabólicos que completam o mingau de uma terrível rotina.

Até março, o capim não está exigindo caminhadas muito longas para ser encontrado. A uma distância de meia hora de vela, se estiver bom o vento, ou a sessenta minutos de remo e varejão, em horas de calmaria, padrinho e afilhado completam o carregamento até ao meio-dia. Aproveitando a passageira abundância, vão buscar outra barcada à tarde.

Antônio não utiliza o barco “Flô das onda II” porque, além de a gasolina e o lubrificante haverem sofrido estúpidos aumentos e continuarem subindo de preço, há sempre a possibilidade indesejável de um “prego” no motor. O batelão, conduzido às custas de vigorosas empurradas com grandes varejões, possui maior tonelagem. Maria Flor e as crianças dão conta da casa, da quitanda e do resto.

A partir de abril, contudo, o pasto vai escasseando, começa a ficar coberto pelas águas. Torna-se necessário ir cada vez mais longe para obtê-lo. Mesmo acordando às quatro horas da madrugada, não podem os caboclos fazer mais os dois carregamento diários, porque remam ou velejam de cinco a seis horas para completar uma viagem de ida e volta. E o que trazem, coitados, mal dá para dividir em minguadas rações individuais, pois o alimento, a essa altura da desgraceira, tem a finalidade básica de não deixar o gado morrer de fome. Comendo tão pouco e só uma vez ao dia, as reses vão emagrecendo.

E o rio, como é que se comporta? Bem: cresce, cresce como o desespero de mãe que vê morrer seu único filho.

– Meu padrinho, o que é que essa água tá querendo fazer com a gente esse ano? – pergunta Zé Potoca. Pelo jeito, ela paresque vai deixar nós tudinho de bubuia. Vute!

De pé num dos bancos do batelão, Antônio vai recolhendo, reunindo em blocos e arrumando no casco os pés de forragem que o ativo crioulo lhe atira seguidamente às mãos.

– O diabo é que eu tô maginando me casar e...aaaiii! – esgoela-se o rapaz, interrompendo a confidência no início. – Puta merda, um lacrau me ferrou!... – Mata ele! Mata ele! – ordena-lhe, enérgico, Presidente. Mata o curno e me dá ele aqui!

Num instante está o preto com o peçonhento inseto pendurado entre os dedos da mão direita, enquanto, a caretear com as fortes dores, agita o braço esquerdo, onde uma vermelhidão vai tomando conta do polegar. Rápido, o pecuarista abre o ventre do bicho, remove o bucho e chama a agoniada vítima. – Vem cá depressa! Me dá o dedo e larga de ser fruxo feito fêmea barriguda. Tú já vai esquecer disso.

Comprime, então, com certa força, as vísceras do lacrau preto sobre a picada, pois desde menino sabe que é o melhor medicamento para esse tipo de acidente. A fazer esgares, mas contendo exclamações covardes, Zé Potoca, aos poucos, está com outra fisionomia e, alguns minutos depois, sorri, aliviado, pondo à mostra os graúdos e perfeitos dentes. – Mas ô remédio pai-d’égua! – proclama, feliz como formiga em açucareiro. Até a dor desadorada tá passando.

– Te aquieta aí um pedaço, toma um gole de café e pode pegar de nuvo no terçado – determina Antônio, enxugando o suor da testa com a ponta da camiseta. Mas se tu não tivesse matado a peste, eu ia empurrar esse batelão sozinho até chegar em casa. Ferrada de lacrau preto não tem outro remédio se não for o bucho dele. Aprendi isso com minha finada mãe.

A medicina varzeira funciona plenamente. Expliquem os doutos, se o conseguirem, como pode o bucho do lacrau agir eficazmente contra a picada, às vezes mortal, do próprio inseto. Talvez a resposta haja sido dada pelo caipira Zé Potoca, de volta à fazenda. A cismar sobre a ocorrência, ele disparou, de repente, esta pérola filosófica: – É, meu padrinho. Bucho de lacrau preto me curou enquanto o diabo espirrava. Quando Deus tira os dente dos desinfeliz, Ele alarga a goela pra comida descer depressa.

