segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Entrevista de Gilmar Mendes

O sr. já disse que há um “assanhamento juvenil” na discussão do foro privilegiado. O debate está equivocado? 
É necessário o debate para se encontrar uma justa conformação. Quando se fala que “o grande problema do Brasil é o foro privilegiado”, é irresponsabilidade. Porque a Justiça criminal do Brasil tem um grande defeito: só 8% dos homicídios são desvendados no Brasil. Os processos não andam em várias instâncias. As pessoas só são investigadas quando passam a ter foro privilegiado. Quando estavam nos seus Estados, não eram investigadas ou as investigações não davam resultado. É uma grande irresponsabilidade apresentar a supressão do foro como panaceia. Não que o sistema não precise ser aperfeiçoado.
A quem caberia fazer esse aperfeiçoamento?
Ao Congresso, com uma proposta de emenda constitucional. 
Parlamentares ameaçam retirar o foro privilegiado de magistrados e integrantes do Ministério Público caso o STF restrinja o foro de políticos. É retaliação?
É uma forma de diálogo. Agora, eles têm razão: se se quer acabar com o foro, é para todos. Os juízes respondem perante tribunais, desembargadores respondem perante o STJ (Superior Tribunal de Justiça). Falam de 22 mil autoridades, ora bolas, são 17 mil juízes, quantos membros de Ministério Público? Começa por aí. Por outro lado, a ideia do foro não é para proteger a pessoa, é para proteger a instituição.
A julgar por suas críticas, o Supremo Tribunal Federal está se metendo demais nos outros Poderes e até dando a impressão de que está governando o País?
Se quiser governar, tem de discutir isso com a população, porque não é essa a função do Supremo. Decisões erráticas certamente não traduzem um bom governo. Em questões delicadas, na relação de Poderes, deve imperar a colegialidade. O pior que pode acontecer para um tribunal como este é não ser reconhecido como o árbitro desses conflitos.
E o Supremo foi questionado em vários momentos.
Exatamente. Quando em função de decisões singulares, para não dizer exóticas, se legitima do outro lado o não cumprimento ou o delay na aplicação de uma decisão, a gente tem de ficar cauteloso.
A imagem do STF ficou arranhada no ano passado?
Vamos dizer que não ficou lustrosa.
O senhor é amigo do presidente Michel Temer. Como vê essa relação de proximidade diante do julgamento da ação no TSE que pode levar à cassação do mandato dele?
No caso da chapa Dilma-Temer, fui eu inicialmente a única voz que se levantou para a abertura do processo. A relatora (a ex-ministra Maria Thereza de Assis) defendeu o arquivamento. Se esse processo existe até hoje, sem querer ser falsamente modesto, foi graças a mim. As coisas não se misturam. 
A inclusão da delação da Odebrecht vai transformá-lo no “processo do fim do mundo”?
Não se transforma em processo do fim do mundo, mas pode atrasar. E pode ter a própria utilidade discutida. As pessoas fixam em relação a esse processo a ideia de um resultado almejado. “Só haverá julgamento se houver condenação.” Não é assim. Tribunal que só condena é tribunal nazista. Não se pode medir um tribunal pelo critério do número de condenação.
O sr. defende mudanças na escolha de ministros do STF?
A gente tem de ter responsabilidade nas propostas de mudança, e você tem de medir as instituições pelos resultados. Vocês estão contentes com os resultados, por exemplo, do TCU (Tribunal de Contas da União), para onde o Legislativo tem duas indicações? Será que a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) tem mandado os melhores nomes para o STJ e para o TST (Tribunal Superior do Trabalho)? O Supremo está melhor composto do que outros tribunais. Não se conseguiu indicar um sindicalista para cá.
A Associação dos Magistrados Brasileiros sugeriu que o próprio STF elaborasse uma lista.
Seria um modelo de cooptação. É preciso que haja uma legitimação política, não que o sujeito seja vinculado partidariamente, mas que seja reconhecido pelo mundo político. Pensar em fórmulas abertas, de novo, são os reformadores da natureza, um pouco de “calcem as sandálias da humildade”.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Entrevista Nelson Jobim

O foro privilegiado blinda agentes políticos?
Não se pode dizer que o foro especial seja um privilégio para a impunidade, senão você estaria dizendo que o Supremo julga a favor da impunidade. Hoje se faz um discurso imenso sobre o foro privilegiado, principalmente por parte do STF, porque a Corte acha que tem muito trabalho. Não é bem assim. Os ministros do Supremo não fazem a instrução, que é feita pelos juízes auxiliares. O que há é um aumento substancial de processos criminais, que cria uma situação de distorção e demora no Tribunal. 
Estudo da FGV mostra que apenas 1% dos réus é condenado.
Eu estive lá (no STF), eu sei como funciona. Essa pesquisa é meramente estatística. Ninguém examinou caso a caso para verificar a existência ou não de julgamento. Quando se fala que a condenação é menos de 1%, significa que tinha que condenar mais, independente do contexto. Cada processo é um processo independente. Isso (condenação) é muito bom para os outros, não para quem está ali dentro.
O sr. vê o STF mais politizado?
Não. O que ocorreu foi uma disfuncionalidade do processo político em termos dos entendimentos e soluções das controvérsias no âmbito político. Não se soluciona controvérsia no âmbito político sem recorrer ao Poder Judiciário. A Presidência da República, necessariamente, tem de ser um órgão moderador. Com os diversos movimentos sociais, sejam na área dos trabalhadores, dos empresários ou da politica, tu tens ene forças sociais e políticas e o presidente da República tem de ser o elemento não radicalizador. Os últimos governos foram radicalizadores e isso dá problema. A partir principalmente dos anos 2000, você começou a reduzir a capacidade do Congresso, da área política partidária de compor as suas divergências. E aí o que aconteceu? Passaram a eleger, digamos, o STF como órgão moderador da República. Quando se diz: ‘Ah, os juízes estão intervindo demais...’ Espera um pouquinho, estão intervindo demais porque eles são provocados para isso. Quem leva os processos? Em grande parte são os partidos políticos. O STF está fazendo a figura daquilo que foi no Império o imperador, e que foi na República o presidente da República. Você tem uma grande culpa do Supremo também porque quando se aprovou a cláusula de barreira (norma que restringe funcionamento parlamentar ao partido que não alcançar determinado porcentual de votos) houve uma decisão da Corte entendendo que aquilo fosse inconstitucional, porque proibia as minorias. O resultado dessa decisão está aí. Então não se pode atribuir culpa exclusiva aos políticos pelo fato de você ter uma plêiade de partidos. Houve uma decisão que permitiu isso.
Como avalia a interpretação de que hoje há mais interferência entre Poderes?
A Constituição de 1988 deu mais poder ao Judiciário. Mas é preciso não confundir ativismo judicial com voluntarismo. Quando há disfuncionalidade congressual, em que você não tem o processo decisório dentro do Congresso, se requer o uso da ambiguidade. No momento em que você faz uma norma ter vários sentidos, você como que elege o Poder que vai aplicar a lei, aquele que vai dar interpretação possível dentro do leque que a ambiguidade permite. Mas há também, digamos, uma tendência, um equívoco, em que alguns juízes acham que têm de fazer justiça e não aplicar a lei. Quem diz ‘não, eu não vou aplicar a lei porque o que julgo é ilícito’, de onde vem esse poder? Do concurso público que o transformou em juiz? Esa discussão do projeto das 10 medidas anticorrupção (projeto que está na Câmara a ser enviado para o Senado), que foi oferecido pelo Ministério Público, inclui posições de alguns promotores ridículas. Tinha absurdos completos em termos de atribuição de uma espécie de um poder sacerdotal para efeito investigatório.
A Lava Jato tem ferido os direitos das defesas, por exemplo?
Há exageros. Inclusive nas prisões que são feitas em Curitiba (sede da operação sob responsabilidade do juiz federal Sérgio Moro), em que as coisas vão se prolongando e resultam em delações. Outro exemplo, condução coercitiva. Ela só é admissível quando alguém se nega a ir em uma audiência em que foi previamente intimado. Mas não se admite que alguém que não foi convocado para depor seja levado coercitivamente para depor.
A do Lula foi arbitrária?
Sim, não tenha dúvida. Isso é muito bom quando você está de acordo com o fim, mas quando o fim for outro... O dia muda de figura quando acontece contigo. O que nós temos de deixar claro é essa coisa da exposição dos acusados. Vão pegar um sujeito em um apartamento e aparece gente com metralhadora, helicóptero. Tudo isso faz parte daquilo que hoje nós chamaríamos de ação-espetáculo, ou seja, a espetacularização de todas as condutas. O Judiciário não é ambiente para você fazer biografia individual. Biografia se faz em política. 
O sr. acredita em "desmonte" da Lava Jato?
Não, isso faz parte do discurso político. Evidente que quem está sendo perseguido vai querer fazer isso (desmontar), agora se afirmar que está acontecendo, é só discurso. Evidente que você tem de afastar a prática de violências de qualquer natureza. Nós não podemos pensar de que se algo foi malfeito, autoriza que seja mal feito também a forma de persegui-los.
Por exemplo?
A divulgação da gravação da presidente Dilma com Lula depois que havia encerrado o tempo de gravação, autorizado pelo próprio juiz que havia determinado a gravação. Você acha isso legítimo? Qual é a consequência disso? Esse episódio é seríssimo. Houve algum processo para verificar se houve algum abuso? Há um inquérito sobre isso? Que eu sabia, houve várias tentativas por parte dos interessados e que não aconteceu nada. Lembro bem que chegaram até a dizer: ‘Casos excepcionais requerem medidas excepcionais’. 
O sr. vai se relançar na politica?
Não, meu horizonte desapareceu. Olha, não se comprometa com o futuro. Não fui sondado. Estou fora de tudo. Qualquer coisa para (as eleições presidenciais de) 2018, tem de ter densidade eleitoral,  que é uma coisa que não se constrói dentro do tribunal. É bobagem. Toda pretensão que ministro do STF possa ter densidade eleitoral é bobagem.
Joaquim Barbosa?
Isso é para a classe média, que lê jornal. O grande eleitorado não se lembra de ministro.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Entrevista de Roberto Jefferson

Depois de cumprir pena por corrupção e lavagem de dinheiro, o senhor anunciou que pretende voltar a se candidatar em 2018. Por que? Estou dentro da faixa etária que não deve se aposentar segundo a reforma da previdência. Falando sério, acho cedo para me recolher em casa, tenho muito a dar ainda. Minha carreira foi abruptamente interrompida no passado. Já tive a sentença do Joaquim Barbosa no processo do mensalão. Agora quero saber a avaliação do povo. Esta sim, soberana, muito acima da dele.
Acha que Lula também tentará voltar a disputar eleições? Torço para que tente de novo o Planalto. Esta sim será a grande sentença moral que ele irá receber: a derrota nas urnas. Vai valer muito mais do que um mandado de prisão expedido pelo Moro. Contra uma decisão judicial, Lula poderá sempre dizer que é vítima. A cara de pau para inventar discursos é imensa. Já ouvi recentemente que o Moro estava trabalhando para a CIA e que a Dona Marisa foi assassinada.
Não considera que ele pode ser preso antes da campanha? No fundo, é o que ele quer. Lula deseja ser preso para poder ter o discurso de que foi perseguido pela caneta togada do Moro. Ao contrário de 2005, no auge do mensalão, desta vez acho certa a tese do FHC. É importante deixá-lo sangrar até a eleição. Se Lula for preso, vai ter romaria com bandeira de foice e martelo todo dia na porta da penitenciária em Curitiba.
O seu partido, o PTB, participa do Centrão desde os tempos de Eduardo Cunha. Vocês continuarão no grupo? Não, chegou a hora de passar uma borracha nisso. Aquilo foi um grupo montado para derrubar a Dilma Rousseff usando os métodos de guerrilha das FARCs: vendendo entorpecente, sequestrando e extorquindo. O mesmo jogo que o PT sempre praticou.
E por que a maioria do sistema político se aliou a estas FARCs durante o impeachment? Porque eles eram um mal menor ao país. O mal maior era o PT continuar no comando do Palácio do Planalto. Usaram instrumentos legais e ilegais? Sim, usaram. Mas chegou a hora de celebrar a paz como na Colômbia. Tem que desarmar todo mundo.
Qual o candidato favorito a vencer a eleição presidencial de 2018? Geraldo Alckmin. Faz um governo muito sério em São Paulo e emplacou o João Dória no primeiro turno.
Mas como fica o Aécio, atual presidente do PSDB? Este é um grande amigo. No período em que estive preso, sempre me enviou uma palavra de solidariedade através da minha filha. O problema é que ele perdeu as duas últimas eleições em Minas Gerais.
E o Serra, que agora deixou o governo? É um grande pensador, mas se afastou da gestão diária de um orçamento. O grande executivo tucano é o Geraldo.
Marina Silva tem chance em 2018? Não acho. O partido da Marina é um puxadinho do PT. Ela faz aquela pose de Madre Teresa de Calcutá, mas foi ministra desse governo petista que não teve ética alguma. Também não ficou sabendo de nada?
E a febre Bolsonaro? Este terá um grande desempenho. Pode chegar a mais de 20% dos votos. Sozinho e em um partido nanico, está fazendo um marketing impressionante na internet. É uma espécie de Trump brasileiro, representando a antítese da nova ordem mundial globalizante. Vai dar trabalho.
No Twitter, o senhor tem se caracterizado por algumas posições semelhantes as do Bolsonaro. Depois de um período aliado ao PT, é neste espectro político que o senhor se sente mais à vontade? Nunca fui de esquerda. Perdi por 32 a 1 na executiva nacional do PTB a votação que tratava desta aliança. Estava claro que não dava para misturar água com azeite. Foi um grave equívoco apoiar o governo Lula em 2003. O PT fez um projeto de poder populista. Queriam se perpetuar no poder de qualquer jeito.
O PT acabou? De jeito nenhum e nem desejo isso. O PT tem um papel importante. São melhores na oposição do que governando.
O que dizer sobre a descoberta de que Sérgio Cabral mantinha contas no exterior com saldo de 100 milhões de dólares? Nunca imaginei um esquema tão grande. Sinto muito pelo pai e pelos filhos dele. O que pesou para Cabral foi a sua falta de liturgia no exercício de um cargo público. Expôs-se demais em festas. Colocou guardanapo na cabeça para dançar em restaurantes. Isso demoliu o patrimônio moral dele.
Depois do seu período no cárcere, que tipo de conselho o senhor daria para o presidiário Cabral? Ele tem que se reaproximar de Deus. É importante se reconciliar com valores religiosos e morais para que possa pacificar o seu coração. Cabral precisa admitir seus erros e pedir perdão para Deus e toda a sociedade. E vai ter que se preparar psicologicamente: pelo caminho que as coisas vão, a sentença judicial será muito dura contra ele.
O que mais chamou a sua atenção na cadeia? Vi muitas coisas lá dentro. Eu que sou católico, aprendi a respeitar o trabalho feito pela igreja Universal. Também vi o PSOL trabalhando a favor de marginais sempre com o discurso safado de que a culpa de existir um estuprador ou homicida é da sociedade.
O que o senhor fazia para passar o tempo? Lia livros e assistia TV. Vi o Brasil perder de 7 a 1 para a Alemanha na cela. Certa vez, acharam que eu ia me matar com extensores, mas estava apenas me preparando para malhar. O banho frio, o boi (buraco no chão que serve como vaso), nada disso me afetou. O mais difícil mesmo foi ficar isolado do mundo e longe da família por longos 14 meses.


Na época do mensalão, o senhor dizia que Lula era inocente... É verdade. Na CPI, falei: “Sai daí Zé, antes que faça culpado um homem inocente”. Hoje é diferente, são muitas as evidências: apartamento no Guarujá, sítio em Atibaia e o enriquecimento dos filhos. Mesmo assim, o Moro precisa ser inteligente e não prendê-lo. Lula precisa ouvir um basta da sociedade.
O que o senhor vai dizer para o eleitor quando for cobrado pelo envolvimento no mensalão? Vou perguntar se as pessoas acharam justa a sentença. Também quero saber se consideram que tive alguma importância na transformação que está ocorrendo no país. Fiz uma luta solitária no momento mais forte do PT no poder.
Então considerou injusta a sua condenação pedida pelo ex-ministro Joaquim Barbosa no processo do mensalão? Sim, ele exagerou. Uma coisa é o delito eleitoral, que eu sabia que tinha cometido. Outra é a corrupção. Encarei com serenidade aquela conduta histriônica do Joaquim Barbosa. Ele jogou para a plateia, só não esperava que anos depois apareceria o Sérgio Moro. Sem televisão ao vivo, um juiz de vara de primeira instância se tornou muito maior do que ele. Fico satisfeito de ver que o Joaquim Barbosa não passou para a história como o maior magistrado do país.
Essa tese de separar caixa dois e corrupção não é uma conversa conveniente para políticos apavorados com a delação da Odebrecht que vem por aí? Acho que tem que haver a separação do joio do trigo. Uma coisa é quem recebeu dinheiro por corrupção para facilitar negócio para empreiteira. Outra, o financiamento eleitoral. Não se pode chamar caixa dois de corrupção.
Mas essa não é uma linha muito tênue? Não. Caixa dois houve no Brasil o tempo todo, as empresas não participavam de campanha de outra forma. Elas sempre queriam dar 10% por dentro e 90%, por fora. Ninguém queria ficar exposto e aparecer em prestações de contas bancando um candidato que depois poderia perder a eleição.
Foi este o seu caso? Sim. Recebi 4 milhões de reais em caixa dois na eleição de 2004 em um grande acordo com o PT. Tudo entregue na sede do PTB pelo Marcos Valério em malas de dinheiro. Comprometi-me a não lançar candidato no Rio de Janeiro e São Paulo. Agora isso virar corrupção ativa?
E não é? Não. Corrupção é quando existe algum ato do executivo envolvido. Quando um agente público faz ou deixa de fazer algo na administração que lesa a sociedade. Eu não tinha como saber naquela época de onde o dinheiro vinha.
O eleitor está do seu lado nesta tese? Claro. Do taxista à caixa do supermercado, todos me cumprimentam hoje em dia. Recentemente, fui almoçar com a minha mulher em um restaurante em Copacabana e fui aplaudido de pé. Muitos dizem: “Obrigado por derrubar o José Dirceu, senão teríamos virado uma Venezuela”.
Até onde vai a operação Lava-Jato? Para o bem dela, acho que está na hora de parar de inventar. É hora de fechar o pacote, senão vira uma guerra napoleônica. Chega de aceitar novas delações. O país tem que andar para frente.
Qual a diferença entre a Lava-Jato e o mensalão? O mensalão era mais genérico e não tinha provas tão densas. Contas no exterior foram rastreadas com valores monstruosos. Ajudou também o fato de um monte de madame usar cartão de crédito para comprar roupa de grife.
A Lava-Jato desvendou um esquema de recursos montado por PT e PMDB. Não é contraditório você e seu partido baterem apenas nos petistas? Não. O governo Temer não está envolvido na Lava-Jato. Por enquanto só há fumaça contra os integrantes do governo, mas não há fogo.
Temer não está tentando proteger seu governo com a indicação de Alexandre de Moraes para o Supremo? Não há blindagem neste tipo de escolha. Por exemplo: quando o Lula nomeou o Joaquim Barbosa naquela cota para negros que ele criou no Supremo, jamais se imaginou que ele condenaria petistas. Os ministros Luiz Fux e Dias Toffoli também agiram com independência mesmo depois de indicados pelo PT. Tenho certeza que Alexandre de Moraes seguirá pelo mesmo caminho. Ele é um profissional extremamente qualificado. Não tentará agradecer a indicação dando canetadas contra evidências em processos.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Quer ganhar algum dinheiro? Então pratique um crime

Por Rodrigo Merli Antunes, promotor de Justiça do Tribunal do Júri de Guarulhos, especialista em Direito Processual Penal e membro da Escola de Altos Estudos em Ciências Criminais
Já venho sustentando há algum tempo que o crime compensa no Brasil. E, de fato, o decurso dos anos só vem reforçando essa minha impressão inicial.

Descobrir a autoria de um delito em nosso país é algo bem difícil. Como sabido, em média apenas 8 por cento dos crimes perpetrados em território nacional são descobertos e viram processos, sendo a cifra negra da criminalidade algo em torno de 92 por cento.

Caso o sujeito seja bastante azarado, vindo a responder judicialmente pelo crime que cometeu, é fato que, ainda assim, não precisa se preocupar muito. Com tantas leis penais e processuais penais a favor dos réus, a chance deles responderem aos processos soltos e de terem uma pena extremamente branda ao final do feito é também enorme.