domingo, 11 de maio de 2014

Eleição da Casf: Manifesto da Chapa 2

Franqueada essa pequena aula, modesta mais útil aos noviços, vejamos o que há sobre o AUTO DE INFRAÇÃO Nº 36708-GGFIR-ANS, do qual originou-se a aplicação da multa publicada no DOU citado pelo Fiock, tomada ingenuamente como reforço da sua companha eleitoral:
• O recolhimento do valor do deposito para o Fundo Garantidor, relativo ao 3º trimestre/2008, foi tempestivamente efetivado, não obstante em valor abaixo do devido, por força de erro do cálculo elaborado pela Atuária contratada pela CASF devidamente credenciada junto à ANS. Logo não houve descuido do signatário, então Diretor Administrativo e Financeiro em fazê-lo.
• O AUTO DE INFRAÇÃO (cópia no verso) concedendo o PRAZO DE 10 DIAS para, querendo, APRESENTAR DEFESA ESCRITA, foi emitido pela ANS em 06/10/2010, três meses e seis dias depois que Fiock, por seu antecessor e seu Diretor Administrativo e Financeiro assumiram suas respectivas funções na Diretoria da CASF.
• Mesmo contando com uma Assessoria Jurídica contratada com os fabulosos honorários mensais de quase R$13.000,00 (TREZE MIL REAIS), por incompetência ou simples tropeço de um “administrador descuidado” (permitam-me o plágio), a atual Diretoria PERDEU O PRAZO RECURSAL e agora, DOIS ANOS DEPOIS, simples e despudoradamente diz que “hoje ... já vamos pagar” a multa aplicada pela ANS. Pagará, sim, purgando com o nosso dinheirinho a negligência de não ter recorrido, abdicando de um sem número de argumentos, inclusive o direito de regressão à Atuária Salutis Consultoria e Administração em Saúde Ltda.
Mesmo tendo assumido a Presidência da CASF bem depois da citação da ANS, pelo princípio da IMPESSOALIDADE NA GESTÃO, caberá ao Fiock, certamente compartilhando com o seu Diretor Adm. Financeiro, reembolsar a valor que “já vai pagar” (certamente já o fez). Cabe perguntar: se a Chapa 1 vencer a eleição do dia 16 próximo, quantas multas mais, de tamanha monta, Fiock vai pagar, fazendo do desperdício dos nossos recursos uma possível rotina?
Fiock faz ainda proselitismo eleitoreiro citando que “conseguiu aprovar no CONDEL a realização de Auditoria Independente de Gestão e Risco de todo o período de 2010/2014”. Será que o Auditor Independente contratado foi o mesmo que, suspenso por 5 anos pela CVM, “certificou” o Balanço/2013? Se assim for, cabe-nos exigir que essa contratação tenha ocorrido em regime de cortesia, de vez que os pareceres que produziu e/ou produzirá não dispõem de validade para atender os fins a que se propõe.
MADISON PAZ DE SOUZA
Candidato à Presidência da CASF pela CHAPA 2 – PARA RECONSTRUIR A CASF

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 10


– O PUXIRUM –
Quando o “Machão do Tapajós” ainda está um pouco distante, porém já reduziu a marcha, Maria Flor e as crianças ouvem um mugido. Estranhando o fato, a cabocla exclama de testa franzida: – Eras! Que marmota é essa? Tem boi vortando de vorta e meu coração bacureja que coisa bua não havera de acontecer nessa viagem.

Com uma lamparina, acompanhada pelos dois filhos maiores, dirigi-se à pequena ponte onde costuma lavar as roupas. Embora bastante fria, a noite ficou limpa e são quse nove horas. O barco já termina a atracação e ninguém, lá de bordo, se manifesta de alguma forma. Impaciente e algo nervosa, a senhora pergunta: – Que foi, gente?! Tá tudo murto aí? Tisconjuro! – Tu já vai saber! – fala, afinal, Antônio. Perpara a tua arma pra notícia mais pior que choque de poraquê.

Desembarcando, cabisbaixo, o marido informa, resumidamente, a esposa sobre o fatídico “pião”. Concluiu a conversa dizendo, resoluto, que vai sustentar perto de setenta animais em cima da maromba, dê no que der, custe o que custar.

A mulher sabe que Presidente é homem de lentas decisões, mas quando as toma e anuncia, elas são irreversíveis, desabe o mundo. Maria Flor é uma dessas criaturas rústicas, iletradas, porém com iluminações repentinas de profunda sensatez e sutileza psicológica. Tendo escutado o abatido companheiro em silêncio, com o rosto fracamente clareado pela oscilante chama da lamparina, ela percebe, num instante, toda a extensão do desastre. E põe de lado a tristeza, compreendendo que é obrigação sua encorajar o esposo arrasado. Por isso, fala com veemência: – Foi duro, sim, mas o mundo não acabou, não, homem! Nós inda tivemo mais sorte que o Noca Mucura que ontem perdeu todo o gado no meio do Amazona, quando o barco virou com aquele temporar danado que caiu. – Animada, dispara a determinação: – Nós vamo é fazer um baita puxirum pra sargar tuda essa carne. Manda o Zé Potoca no “Flô das onda II” avisar os vizinho, que vai aparecer um monte de cabuco pra ajudar a gente! Vamo, vamo, meu bem! Coisa mas pior a gente já passamo e não morremo!