Mas, ainda que tudo dê errado para o acusado, ele não precisa se desesperar. A Lei de Execuções Penais é repleta de benefícios, dentre eles a detração penal, a remição pelo trabalho e pelo estudo, a progressão de regime e o livramento condicional, dentre tantos outros. Em outras palavras, dificilmente alguém fica efetivamente preso em nosso país por mais de 1/3 da pena final aplicada. E isso sem falar nos decretos anuais de indulto, os quais diminuem e extinguem ainda mais as sanções dos condenados brasileiros.

Curioso, entretanto, é ainda ter que ouvir de muitos que vivemos em um país extremamente punitivo e que prende demais os seus cidadãos. Ah, só se for piada, né?

Todavia, o mar de benefícios é ainda maior. Enquanto o criminoso estiver preso, ele não precisa sequer se preocupar com o sustento de sua família. Há em benefício dele o auxílio-reclusão, o qual, é fato, inexiste na maioria dos países de primeiro mundo. Só não sei porque ainda não inventaram o auxílio-vítima, este sim a receber aplausos deste subscritor caso existisse em nosso país.

Só que agora inventaram algo ainda mais intrigante, isto é, o direito do preso em receber indenização do Estado quando ficar recluso em situação de superlotação carcerária. Nesta semana, esta foi a decisão do STF em um caso oriundo do estado do Mato Grosso do Sul. Os Ministros reconheceram a um homicida o direito dele perceber 2 mil reais por ter ficado em uma cela com mais detentos do que o ideal.

Claro que ninguém é a favor de presídios superlotados e/ou com condições precárias de sobrevivência. No entanto, daí a reconhecer direito de indenização para os presos já me parece um pouco exagerado. Morte na cadeia e/ou lesões corporais de presos sob a custódia do Estado é uma coisa; já superlotação de cela é outra completamente diferente.

Quero saber se o trabalhador que mora num barraco de um ou dois cômodos com sua família de 6 ou mais pessoas também vai receber indenização por superlotação de sua morada? Quero saber se o cidadão honesto também vai receber milhares de reais por ter que tomar banho gelado em sua casa por ausência de luz elétrica na região onde vive? Quero também descobrir se aquele que não tem acesso a saneamento básico, à saúde pública, a um ensino de qualidade, a uma vaga na creche e/ou a um transporte decente também vai receber indenização dos Poderes constituídos?

E olhem que alguns Ministros do STF ainda queriam que o valor da indenização para o preso não fosse só de 2 mil reais, mas sim de um salário mínimo por mês enquanto o sujeito ficou detido em cela menor que a desejável. Daqui a pouco as pessoas não vão mais procurar emprego para ganhar um salário mínimo por mês, mas sim vão praticar um crime para ter esse salário garantido.

É uma verdadeira inversão de valores, com a devida vênia. Ao menos esse dinheiro deveria ir para as vítimas do preso e não para ele próprio.

Quando fui Promotor de Justiça na área da cidadania, ajuizei diversas ações para interditar presídios em condições inadequadas e também para obrigar o Estado a ampliar o número de vagas para os presos. No entanto, nunca obtive êxito. A justificativa do Judiciário sempre foi a de que isso importaria numa ingerência indevida no Poder Executivo, ferindo o princípio constitucional da separação e independência dos poderes. Curioso que isso que eu postulava não podia ser deferido, mas dar dinheiro para os presos às custas do erário público não tem agora problema nenhum.

Enfim, melhor eu parar por aqui. Daqui a pouco serei preso e/ou punido por expressar minha opinião e por criticar esta ou aquela decisão judicial. Aliás, para alguns congressistas, tecer críticas em público e exercitar o direito à livre manifestação do pensamento beira o abuso de autoridade. Pelo menos já há projeto de lei nesse sentido.

Na realidade, creio que Albert Camus é quem estava certo: “Chegará um momento na história em que quem dizer que dois e dois são quatro será condenado à morte”.

Que Deus tenha piedade de nós e que possamos viver em um país onde o cidadão de bem é que tenha direito a ser indenizado em primeiro lugar, onde as drogas não sejam lícitas, onde o aborto não seja natural e onde o tráfico de drogas seja sim um crime hediondo.

Essas são, pelo menos, as minhas orações na esfera jurídica atual.

Pragmatismo básico

Editorial - Folha de SP
Na classe média da economia global, o Brasil coleciona resultados de país pobre quando se avaliam a qualidade e a abrangência do saneamento básico.

A falta de cobertura é alarmante, sobretudo quanto à coleta de esgoto, que alcança apenas 55% da população —e só 42,7% dos dejetos são tratados. Ao menos na coleta de água os números são melhores, com 83,3% de atendimento.

O tímido progresso dos últimos anos mostra-se incapaz de reverter esse quadro em tempo razoável. Segundo estudo da Confederação Nacional da Indústria, mantido o ritmo atual, a universalização dos serviços ocorrerá somente na década de 2050.

Trata-se de defasagem de 20 anos em relação às metas fixadas em 2013 pelo Plano Nacional de Saneamento Básico.

Entre os fatores apontados pela CNI para o vexame brasileiro estão a falta de investimentos públicos —95% do serviço está a cargo de governos estaduais e municipais— e os entraves na regulação, que acabam por afastar os aportes do setor privado.

No Brasil a concessão para a exploração do setor cabe ao poder municipal, mas não há um quadro de regras claro e único no país. Há casos, por exemplo, em que governos estaduais assumiram o papel de definir normas e tarifas, resultando em uma miríade de órgãos de atuação nem sempre definida.

O trabalho da CNI aponta que, em países com alto nível de eficiência em saneamento, a participação privada tende a ser maior do que no Brasil. Mas não é necessariamente esse o fator a garantir a qualidade e a amplitude do serviço.

Na Alemanha, por exemplo, 60% da entrega cabe a empresas privadas, também preponderantes no Reino Unido e no Chile. Nos Estados Unidos, por outro lado, mais de 80% da população é servida por entidades do setor público.

A privatização, portanto, não é caminho obrigatório, muito menos panaceia; mas tampouco deve ser encarada com preconceitos ideológicos. Sob uma perspectiva pragmática, trata-se de alternativa natural à escassez generalizada de fundos estatais.

Serão necessários, estima-se, ao menos R$ 300 bilhões para que o Brasil se aproxime dos melhores padrões internacionais.

Nesse sentido, é bem-vinda a aprovação da venda da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae) do Rio pela Assembleia Legislativa do Estado nesta segunda (20).

Ainda que arrancada a fórceps, muito mais pela necessidade imperiosa de tapar o rombo das finanças fluminenses do que por estratégia setorial, a experiência poderá servir de modelo para uma retomada dos investimentos.

Os burros n’água

Por Arnaldo Jabor - Estadão
Não sei o que se passa hoje no Brasil. Só vejo expectativas, nenhuma clareza. Nosso último acontecimento foi o impeachment de Dilma. Jornais batalham para ter um assunto concreto. A Lava Jato é intocável, todos dizem, principalmente os mais citados por ela.

A Lava Jato foi uma grande conquista. Mas, pergunto, e depois que julgarem e prenderem, em que ela vai desembocar? Haverá por exemplo uma grande campanha para acabar com a espantosa burocracia do País? Seria importantíssimo. A burocracia não é apenas uma aporrinhação; ela é a capa que protege a corrupção e faz a manutenção do eterno patrimonialismo que nos assassina.

O Brasil é uma região interior de nossa cabeça e, do lado de fora, só há uma confusa paisagem destroçada, feita propositadamente para não funcionar. Isso. Fomos colonizados para dar sempre com os burros n’água. O governo Temer por exemplo faz uma tentativa de modernização (que está funcionando com bons executivos) e uma vida política de velhíssimas raposas chafurdando na lama de sempre. As caras e bocas de nossos representantes retratam a loucura de nossa vida – um desfile com as caras de gente como Sarney, Jucá, Renan, o inesquecível corno do Waldir Maranhão, o extraordinário rostinho operado do Eunício ou a carranca fantasmática do Lobão mostram nosso destino atual. A história de minha vida política sempre oscilou entre dois sentimentos: esperança e desilusão. Cresci ouvindo duas teses divergentes: ou o Brasil era o país do futuro ou era um urubu caindo no abismo. Além disso, dentro dessa dúvida, havia outra: UDN ou PTB? Reacionários da “elite” ou o “povo”? Comecei a me interessar por política quando votei em Jânio. Confesso. Eu tinha 18 anos e não me interessei por Lott, aquele general com cara de burro, pescoço duro. Jânio me fascinava com sua figura dramática, era uma caricatura vesga, cheia de caspa e dava a impressão de que ele, sim, era de esquerda, doidão, “off”. Meses depois, estou no estribo de um bonde quando ouço: “Jânio tomou um porre e renunciou!”. Foi minha primeira desilusão. Eleito esmagadoramente, largou o governo como se sai de um botequim. Ali, no estribo do bonde, eu entendi que havia uma grossa loucura brasileira rolando por baixo da política, mais forte que slogans e programas. Percebi que existia uma ‘sub-história’ que nos dirigia para além das viradas políticas. Uma anomalia secular que faz as coisas ‘desacontecerem’, que criou ‘um país sob anestesia, mas sem cirurgia’, como diagnosticou M.H. Simonsen.

O teatro

Por Eliane Cantanhêde - Estadão
Oposição é oposição e seu papel é azucrinar a vida dos governos e, por extensão, as sabatinas dos candidatos do governo de plantão para uma vaga no Supremo Tribunal Federal. Liderada pelo PT, vai, sim, apertar o quanto puder o indicado pelo presidente Michel Temer. Seu grande trunfo é que há questionamentos reais a serem feitos, mas os governistas têm um trunfo ainda melhor: uma expressiva maioria.

Ao se meter numa chalana no Lago Paranoá, para um ensaio com senadores governistas, inclusive da própria CCJ, Moraes deixou no ar que a sabatina de hoje será... um teatro. Mas isso não é novidade. Senadores de governo e de oposição sempre decoram seu script, encenam a sua parte e o the end é previamente conhecido. Petistas e aliados darão um suadouro, mas ele vai acabar aprovado na CCJ. Se der tempo, pode já sair hoje mesmo do Senado pronto para vestir a toga – e participar do julgamento dos políticos da Lava Jato.

O clima, porém, já esquentava ontem, em plena segunda-feira da semana do carnaval, quando a oposição articulava um abaixo-assinado para impedir que o senador Edison Lobão (PMDB-MA) presidisse a sabatina, porque ele próprio é alvo de inquéritos no Supremo e um dos seus filhos, Márcio Lobão, acaba de sofrer busca e apreensão da Polícia Federal por coisas do arco da velha.

O abaixo-assinado, porém, é parte do teatro, porque, gostemos ou não, se Lobão preside a CCJ, vai presidir a sessão. Como diz Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) “quem não gostar que reclame com o povo do Maranhão, que o elegeu. Depois de eleito, ele é senador pleno, integra o partido francamente majoritário e virou presidente da CCJ por aclamação. Logo...”

Logo... “nosotros”, os leigos, aqui de fora, continuamos de boca aberta com essas decisões e essas pessoas do nosso Parlamento, que deveriam estar de barbas de molho. Apesar disso, Nunes Ferreira tem razão, até porque Lobão não foi eleito presidente da comissão apenas pelos governistas, mas por aclamação.

A expectativa é de que PT, PC do B, Rede e parte do PSB façam muito barulho, dentro e fora da comissão, usando, por exemplo, a acusação de plágio em trabalhos acadêmicos, a filiação ao PSDB até ser indicado e o fato de ser ministro licenciado da Justiça. Pior do que isso é que já defendeu formalmente a tese de que membros de governos não devem ser nomeados para o Supremo.

O mais fácil de rebater é a filiação partidária e a participação no governo, porque essa tradição vem de longe: Itamar indicou Maurício Corrêa; FHC, Gilmar Mendes; Lula, Dias Toffoli; Jango, Evandro Lins e Silva; Juscelino, Vitor Nunes Leal; Castello Branco, Adauto Lúcio Cardoso.... “Quem que eles queriam que o Temer indicasse? O Wadih Damous?”, provoca Nunes Ferreira, referindo-se a um deputado do PT do Rio. Mas, afora ironias ou provocações, será que Moraes nem vai gaguejar ao dizer que era contra a indicação de ministros para o STF, mas agora é exatamente um ministro indicado para o STF?

Tão delicada é a questão dos plágios e os oposicionistas estão preparados para esfregar parágrafos, frases e citações na cara do novo ministro. Isso tudo, porém, causa constrangimento e tende a abastecer reportagens futuras sobre Moraes no Supremo, mas, hoje, na prática, não deve mudar nada. Estava escrito nas estrelas, de véspera, que Moraes será aprovado. A não ser que, fervendo, ele próprio se queime.

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Suprema confusão

Editorial - Estadão
Como dissemos neste espaço na quinta-feira passada, a frequente intromissão de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) em assuntos exclusivos do Legislativo, além de indevida à luz da separação constitucional de Poderes, tem o potencial de causar imensa confusão institucional, razão pela qual o Congresso, em diversas ocasiões, tem preferido ignorar as ordens daquele tribunal. Embora seja danosa ao Estado de Direito a decisão de descumprir determinações judiciais, ainda mais as expedidas pela mais alta Corte do País, sobram motivos para que os parlamentares assim o façam, pois a alternativa, além de representar inaceitável submissão do Congresso – eleito pelo voto direto – aos ditames deste ou daquele ministro do Supremo, quase sempre tumultua a atividade legislativa. Se alguém tem alguma dúvida sobre o caos provocado pelo ativismo do STF, sempre disposto a “corrigir” o Congresso, os recentes desdobramentos do imbróglio envolvendo o pacote de leis anticorrupção servem como perfeita ilustração.

Cumprindo uma determinação do STF, o Senado devolveu na quinta-feira à Câmara o projeto de lei que trata de medidas para combater a corrupção. Se o trâmite correto fosse respeitado, o projeto deveria ter sido votado pelo Senado, pois já foi aprovado na Câmara. Mas uma liminar do ministro do STF Luiz Fux, em dezembro, havia mandado que o texto voltasse à Câmara para que fosse novamente votado, só que sem as modificações feitas pelos deputados.

O argumento do ministro Fux é que o projeto, por ser de iniciativa popular, subscrito por mais de 2 milhões de eleitores, não poderia ter sofrido mudanças. Trata-se de evidente desfiguração da função legislativa, pois é encargo precípuo da atividade parlamentar debater os textos encaminhados ao Congresso e propor alterações, se for o caso. Fux, contudo, não viu assim. Ao contrário: para o ministro, a Câmara está eivada de interesses “ordinários” que não são os do eleitor e são esses interesses que prevalecem nos debates. Isso pode ser verdade em alguns aspectos – e os seguidos escândalos de corrupção estão aí de prova –, mas não cabe a um ministro do STF apresentar-se como a palmatória do Legislativo, determinando o que os parlamentares podem ou não fazer com os projetos que lá tramitam, a título de proteger sua “essência”.

Mas Fux foi em frente e determinou que o pacote anticorrupção fosse votado novamente pela Câmara. O Senado passou dois meses a ignorar a ordem, mas afinal devolveu o projeto aos deputados. No entanto, ninguém na Câmara sabe como proceder a partir de agora. “O problema é que ficou muito confuso. O que eu faço agora? Devolvo (o projeto) para os autores?”, questionou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). “Eu acho que foi uma decisão que de alguma forma interfere no Poder Legislativo, mas vamos ter paciência. Como nós não vamos desrespeitar uma decisão da Justiça, é preciso esperar e aguardar que o plenário do Supremo decida sobre a matéria.”

Seja qual for essa decisão, Maia já prevê problemas nesse e em outros casos. Como outros projetos de iniciativa popular também foram aprovados com modificações – caso da Lei da Ficha Limpa, por exemplo –, o presidente da Câmara questionou se esses textos também terão de ser votados novamente. “Então, vão cair todas as leis de iniciativa popular? Eu acho que pode se tentar construir alguma regra em relação a como acatar um projeto de iniciativa popular, para garantir que aquelas assinaturas sejam 100% válidas”, disse Maia, para quem, sem essa definição clara, cria-se um “ambiente de insegurança”.

Tem razão o deputado. Não se pode usar as mazelas do Congresso, e elas são muitas, para desqualificá-lo a priori como instituição responsável pelas leis do País. Malgrado a constatação de que muitas vezes o processo legislativo é realmente “atropelado pelas propostas mais interessantes à classe política detentora das cadeiras no Parlamento nacional”, como escreveu Fux em sua liminar, é somente por intermédio do voto do eleitor, e não por decisões judiciais voluntaristas, que o Congresso pode ser regenerado.

Correção – No editorial Foro não pode ser privilégio publicado ontem, por equívoco foi dito que o STJ é o foro competente para julgar prefeitos por crimes comuns. A Constituição determina que eles sejam julgados por uma corte de segunda instância.

Ensino médio: Os principais pontos da reforma

O que é a reforma do ensino médio?
É um conjunto de novas diretrizes para o ensino médio implementadas via medida provisória e apresentadas pelo governo federal em 22 de setembro de 2016. Para não perder a validade, o texto precisava ser aprovado em até 120 dias (4 meses) pelo Congresso Nacional.
Quando a reforma começa a valer?
As mudanças podem começar a ser implementadas a partir de 2018, de acordo com o texto da MP, no segundo ano letivo subsequente à data de publicação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), mas pode ser antecipado para o primeiro ano, desde que com antecedência mínima de 180 dias entre a publicação da Base Nacional e o início do ano letivo. A BNCC encontra-se em discussão no Ministério da Educação e ainda terá de ser aprovada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE). A expectativa é que a Base seja definida até o fim de 2017.
O ministro da Educação, Mendonça Filho, disse que não há um prazo máximo para que todas as escolas estejam no novo modelo e que espera que haja uma demanda dos próprios estados para acelerar o processo.
Quais são as principais mudanças?
O currículo deve ser 60% preenchido pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – no texto original da MP a expectativa era que 50% fossem preenchidos pela base. Os 40% restantes serão destinados aos chamados itinerários formativos, em que o estudante poderá escolher entre cinco áreas de estudo. O projeto prevê que os alunos poderão escolher a área na qual vão se aprofundar já no início do ensino médio. As escolas não são obrigadas a oferecer aos alunos todas as cinco áreas, mas deverão oferecer ao menos um dos itinerários formativos.
No conteúdo optativo, o aluno poderá se concentrar em uma das cinco áreas abaixo:
1. linguagens e suas tecnologias
2. matemática e suas tecnologias
3. ciências da natureza e suas tecnologias
4. ciências humanas e sociais aplicadas
5. formação técnica e profissional
Profissionais de notório saber podem dar aula?
A permissão para que professores sem diploma específico possam dar aulas no ensino técnico e profissional foi mantida.
Como fica a carga horária?
A proposta também estabelece uma meta de ampliação da carga horária para pelo menos mil horas anuais. O prazo para que a nova carga horária seja implantada em todas as escolas de ensino médio é de, no máximo, cinco anos. O governo federal deve oferecer apoio financeiro.
Qual será a língua estrangeira oferecida: inglês ou espanhol?
O inglês passa a ser a língua estrangeira obrigatória a partir do sexto ano do ensino fundamental. Antes da reforma, as escolas podiam escolher se a língua estrangeira ensinada aos alunos seria o inglês ou o espanhol. Se a escola oferecer mais de uma língua estrangeira, a segunda língua, preferencialmente, deve ser o espanhol, mas isso não é obrigatório.
Que alterações foram feitas pelo Congresso Nacional?
Quando passou pela Câmara, a medida recebeu emenda restabelecendo a obrigatoriedade das disciplinas de educação física, arte, sociologia e filosofia na Base Nacional Comum Curricular, que estavam fora do texto original. A oposição no Senado tentou obstruir a votação e apresentou diversas sugestões de emenda para tentar modificar o texto, mas elas foram rejeitadas pela maioria do plenário.
Quais foram os questionamentos quanto à reforma?
A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) divulgaram um manifesto contra a MP do Ensino Médio. O documento repudia a iniciativa do governo federal de promover, por meio de medida provisória, uma reforma sem debate ou consulta à sociedade.
No fim do ano passado, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, enviou parecer ao Supremo Tribunal Federal (STF) no qual afirma que a medida provisória de reforma do ensino médio é inconstitucional.
A secretária-executiva do MEC, Maria Helena Guimarães, defendeu a urgência de uma reforma como justificativa para a edição de uma MP e ressaltou que a questão é discutida há anos.
Já o ministro da Educação, Mendonça Filho, disse que a MP prevê a flexibilização do ensino médio com o objetivo de torná-lo mais atraente para o jovem.
Com informações da Agência Brasil

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Foro não pode ser privilégio

Editorial - Estadão
A Constituição estabelece que algumas autoridades tenham, em razão do cargo, o chamado foro privilegiado. O art. 102 da Carta Magna define, por exemplo, que uma das competências do Supremo Tribunal Federal (STF) é “processar e julgar originariamente, nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República”. No caso de governadores, prefeitos e desembargadores, entre outras autoridades, o órgão competente para processá-los e julgá-los por crimes comuns é o Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Em tese, nada há de pernicioso nesse tratamento especial, cuja razão de existir é plenamente legítima: preservar determinadas autoridades da litigância de má-fé e de eventuais perseguições políticas e ideológicas por parte de juízes de primeira instância, o que impossibilitaria o exercício de suas funções públicas, em claro prejuízo para a coletividade. Sem essa prerrogativa de função, a passagem por um cargo público poderia acarretar uma enxurrada de ações judiciais, representando tal transtorno que, além de prejudicar o trabalho dessas autoridades, levaria a que muitas pessoas se negassem a ocupar funções públicas. Sem o foro privilegiado, alguns meses dedicados a servir ao País poderiam significar anos de infindáveis batalhas judiciais em todo o território nacional.