Procurando olhar dentro do porão, Maria pergunta: – Vocês sangraram e tiraram o bucho de tudus? – Ante a resposta afirmativa, conclui, já andando para casa: – Nós temo muito sar aí na quitanda. Se a gente der duro mesmo, nós sargamo tudinha essa sobra do “pião”. Vumbora trabalhar!

Sim. Para tornar um pouco menor o pesado prejuízo, a única alternativa é essa de se atirarem, todos, à formidável faxina de salgar, noite a fora, madrugada adentro, nada menos de onze reses. Vencidos pelo entusiasmo da mulherzinha decidida, os três tripulantes do barco logo se prontificam a colaborar. Fornecendo uma prova imediata de sua boa disposição, reconduzam ao curral os treze animais remanescentes do desastre.

Dentro de uma hora e meia, já chegaram à “fazenda Apuizeiro” cerca de trinta pessoas. São homens e mulheres das cercanias que, tão logo souberam da desgraça ocorrida no Igarapé da Pitanga, largaram tudo e aqui estão, dispostos a fazer o que for necessário. Trouxeram facas, sal, candeeiros, café, farinha e também, naturalmente, umas garrafas de cachaça “Tenho fé”.

O espírito comunitário que vincula, nas alegrias ou nas amarguras, os simplórios e tão humanos caboclos, nesses instantes de angústia maior funciona em sua plenitude. Cada ribeirinho sabe muito bem que amanhã poderá ser a sua vez de pedir socorro aos irmãos, seja na broca do roçado, na farinhada, no corte da juta, no entaipamento do tapiri, na salga de bois mortos ou na armação da maromba. Ningué se recusa, nessas emergências dilacerantes, a dar tudo de si, a repartir o seu pouquinho, porque o estoque de selvagerias do rio é inesgotável e será impiedosamente dividido por todos. É por isso que são sempre concorridos os puxiruns ou mutirões regionais. Trata-se da soma de esforços coletivos em benefício de uma determinada família ou, em certos casos, da comunidade inteira quando se constrói, por exemplo, uma capela, um campo de futebol ou um barracão para festas.

Na parte enxuta do terreiro, arma-se o ambiente para a noturna e suarenta azáfama. Um fogaréu é logo aceso para espantar as muriçocas e o frio, enquanto facas são estridentemente afiadas na pedra de amolar da cozinha. Maria Flor propõe: – Vamo dividir direitinho as faxina, que é pra uns não atrapalhar os outro. – E conversam, repartindo serviços. Alguns são incumbidos do descouramento das reses no próprio convés do “Machão do Tapajós”, que é bastante amplo e tem luz elétrica. A outros caberá conduzir os vários pedaços seccionados para o quintal. Diversos efetuarão a salga, enquanto há quem se ofereça para providenciar o café e, mais tarde, o moquém onde será assada a “merenda” do puxirum.

Após alguns goles de cachaça, já estão os varzeiros metidos até ao pescoço na estafante atividade. E vão saindo as piadas, os “causos” que alegram o ambiente, fazendo com que o próprio Antônio termine rindo e perca a aparência trombuda. Limpando no calcão o trinchante sujo de sangue, diz Mané Carrapato: – É isso aí, cabucada! Eu só conheço duas coisa que bota pobre pra frente. É tupada e pé na bunda! – revela o gaiato, em meio às gargalhadas da turma. Presidente dá também a sua contribuição: – Dizque pobre só alevanta a cabeça quando olha avião que passa avoando. No dia em que ele come peru, um dos dois está doente.

Não podendo ficar sem meter o bedelho, Zé Potoca entra na prosa, atirando em cima de umas tábuas o quarto dianteiro que trouxe do barco: – A vovó diz que pobre só fica gordo quando morre afugado e só come carne quando morde a língua. – Assim, o tempo vai correndo, o cafezinho circula constantemente e o serviço progride muito. Às duas da manhã, Antônio pede uma pausa para a refeição – suculentos nacos de carne moqueada, com farinha e aguardente. O convite é aceito com alegria, porque a fome apertou mesmo.