Apesar do nome, foro privilegiado não representa, portanto, nenhum privilégio. Trata-se simplesmente de uma distribuição especial das competências judiciais em função do cargo. Como lembrou recentemente o ministro Celso de Mello, “prerrogativa de foro (...) não importa em obstrução e, muito menos, em paralisação dos atos de investigação criminal ou de persecução penal”. Todos continuam submetidos ao império da lei e estão expostos ao trabalho da Justiça.

O problema é que a Justiça, muitas vezes, não tem trabalhado bem. As instâncias superiores têm sido lentas em cumprir suas atribuições constitucionais de processar e julgar as autoridades públicas. Esse vagar ficou especialmente evidente depois da Operação Lava Jato, quando colocado em contraste com a pronta atuação de alguns magistrados na primeira instância. Tem sido tão grande a diferença de velocidades que, aos olhos da população, foro privilegiado se tornou sinônimo de impunidade.

Essa impressão negativa do trabalho das instâncias superiores é agora confirmada pelos números. Recente levantamento da FGV Direito Rio indicou que, de janeiro de 2011 a março de 2016, apenas 5,8% dos inquéritos no STF resultaram em abertura da ação penal.

No período analisado pela pesquisa, de um total de 404 ações penais, apenas em três casos a acusação saiu vencedora (0,7%). A defesa obteve sucesso em 71 casos (17,5%) e outros 276 prescreveram ou foram enviados a instâncias inferiores (68,3%). Noutras 34 ações houve decisões favoráveis em fase de recurso (8,4%) e 20 continuam em segredo de justiça (4,9%).

Tais números revelam um sério problema: as mais altas autoridades do País não estão sendo devidamente processadas e julgadas, como determina a Constituição. E em nada contribui para a solução dessa situação alegar que o STF não é uma corte penal – em clara contradição com o que dispõe o texto constitucional, já desde 1824 – ou que está sobrecarregado de trabalho. É conhecido o expressivo número de processos que cada ministro do STF tem sob sua responsabilidade, mas cada um também tem a prerrogativa de requisitar juízes que o auxiliem nesse abundante trabalho.

É preciso cobrar diligência dos tribunais superiores, pois a impunidade das autoridades é especialmente danosa ao País. Bastaria ao menos uma diligência similar à do senador Romero Jucá (PMDB-RR) que, entre suas muitas atribuições, conseguiu tempo para apresentar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para impedir a responsabilização dos presidentes da Câmara, do Senado e do STF por atos estranhos ao exercício de seu mandato. O projeto era um claro acinte à moralidade pública e foi retirado em menos de 24 horas. Ficou, portanto, o exemplo de diligência. Para o bem ou para o mal, quando se quer, se faz.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Decisão didática

Editorial - Estadão
Na terça-feira passada, decidindo dois mandados de segurança impetrados pelo partido Rede Sustentabilidade e pelo PSOL – que se insurgiam contra a nomeação de Moreira Franco como titular da Secretaria-Geral da Presidência –, o ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal (STF), mostrou como o Direito, quando interpretado corretamente, fornece preciosa contribuição para o bom funcionamento das instituições. Longe de agravar as tensões próprias do terreno político, a fundamentação judicial, valendo-se dos critérios objetivos definidos na lei, deve aportar segurança às complexas situações que chegam ao Poder Judiciário. Pois foi o que fez o decano do STF, ao confirmar a legalidade da nomeação de Moreira Franco. O caso será depois apreciado pelo plenário da Corte.

Nos mandados de segurança, afirmava-se que a nomeação de Moreira Franco era inválida em razão de suposto desvio de finalidade. A Rede alegou, por exemplo, que o ato presidencial, logo após a homologação das 77 delações de funcionários e ex-funcionários da Odebrecht – nas quais o novo ministro era citado –, tinha a intenção de “evitar o regular andamento das investigações em sede da operação Lava Jato” e de “impedir sua prisão (de Moreira Franco) e os regulares desdobramentos perante o juízo monocrático”. A nomeação teria o objetivo – assim dizia o partido de Marina Silva – de obstruir a Justiça.

Seguindo o rito do mandado de segurança, Celso de Mello solicitou do presidente Michel Temer as informações relativas à nomeação de Moreira Franco e, depois, proferiu sua decisão. De maneira didática, o ministro mostrou “que jamais se presume” desvio de finalidade. O ordenamento jurídico exige prova da “intenção deliberada, por parte do administrador público, de atingir objetivo vedado pela ordem jurídica ou divorciado do interesse público”. A simples presunção de desvio de finalidade – como fez a Rede, ao sustentar a invalidade da nomeação simplesmente por ter ocorrido após a homologação das delações da Odebrecht – não é motivo para invalidar um ato presidencial que cumpriu todos os requisitos legais.

O esclarecimento do decano do STF traz um pouco de racionalidade ao atual ambiente político. Denúncias e suspeitas devem ser prontamente investigadas, mas elas são incapazes, por si sós, de gerar efeitos jurídicos. A menção de um nome numa delação é muito diferente de uma denúncia, que é diferente de se tornar réu, que é diferente de ser condenado. Longe de representarem uma concessão à impunidade em prol da chamada governabilidade – como se o bom andamento das instituições e do País exigisse fechar os olhos a desvios de suas autoridades –, tais distinções são decorrência do mais pleno respeito à lei e à moralidade pública.

Além de didática, a decisão de Celso de Mello é corajosa, pois coloca a responsabilidade – e os olhos da opinião pública – sobre o STF. A “prerrogativa de foro (...) não importa em obstrução e, muito menos, em paralisação dos atos de investigação criminal ou de persecução penal”, afirma a decisão. “A mera outorga da condição político-jurídica de Ministro de Estado não estabelece qualquer círculo de imunidade em torno desse qualificado agente auxiliar do Presidente da República.”

Com tais afirmações, o ministro Celso de Mello está garantindo o que a população tanto almeja: que as investigações de pessoas com foro privilegiado na Suprema Corte tenham um andamento adequado, sem paralisias e sem procrastinações. “A investidura de qualquer pessoa no cargo de Ministro de Estado – diz o decano do STF – não representa obstáculo algum a atos de persecução penal que contra ela venham eventualmente a ser promovidos perante o seu juiz natural, que, por efeito do que determina a própria

Constituição é o Supremo Tribunal Federal.” Lembra, por exemplo, que em qualquer fase da investigação criminal ou da persecução penal em juízo, a Suprema Corte pode decretar prisão cautelar, bem como a prisão preventiva, de um ministro de Estado.

A decisão do ministro Celso de Mello é a prova clara de que o atuar monocrático de um juiz não precisa levar necessariamente a qualquer tipo de protagonismo individual, sempre destoante dos bons modos da magistratura. Basta aplicar a lei.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

A pós-mentira

Por Arnaldo Jabor
“Pós-verdade” é a nova palavra para justificar o caos psicológico do mundo atual. Que p.... é essa? É o seguinte: a História ficou mais imprevisível. Ninguém sabe a solução e, pior, nem entendemos ainda a extensão do problema.

As pessoas passam a buscar uma certeza qualquer. No entanto, já sabemos que o presente é inexplicável e não nos levará a plenitude alguma. A ideia de ‘futuro’ mixou. E, como não há em que acreditar, como não há verdades sólidas, inventaram esse termo para travestir a boa e velha mentira.

Parece filosofia barata (e talvez seja), mas o grande vazio atual pode ser simplesmente a saudade dos ‘universais’. Ou seja, conceitos que servem para nomear definitivamente, totalmente, fenômenos e sentimentos humanos: liberdade, amor, solidariedade, compaixão, direitos e deveres morais, dignidade na vida. A propósito, disse uma vez o Baudrillard: “Hoje, não há mais o ‘universal’ – só o singular e o mundial”. Na mosca.

É isso. Em seu lugar, surgiram os universais ‘do Mal’: egoísmo, beleza da vingança, desprezo pelos fracos, elogio da religião mais bruta, ódio ao presente, desprezo pela ciência, pela arte. É a crença no Mal contra um Bem ineficaz – a defesa do absurdo contra a lentidão da razão e da democracia.

Cito de novo o Baudrillard (para a desconfiança de acadêmicos que o consideram ‘menor’). Bem, ele falava que no tempo em que vivemos, não há mais bandeiras possíveis – só nos resta a frágil defesa dos ‘direitos humanos’.

É verdade: como influir num mundo que virou um pesadelo humorístico, regido por seres repulsivos como Putin, o porquinho da Coreia do Norte, o Assad assassino e, agora, um dos piores seres vivos criou uma subideologia de extrema direita: o ‘trumpismo’, ou seja, a rebelião dos imbecis contra qualquer progresso na qualidade de vida.

Assim, a ignorância passa a ser uma virtude: dentro dela mora a recusa contra os labirintos da vida reflexiva. A ignorância encarnaria uma verdade acima de complexidades entediantes. Assim foi eleito o Bush, assim temos agora o grande espantalho no poder (nunca pensei que teria saudades do Bush...). Bush é um hippie perto do Trump (em inglês, ‘to trump’ quer dizer planejar fraudes!...)

E para os pobres-diabos do ‘povão’, incrivelmente, as ideias mais malucas parecem ‘revolucionárias’ e corajosas. Vejam o muro contra o México. Vejam seu boquete no Putin.

A fragilidade da democracia animou os canalhas do mundo inteiro. Em nome dela, Erdogan arrasa o progresso secular da Turquia, Duterte queima veados e drogados na Filipinas, Assad bombardeia, o Putin envenena e prende adversários e por aí vai...

A nova forma de ditadura é um design de democracia autoritária, populista; mas, essa forma de tomar o poder não tem a solidez finalista de projetos ideológicos como o nazismo ou o fascismo. Não, são delírios pessoais de sujeitos malucos e carismáticos que criaram a tal ‘pós-verdade’, como apelidaram oportunisticamente...

Trata-se de um universo de ideias (falsas) que, se repetidas persistentemente, criam uma nova plataforma de ‘fatos alternativos’ que explicariam o mundo de forma simplista e dogmática: quem duvidar é inimigo e mentiroso. Buscam uma ‘verdade absoluta’ que, no duro, é um sonho totalitário. O que seria da sociedade sem o uso da mentira? O que seria do homem sem a privacidade de sua loucura?

Tweets, e-mails, facebook, são os canais das grandes mentiras digitais, com milhões de idiotas ‘compartilhando’ informações que desconhecem. A mídia tradicional fica acuada pela velocidade de panfletos odiosos que querem mudar a vida social, como fizeram no passado os jornalecos que inundaram o século 19 e provocaram em parte a Guerra da Secessão.

‘Pós-verdade’ é uma política cultural em que os debates são caracterizados por emoções, desconectadas dos fatos. Na pós-verdade é que os demagogos repetem e reafirmam seus argumentos, mesmo que eles sejam falsos. Para a chamada ‘pós-verdade’, os fatos são negativos. Os fatos são pessimistas. Os fatos são pouco patriotas. Sempre que o Trump é flagrado em mais uma mentira, ele e sua equipe inventam uma outra maior do que a primeira. Mesmo com fotos provando, o rato declarou que na sua posse havia mais pessoas do que na posse do Obama. E os idiotas acreditam.

O que está acontecendo hoje já tinha sido previsto pelo Tocqueville em 1831, quando ele esteve na América, durante o governo de Andrew Jackson, sórdido matador de índios e negros, além de ter jogado o país numa recessão pesada. Claro que ele é homem do retrato no gabinete do Trump.

O trágico e o patético é que o elemento acima não tem projeto algum a não ser desmoralizar os USA, ou melhor, desmoralizar a democracia. E desmoralizar também os sentimentos humanos, como faz sempre o ‘Estado Islâmico’. E ele já conseguiu. Em 15 dias, a América virou uma piada internacional. Todos riem: como elegeram um escroto como ele?

Trump vai criar grandes crises mundiais somente para festejar seu ego. É um perigo esse psicótico no poder, como naquele filme do Dr. Fantástico, lembram? Ou então o grande livro de Orwell – 1984 –, só que agora em forma de chanchada criada por um cara mentalmente doente.

Trump é uma espécie de terrorista, um homem-bomba americano que pode topar até a destruição do país para provar sua doença narcísica, a psicopatia que não admite oposição alguma. Pois, no meio de um discurso presidencial, ele não protestou contra uma loja que não vendia mais roupas da sua filha Ivanka? Um presidente perder tempo com isso só prova que ele é doido.

O que fazer? Ninguém sabe. Mas é difícil imaginar esse cara por quatro anos no poder. Se bobear, o mundo acaba antes. Boa viagem.

Temer impõe límites

Editorial - Estadão
Ontem, em declaração à imprensa, convocada para este fim, o presidente Michel Temer traçou limites claros para a permanência das pessoas em seu governo: ministro denunciado será afastado provisoriamente. E, caso se torne réu, o afastamento será definitivo. “Se houver denúncia, que é um conjunto de provas, que eventualmente pode levar ao acolhimento, o ministro denunciado será afastado provisoriamente. Se acolhida a denúncia e o ministro se transformar em réu, o afastamento é definitivo”, afirmou Temer.

O esclarecimento presidencial devolve à população um pouco de tranquilidade a respeito da relação do governo federal com as denúncias de corrupção. Foi uma medida necessária, já que várias pessoas mencionadas em documentos da Lava Jato trabalham muito próximas ao presidente Michel Temer. E as suspeitas de proteção aos amigos, que já não eram recentes, ganharam corpo no início de fevereiro com a nomeação do ex-governador do Rio de Janeiro Moreira Franco como titular da Secretaria-Geral da Presidência, o que lhe assegurou foro privilegiado. É ocioso dizer que a nomeação foi um grave erro de governo, soando como indiferença aos clamores da opinião pública por uma ação transparente do poder público no combate à corrupção.

"O governo não quer nem vai blindar ninguém", afirmou ontem Temer. Lembrou ainda que o governo jamais interferirá na Operação Lava Jato, que está a cargo da Polícia Federal e do Ministério Público. E, como se não quisesse deixar margens para qualquer tipo de dúvida, explicitou que fazia a declaração “em caráter definitivo".

Trata-se de um firme compromisso com a população. As nomeações foram feitas e serão mantidas – essa é a promessa implícita de Temer – tão somente em razão do interesse público. Caso alguém seja denunciado, perde o cargo e, consequentemente, o foro privilegiado.

Infelizmente, nos dias de hoje, a ida dos processos penais às instâncias inferiores é, aos olhos da população, garantia de uma menor impunidade. Não deveria ser assim. O natural seria o inverso – que as instâncias superiores aplicassem a lei com mais diligência e correção que os juízes da primeira instância. No entanto, as evidências, especialmente no âmbito da Lava Jato, indicam que os processos penais no Supremo Tribunal Federal (STF) seguem um ritmo bem mais lento.

Como se vê, é mais um efeito deletério daquilo que alguns juízes dizem ser “os tempos próprios da Justiça: há uma relação direta entre foro privilegiado e procrastinação – e esta pode ser sinônimo de impunidade. Trata-se de evidente paradoxo. Os processos contra os ocupantes dos principais cargos da República – e que, portanto, têm maior responsabilidade e maior visibilidade – têm um ritmo mais lento que os das pessoas comuns, como se aqueles tivessem menor importância.

As reações à nomeação de Moreira Franco como ministro evidenciam uma vez mais que a sociedade não tolerará a corrupção. O presidente Temer parece ter entendido o recado e encontrou uma maneira de provar com fatos a inexistência de desvio de finalidade na ascensão do ex-governador ao cargo de ministro. Se a intenção era protegê-lo de eventuais denúncias, o compromisso de ontem mata pela raiz a eficácia da manobra. Uma vez denunciado, o ministro estará fora do governo. E isso não serve apenas para ele. Todos os demais ministros com questões pendentes na Justiça ficam previamente avisados das condições para permanecer no governo.

Cabe agora ao STF, dentro de suas competências institucionais, ter semelhante atitude de rechaço a qualquer impunidade. Urge imprimir maior diligência ao andamento dos processos criminais de sua competência. Pois se há uma espécie de crime cuja impunidade é especialmente danosa ao bem comum, são os crimes cometidos por autoridades.

Boa parte do apoio da população à Lava Jato é decorrência da igualdade de tratamento dispensada pela Justiça de primeira instância, frequentemente corroborada pelo TRF da 4.ª Região. Também os poderosos são investigados e, quando é o caso, denunciados e punidos. Mas quando o poderoso tem foro privilegiado, seu caso passa para o STJ ou para o STF. É necessário, pois, que o respeito a esse princípio básico do Estado Democrático de Direito possa ser constatado em todo o Poder Judiciário, e não apenas em algumas instâncias.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

A política sem guerra

Por Angela Alonso - Folha de SP (12.02.2017)
Quem acompanhou a agonia e morte de Marisa Letícia Lula da Silva viu salientes dois lados da sociedade brasileira. De uma parte, a solidariedade. O viúvo foi confortado por correligionários, pela gente comum e mesmo por adversários políticos, aos quais abraçou sem restrições.

De outra parte, a incivilidade. Enquanto anônimos buzinavam na frente do Hospital Sírio-Libanês e xingavam Marisa Letícia nas redes sociais, o neurocirurgião Richam Faissal El Hossain Ellakkis e a reumatologista Gabriela Araújo Munhoz espargiam idêntica violência dentro do hospital. Contrariando o esperado da profissão, o médico desejou que a paciente ardesse no inferno: "daí o capeta abraça ela", registrou no WhatsApp. A atitude repugna, mas não surpreende.

Os dois médicos comungam o perfil de parte dos manifestantes que foram às ruas de São Paulo em megaprotestos nos três últimos anos: têm alta escolarização e alta renda, são brancos, são jovens. E são intolerantes.

Numa das manifestações –provavelmente contra o Mais Médicos, programa que prometia universalizar o acesso à saúde–, uma mulher desse perfil se deixou fotografar com cartaz caçoando do dedo que o ex-presidente perdeu na prensa: "Lula, achamos seu dedo! Tá no *#!% do povo brasileiro!".

A atitude dos médicos se alimenta do espírito que animou muitos manifestantes, desde os de 2013 até os que pediam o impeachment de Dilma. Nesses protestos se exigiu o bom funcionamento das políticas públicas, mas também se destilou ressentimento antipetista. Muito saudável que cidadãos cobrem governos, combatam a corrupção, defendam melhorias. E que tenham preferência partidária. O preocupante é que se exprimam pelos meios agora cotidianos: a intolerância, a desumanização e a defesa do extermínio do adversário.

É arriscado comparar conjunturas históricas, mas o mecanismo que opera na intolerância costuma ser constante. Ele se encarna exemplarmente num padrão de sociedade, alicerçado na escravidão, e num regime político, o fascismo. Em ambos, destitui-se certo grupo de pessoas de sua humanidade. O rebaixamento à animalidade permite, num caso, o uso indiscriminado do corpo do escravo por seu dono, no outro, o aniquilamento dos que –como o atestam filmes nazistas– nada mais seriam do que ratos.

O processo tem, pois, história longa. E costuma acabar mal. O extermínio moral precede e autoriza o extermínio físico do diferente.

Registros dessa política da destruição do adversário têm aparecido amiúde no noticiário brasileiro. Pouca dúvida resta, se resta alguma, sobre o protagonismo do ex-governador Sérgio Cabral e do empresário Eike Batista em episódios de corrupção. Os delitos demandam pena. Contudo, nenhuma lei autoriza humilhar presos pela exposição de seus corpos, como na escravidão, e raspar-lhes a cabeça, como faziam os fascistas. Aí a punição se converte em vingança.