Suspensos os trabalhos, a conversa mole recrudesce em torno do fogo que estala: – Esse pião de ontem não foi nada – admite Antônio. O finado Totonho Suza, na enchente de 53, tava fazendo uma travessia de quase duzentos boi quando uma ronqueira pipocou, perto dos corno. – Eu me alembro bem disso – testemunha Chico Preto. – Foi um escangalho dos diabo. Morreu quase toda a buiada, deixando o velho maluco – termina o narrador.

A ossuda Rosa Malagueta, de setenta anos, acrescenta: – Eu ajudei naquela baita sarga. Nós era umas cem pessoa, num puxirum como nunca mais eu havera de ver. Mas, seus menino, a gente não demo conta nem da metade dos boi que pegaram. O desinfeliz do Totonho chorava feito curumim. Vute!

Terminada a ceia, recomeça a trabalheira. E quando já se desenham no céu os indecisos rascunhos avermelhados de um novo dia, a tarefa está concluída. Mesmo com a farta distribuição feita por Antônio e Maria Flor aos participantes da empreitada, ainda se teve de espalhar carne por toda parte. A casa inteira e o barracão da ladainha estão trançados de varais, pois não se pode deixar nada ao relento, desde que as chuvas são diárias.

O dono da “Fazenda Apuizeiro” paga ao comandante Marreca o frete da embarcação e, entregando-lhe um paneiro com duas galinhas, pede-lhe que as leve, como presente, ao prestativo Chico Tenório. – E o que o senhor vai fazer com essa carne toda, seu Presidente? – quer saber o embarcadiço. – Daqui pra amanhã eu vendo um bom bucado dela – explica-lhe Antônio. Tô esperando um regatão que sempre pára aqui e paga direitinho. – Olha os próprios pés e reconhece: Eu esquentei a cabeça e me afubei muito no pião. Bem que nós pudia ter pegado mais umas quatro daquelas porqueira afogada. Mas já não adianta a gente se queixar. Deus quis que eu tivesse esse prejuízo e pronto. Já tô conformado.

E agora? Partiram os colaboradores, mas não se pode nem pensar em dormir. É preciso, logo em seguida, deixar a maromba externa inteiramente pronta, pois o Amazonas encheu mais dez centímetros nas últimas vinte e quatro horas. Já está bem perto da residência e o calendário pendurado na parede da quitanda, faz qualquer caboclo da várzea sentir frio na espinha: hoje ainda é o dia 12 de fevereiro! O rio crescerá durante mais três meses, no mínimo.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 9


– O PIÃO –
Cinqüenta reses – quase a metade do rebanho da “Fazenda Apuizeiro” – já se comprimem nas dependências do “Machão do Tapajós”. Numa só viagem, o comprido barco fará a remoção de todo o gado a ser transferido para a terra firme. O ideal, evidentemente, seria a passagem da manada inteira, mas, querendo reduzir as despesas com o aluguel do campo, Antônio Presidente prefere manter uma parte em cima da maromba.

É meio-dia quando a potente máquina de sessenta cavalos põe em movimento a embarcação de Chico Tenório. Presidente e Zé Potoca acompanharão a boiada. Como os pastos de Nenen Tangará ficam a duas horas de viagem, após comerem jatuarana moqueada com farinha, os exaustos caboclos estendem-se no assoalho da roda de popa. Tirarão uma revigorante soneca enquanto o experiente comandante Simão irá conduzindo o casco de itaúba pelos meandros que tão bem conhece.

Sem incidentes, às duas da tarde o barco está manobrando para encostar na Ponta do Mucuim, a quase um quilômetro dos campos de inverno. O trabalho, agora, consistirá em fazer os bois saltarem sobre a baixa amurada do barco para, em seguida, dirigi-los através dos trinta metros do Igarapé da Pitanga, que os animais atravessarão nadando. Só a partir daí e após subirem o barranco, estará desimpedido o caminho que leva aos verdejantes capinzais.

Com as cautelas que a vida e, sobretudo, os prejuízos lhe ensinaram, Antônio vai comandando cada detalhe da operação, pois ali está em jogo quase todo o seu patrimônio de pecuarista. Postas para fora todas as reses, inicia-se a marcha do rebanho.

Chega-se ao igarapé, relativamente estreito, mas muito fundo. Na canoa que serve de reboque ao “Machão do Tapajós”, o fazendeiro, auxiliado por Zé Potoca e mais dois rapazes de bordo, procura ordenar os animais, a fim de reduzir o tempo da travessia. E, aos gritos de “Ecu! Ecu!”, a manada entra nas águas frias do córrego. Em tais ocasiões precisa-se ter muito cuidado, pois um simples susto coletivo poderá provocar o estouro do gado em um fatal turbilhão. Até um peixe grande que salte às proximidades representa uma ameaça.