O padrão grassa nos cárceres brasileiros. Longe das câmeras, multidão de pobres vive sem acesso a direitos básicos. Slogan eleitoral de Paulo Maluf sintetizou o motivo: bandidos não seriam membros da classe dos "humanos direitos". Essa partição da humanidade em bons e maus, nós e eles, justifica ignorar, excluir e torturar os diferentes –em cor, sexualidade, credo religioso, tendência política etc. Tortura, aliás, defensável, segundo o novo indicado ao Supremo Tribunal Federal.

A parte da sociedade brasileira a que pertencem os médicos Gabriela e Richam opera nesse registro. Julga-se cidadã do andar acima, mais confortável com seus pets que com a "gentalha" que habita o térreo e da qual preferiria se livrar em definitivo.

Antípodas desse comportamento são os abraços dos ex-presidentes. Lula estreitou um por um todos os que foram se despedir de sua mulher, independentemente de posição social ou cargo. Políticos, aliás, tiveram que aguardar na fila, atrás da gente humilde. O ato reconhece que somos todos membros da mesma humanidade.

Com idêntica fraternidade, Fernando Henrique retribuiu, na morte de Marisa Letícia, o abraço que recebera de Lula quando do funeral de Ruth Cardoso. Esses abraços talvez sejam a mensagem mais poderosa que os dois líderes de partidos rivais podem transmitir ao país: a política não é a guerra. É justamente sua evitação. É possível discordar, criticar, se opor, sem trucidar –moral ou fisicamente. O diferente pode ser um adversário, mas não precisa ser um inimigo. A tolerância é a base da democracia. O resto anda na borda de um abismo, o do totalitarismo e da barbárie.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Erro grave na hora errada

Editorial - Estadão
O imbróglio jurídico envolvendo a nomeação de Moreira Franco como ministro da Secretaria-Geral da Presidência – até ontem, eram duas liminares suspendendo o ato presidencial – é apenas parte do problema, e nem é a principal. A ascensão do amigo a um cargo com foro privilegiado foi um erro não trivial de Michel Temer, voltando a expor de forma acintosa as graves fragilidades do primeiro escalão do governo.

Ocioso dizer que o governo não precisava passar por isso justamente neste momento. O País começava a manifestar uns primeiros sinais de melhora, depois de meses de ansiosa expectativa por estancar a crise econômica. O governo de Michel Temer ganhava contornos de estabilidade até então inédita – afinal não faz muito ainda havia vozes a sustentar que Temer não chegaria a 2018. O Executivo havia colocado seus candidatos prediletos nas presidências da Câmara e do Senado, preparando terreno para as reformas. Pois bem, justamente nesse contexto de virada de jogo, Temer, certamente entusiasmado com as vitórias recém-conquistadas, nomeou como ministro o então secretário do Programa de Parcerias de Investimentos, Moreira Franco, personagem frequente em documentos da Operação Lava Jato.

Isso não significa dizer que as liminares suspendendo a nomeação de Moreira Franco foram corretas. Evidentemente os juízes da 14.ª Vara Federal em Brasília e da 6.ª Vara Federal no Rio de Janeiro não têm competência para sustar um ato do presidente da República. Caberia ao Supremo Tribunal Federal, se fosse o caso, analisar a legalidade da nomeação. Seria ingovernável o país em que qualquer juiz federal de primeira instância pudesse suspender a nomeação de um ministro de Estado.

Ganha então contornos de ironia quando a juíza da 6.ª Vara Federal do Rio, logo após o Tribunal Regional Federal da 1.ª Região ter cassado a primeira liminar, concede outra, dizendo: “Não se afigura coerente que suas promessas ao assumir o mais alto posto da República sejam traídas exatamente por quem as lançou no rol de esperanças dos brasileiros, que hoje encontram-se indignados e perplexos ao ver o seu presidente adotar a mesma postura da ex-presidente impedida e que pretendia, também, blindar o ex-presidente Lula. Ao mestre com carinho”. O presidente Temer poderia ter-se poupado – e aos brasileiros que confiam em seu governo – desse reproche.

A nomeação de Moreira Franco é um erro de governo. Em primeiro lugar, o ato afronta a opinião pública, alienando ainda mais parte considerável da população que, com acerto, julga o governo não apenas pelas lentes da eficiência, mas também pelas da moralidade. É evidente que a população não deseja tolerância com a corrupção. E, com razão, sente-se indignada com esse tipo de nomeação, que transmite uma mensagem afrontosa a todos os que enfrentam as dificuldades cotidianas sem fazer a mínima concessão à honra. Afinal, é o presidente dizendo que não encontrou nenhum cidadão sem o passivo que pesa sobre o ex-governador que estivesse em condições de assumir o cargo.

Além de ignorar a opinião pública, a nomeação de Moreira Franco desestabiliza o governo. A estabilidade – esse bem tão necessário ao País, do qual o presidente é o primeiro garantidor – não depende só dele. Seus auxiliares diretos podem pôr a perder esse bem tão precioso. E é de justiça reconhecer que, na matéria, Moreira Franco não tem o pior currículo. Há outros, no círculo de colaboradores próximos de Temer, com maior potencial de dano. E, se o presidente acha que a fórmula para se proteger é a divulgação das delações, urge abandonar essa doce ilusão. O volume é tal que impede qualquer sonho de instantaneidade. Quando começarem os vazamentos, começarão longas semanas, talvez meses, de doloroso sofrimento.

A realidade sempre restringe a liberdade de atuação, também a um presidente. Fazer política, no sentido nobre da palavra, é ter um diagnóstico claro do que é possível a cada momento. Muitas vezes as melhores decisões para o País estão bem distantes de ideais de companheirismo e amizade, que são os sentimentos que parecem unir o sr. Michel Temer a algumas pessoas que o cercam. Na Presidência, ele tem obrigações maiores que as da camaradagem, do convívio de longos anos. Seu dever, agora, é com cada um – e com todos – dos brasileiros que governa. Não pode mais manter seu destino ligado a pessoas que, no mínimo, têm muito a esclarecer à Justiça e à sociedade.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Há 50 anos, ditadura sancionou Lei de Imprensa

No dia 9 de fevereiro de 1967, o presidente Castello Branco (foto) sancionou a Lei de Imprensa (nº 5.250), que, segundo ele, serviria para regular “a liberdade de manifestação de pensamento e informação”.

Em outras palavras, a lei que propunha proteger a liberdade de imprensa seria usada como instrumento para restringi-la, com intimidações que iam de multas até prisões.

Punições estas que poderiam ser aumentadas se o conteúdo publicado fosse considerado injúria, calúnia ou difamação contra o presidente da República ou demais autoridades.

Faltava pouco mais de um mês para que o então chefe da nação, no poder desde o golpe militar de 1º de abril de 1964, que destituiu João Goulart, passasse a faixa presidencial para Arthur da Costa e Silva.

O terreno estava sendo preparado para o que viria de forma contundente com o Ato Institucional nº 5, baixado em 13 de dezembro de 1968 pelo general Costa e Silva: a censura.

O AI-5 instituiu o que viria ser o período mais pesado da ditadura brasileira, com pessoas presas, torturadas, desaparecidas ou mortas.

Em pouco tempo, censores do governo estavam dentro das redações para decidir o que deveria ser publicado ou não, o que poderia ir ao ar.

A Constituição de 1988, feita após o regime militar, dedicou seu capítulo 5 ao tema comunicação social (arts. 220 a 224). Nele é tratada a liberdade de expressão e de imprensa, a censura, a propriedade de empresas jornalísticas e a livre concorrência.

“Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV”, diz o primeiro inciso do artigo 220.

O artigo 5º da Constituição Federal, em seu inciso IX, é mais direto: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

Ao mesmo tempo em que Carta Magna brasileira deixou claro que a censura não fazia parte de um Estado democrático, colocou alguns tipos de controle nos meios de comunicação, como exemplo os controles administrativo, judicial e social.

Apesar disso, durante o governo dos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, a questão de uma nova regulamentação sobre a mídia foi levantada algumas vezes.

Na época, os meios de comunicação temiam o cerceamento de conteúdo, algo que foi negado pelo então ministro da Comunicação Social, Franklin Martins.

A ideia não vingou, e em 30 de abril de 2009, o STF (Supremo Tribunal Federal) derrubou a Lei de Imprensa, uma das últimas leis do período ditatorial ainda em vigor, por considerá-la incompatível com a Constituição Federal e a democracia.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Silêncio cúmplice

Editorial - Estadão
Aproveitando o anseio da população pelo fim da impunidade, têm surgido com alguma frequência manifestações a favor de um Direito autoritário, próprio das tiranias. Ainda que seja apresentado em cores novas, trata-se do velho sofisma de prometer, ao preço das liberdades e garantias individuais, um Estado perfeitamente eficiente no combate ao crime.

Não é justificável a defesa dessas ideias, mas é compreensível que, numa sociedade democrática e plural, haja quem considere conveniente restringir as liberdades pessoais em troca de uma eventual redução da impunidade. Surpreende, no entanto, a ausência de vozes a denunciar essas ideias equivocadas, mesmo quando elas são defendidas por gente em posição de destaque na vida pública.

Não é segredo para ninguém, por exemplo, que vários membros do Ministério Público Federal (MPF) propuseram e defenderam as tais Dez Medidas Anticorrupção, apesar dos explícitos abusos contidos em seu bojo, como a aceitação de provas obtidas ilicitamente, restrições ao habeas corpus e o fim, na prática, do prazo de prescrição.

Também não é segredo para ninguém que procuradores atuantes na força-tarefa da Lava Jato – entre eles o seu coordenador, o procurador da República Deltan Dallagnol – defendam a possibilidade de condenar uma pessoa mesmo que paire alguma dúvida se de fato ela cometeu o crime do qual é acusada.

São preocupantes tais ideias, mas ainda mais preocupante é a falta de reação diante delas. Não se ouve, por exemplo, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) emitir um claro posicionamento sobre tais disparates, como também não se ouvem as associações da magistratura, tão atuantes quando se trata de defender privilégios da classe, protegendo o bom Direito. Atuando assim, tais entidades correm o risco de serem vistas como corporativistas e nada mais – seriamente empenhadas nos interesses de seus membros e desleixadas quando é o interesse público que está em jogo.