Subidamente, uma vaca muge, alto, lá na frente do grupo que vai nadando. Atrás, na derradeira fila, um bezerro dá imediata resposta e a mãe logo tenta voltar, na contramão, para vir ao encontro do tresmalhado filho. E o temido caos se estabelece, num instante!

Apesar de todas as precauções, uma grave falha ocorrera na disposição do gado para a travessia: um dos mamotes não havia sido colocado junto à sua nutriz. Esta, ao identificá-lo pela “voz”, procurou retornar, desesperadamente. Consumava-se aquilo que os criadores amazônicos tanto receiam nessas oportunidades: o “pião”. Consiste num violento e succionante torvelinho que, de repente, convulsiona as águas, como se fosse “terra caída”. Ao verem um companheiro do lote fazer esforços para regressar à margem, os bois que nadam resolvem agir da mesma forma. Desse confuso rodopio os resultados sempre são nefastos. – Os corno tão fazendo pião, meu padrinho! – berra Zé Potoca, assombrado. Umas dez cabeça já foi pro fundo!

Descontrolando-se e a rezar em voz alta, Antônio não sabe agir e, temerariamente, quer enfiar a canoa no meio do turbilhão. Um dos homens adverte: – Cuidado, seu Presidente! Deixe essas peste levar o diabo, mas não morra, não!

Percebendo a tempo o tamanho de sua imprudência inútil, o caboclo retrocede, com um desabafo que se mistura aos agoniados mugidos: – Meu Deus, mas que besteira eu havera de fazer! Tô tão calejado de passar essas porqueira e acabei deixando a peste dessa vaca longe do mardito filho dela!...

Em poucos minutos, mais uma arrasadora decepção acrescenta-se ao cortejo iniciado na miserável noite da “terra caída”: cessado o pandemônio e feitas as nervosas contas, verifica-se que nada menos de trinta reses morreram afogadas!

Recompondo-se penosamente, o infeliz pecuarista passa a tomar as necessárias providências. Lidera o reembarque dos animais sobreviventes no “Machão do Tapajós” e ajuda a recolher, à proporção em que vão boiando, lá adiante – pois é forte a correnteza – aqueles que morreram. Para aborrecer ainda mais o zangado varzeiro, uma barulhenta chuva começa a cair enquanto eles se desgastam na cansativa batalha para ao menos diminuir o vultoso prejuízo. Quase a sussurrar, o caboclo repete, vezes sem conta, a frase predileta de Maria Flor em ocasiões assim: – Porrada em cima de pobre só presta se for grande... Porrada em cima de pobre só presta se for grande...

Ao escurecer de uma noite que ameaça ser muito fria, apenas onze unidades, foram, a duras penas, postas a bordo, dentre as trinta reses que se afogaram. Enquanto vai auxiliando na sangria e na remoção das visceras, para impedir que a carne se decomponha mais rapidamente, Antônio ordena: – Vumbora, seu comandante! Toca pro rumo de casa! – E o resto, seu Presidente? – pergunta Marreca. A gente temo esbagaçado de tanto pelejar, mas inda dá pra pegar mais uma quatro. – O resto fica aí pro diabo merendar com a mãe dele, as piranha e os urubu! – responde Antônio, com muita raiva. Eu não quero mais nem notícia dessas peste! Vumbora! – E o senhor não vai mais deixar nenhum na terra firme? – insiste o espantado embarcadiço. – Olhando firmemente o interlocutor, o magoado varzeiro revela toda a sua ânsia de encerrar o irritante diálogo: – Eu não vou mais passar praga arguma! Dispôs dessa desgraceira de hoje, resorvi agüentar todo o meu gadinho em cima da maromba, até Deus ter pena da gente e fazer o filho duma égua desse rio vazar! Desamarra essa pitomba e vumbora!

Com a morte na alma, imundo de lama e sangue, o dono da “Fazenda Apuizeiro” prossegue trabalhando, de faca em punho. Ninguém se atreve a tecer qualquer comentário, pois o desastre foi terrível. Todos mantêm aquele silencioso e solitário pudor ante a imensa mágoa alheia, discrição habitual nesses inconsoláveis coices da vida.

Enquanto o “Machão do Tapajós” engole as distâncias e vara os furos barrentos, o ruído de sua máquina ecoa na mataria das margens e se perde no coração da escura floresta. O barulho monótono matraqueia lugubremente, como cantilena sinistra de funeral: – Catraque!... Catraque!... Catraque!...