Caso ainda mais grave é o do Ministério Público Federal, que, diante da notória atuação de alguns de seus membros em defesa desses abusos, não informa a população de que tais ideias não representam posição da instituição, sendo mera opinião pessoal de alguns procuradores. Fica parecendo que a instituição comunga com estripulias incompatíveis com o Estado Democrático de Direito.

Os evidentes méritos da Operação Lava Jato não são garantia de infalibilidade das pessoas que nela atuam. Justamente por isso são graves as omissões de quem pode e deve apontar eventuais equívocos, já que tal silêncio fragiliza a operação que até agora produziu muitos resultados positivos e ainda precisa produzir outros tantos. Seria lamentável pôr tudo isso em risco por simples medo de serem mal interpretados, como se estivessem a defender a impunidade.

O apoio da população à Lava Jato deve estimular uma atuação diligente de quem pode e deve corrigir eventuais desequilíbrios. Uma omissão nesse campo, por medo de setores radicais da opinião pública, significaria incorrer no mesmo equívoco que a Lava Jato vem combater – a prevalência do interesse pessoal frente à lei e ao interesse público.

A força da Lava Jato está no cumprimento da lei. Quando alguns de seus responsáveis, empenhados em combater o crime, ultrapassam eventualmente os limites da lei, devem ser alertados. Com inúmeros exemplos, a história mostra que a omissão das instituições na defesa do bom Direito tem um alto custo social e institucional, servindo muitas vezes de pavimentação para caminhos não democráticos.

Prevalece, por exemplo, a tendência, a pretexto de combater a corrupção, de condenar todas as doações empresariais feitas a partidos e políticos, como se todas fossem igualmente ilícitas. Como se sabe, doação empresarial não é coisa boa para uma democracia, como bem reconheceu o Supremo Tribunal Federal (STF), considerando-a incompatível com a Constituição. No entanto, por um bom tempo, elas foram legais. Tratar todas como se fossem propina é um despautério jurídico, com graves efeitos políticos e sociais. Se quem pode e deve falar se cala, dá assim sua vênia. Pode até ficar bem com certos colegas no momento, mas corre o sério risco de não ser perdoado pela história.

‘Social’ à moda do PT

Editorial - Estadão
É bem a cara do populismo petista: quase metade dos imóveis destinados à faixa de público mais carente atendido pelo Minha Casa, Minha Vida, construídos entre 2011 e 2014, apresenta defeitos de construção. Foi o que comprovou a fiscalização do Ministério da Transparência. Trincas e fissuras na estrutura, infiltrações, vazamentos e problemas na cobertura foram verificados em 93 mil unidades de 336 dos 688 empreendimentos do programa fiscalizados. É uma realidade vergonhosa que demonstra o descaso da administração Dilma Rousseff em relação aos brasileiros mais carentes que têm acesso ao programa. E comprova que, para o PT, o programa sempre teve um caráter mais eleitoral do que social.

Na faixa 1, que foi objeto da fiscalização por amostragem do Ministério da Transparência – antiga Controladoria-Geral da União –, o subsídio fornecido pelo governo para a aquisição do imóvel chega a mais de 90% do valor da unidade, o que significa que o beneficiário recebe a moradia praticamente de graça. Paga, porém, um alto preço pelo descaso com que o contratante da obra, o governo, parece dar-se por satisfeito com a exploração política do programa, relevando a negligência, que só pode ser deliberada, por parte de empresários inescrupulosos que lucram com o rebaixamento do custo por meio do uso de materiais de qualidade inferior e mão de obra desqualificada.

É pungente o depoimento de Wagner Mellini, presidente da associação de moradores de um conjunto habitacional em Ribeirão Preto, onde os apartamentos apresentam alarmantes sinais de deterioração apenas seis anos depois de entregues: “No térreo, quando chove, a água atravessa por baixo da parede e vai parar dentro das unidades”. No ano passado os moradores entraram na Justiça para obrigar a construtora a fazer os reparos necessários. “A gente fica preocupado, com medo de tudo desabar”, afirma o cadeirante Lucas Henrique da Costa enquanto aponta os vários e graves problemas em seu apartamento. Essa é uma triste realidade que se multiplica por praticamente todos os empreendimentos fiscalizados, mas é particularmente grave em 20 deles, onde foram encontradas falhas que comprometem as condições de uso e segurança.

De outra natureza, essa puramente política – embora não exclua deficiências de construção –, são os problemas que envolvem as unidades habitacionais que são distribuídas no âmbito do Minha Casa, Minha Vida Entidades, segmento do programa oficial cujo cadastramento de possíveis beneficiários é delegado a cooperativas habitacionais, associações, movimentos sociais e outras entidades privadas sem fins lucrativos. Nessa variedade do programa habitacional do governo federal, teoricamente as famílias beneficiadas “participam diretamente da gestão dos recursos e do processo de construção das unidades habitacionais”, o que resulta em “melhor qualidade a custos menores”, segundo não se cansa de propagandear um dos principais exploradores desse sistema diferenciado, o agitador Guilherme Boulos, chefão do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST).

No geral, o cadastramento do programa é feito pelas prefeituras, o que, obviamente, implica níveis variados de influência política na escolha dos beneficiários. Mas no caso do Minha Casa, Minha Vida Entidades, em particular no que diz respeito à atuação do MTST, a rigorosa seleção política é regra essencial, uma vez que não se trata apenas de selecionar pessoas carentes cujo perfil se encaixe no programa, mas de escolher militantes não apenas do movimento em favor dos sem-teto, mas baderneiros dispostos a serem manipulados ou a se prestarem como massa de manobra nos atos de vandalismo a que o MTST frequentemente recorre para atacar os “inimigos do povo”.

Movimento dito “social”, de inspiração marxista, criado em 1997 como ramificação urbana do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), o MTST de Guilherme Boulos também se beneficiou do patrocínio oficial dos governos petistas. Hoje órfão do poder, continua manipulando os sem-teto com a mesma hipocrisia com que o PT sempre o fez.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Forrest Trump

Por Arnaldo Jabor - Estadão
Em 96, escrevi sobre dois filmes que me arrepiaram a espinha. Um deles era o Forrest Gump e o outro o Independence Day, filme catástrofe-ufanista.

Foram dois sucessos internacionais e também dois recados para o mundo de hoje.

Relendo hoje os dois textos, vejo que as condições objetivas para a “desconstrução” do mundo atual pelo Trump já eram cozinhadas no fogão das bruxas. Dava para ouvi-las como em Macbeth, cantando: “Something wicked this way comes” (Coisas terríveis vêm por aí...).

Na era Clinton, a sabotagem dos republicanos já estava rolando. Não deram um minuto de sossego para o homem. A cada dia, inventavam uma nova sacanagem.

Foram acusações imobiliárias em Whitewater, pecados em Little Rock até que, um belo dia, caiu do céu a história da Monica Lewinsky dando chance ao promotor Kenneth Starr de liderar a campanha mais implacável que vi na vida, prefigurando o golpe de direita que depois se consumou com a reeleição de Bush. Estranhamente, tudo começou e acabou em sexo - da boca de Monica até o Trump puxando as mulheres pelas partes íntimas.

Hoje, já dá para ver que as administrações democratas são fogos fátuos perto dos fundamentalistas do Tea Party - a verdadeira América é fisicamente republicana.

Obama foi uma dádiva da sorte. Ele veio meio fora da curva, por seu raro carisma. Se o Mitt Romney tivesse ganho, a desgraça de hoje já teria começado há oito anos. Obama serviu para segurar bastante a barra das sabotagens, mas os indícios de um rumo boçal e retrógrado já estavam no ar.

No cinema, por exemplo, já aparecia o desejo psicótico desse país. Qual cinema do mundo que celebra permanentemente a violência, o sangue, a porrada e a inclemência? Qual o cinema que retrata toda hora a destruição do próprio país, como em Independence Day?

Quando eu vi Forrest Gump, senti (e escrevi) que alguém como Trump viria nos infernizar a vida. Estavam ali os sinais. Primeiro, me espantou o infinito sucesso de Forrest Gump. Foi dos maiores bilheterias da história. Por quê?, pensei. E escrevi que aquele filme transformava os últimos 30 anos da história americana num trem de banalidades, desmoralizando as lutas civilizatórias que a América travou nos anos 60, 70. Forrest Gump condena os que criticaram o conformismo e o preconceito. Tudo aquilo que contestou o sonho americano, tentando aperfeiçoá-lo, é ridicularizado para impor uma “sabedoria do idiota”, superior a qualquer reflexão culta ou politicamente moderna.

No filme, o movimento negro foi retratado como um grupo de loucos que espancam mulheres, os hippies parecem mendigos palhaços, as liberdades sexuais conquistadas são viradas em sujas orgias pecaminosas e decadentes, os heroicos veteranos do Vietnã, aleijados e abandonados, foram retratados como detestáveis e mentirosos, na época em que Bush vivia alcoolizado no Texas, fora da guerra pelas graças do pai. No filme, a namorada de Gump, Jenny, é punida por seus excessos, já que ela foi hippie, namorou um negro, contestou a guerra em Washington. Por isso, morre castigada por um vírus misterioso, uma sugestão da aids. Escrevi: “Forrest Gump é o precursor do que seremos. É o habitante ideal da sociedade conformista do futuro. É o idiota que venceu”. Não foi por acaso que Bush, em 2004, discursou em Yale para os alunos: “Eu sou a prova de que um mau estudante pode ser presidente...!”.

Gump foi lançado em 94. Em 96, um outro filme, Independence Day prefigura (e não só ele, mas outros como Godzilla, Deep Impact, Armagedon, tantos...) a América e o mundo de hoje. Gump era o personagem e Independence Day, o cenário e contexto. Para quem não viu, Independence Day conta a história de ETs invadindo os Estados Unidos.

Com o fim da guerra fria, os americanos ficaram sem inimigos claros. No imaginário de Hollywood, os inimigos passaram a ser os rebeldes e psicopatas anti- sociais que Gump condena ou então, no caso de Independence, os ETs - que eram visivelmente uma metáfora de invasores estrangeiros. Seriam quem? Os chicanos, os islâmicos, os excluídos, nós de Governador Valadares? Quem tinha ocupado o lugar dos comunistas? Em plena propaganda da “globalização liberal”, já estavam ali, visível a olho nu, o nacionalismo republicano, o protecionismo e a paranoia unilateral contra o resto do mundo que Trump, esse perigoso narcisista sádico, trouxe.

E mais: o filme denotava um desejo inconsciente de autodestruição, um desejo de vitimização paranoica, de modo a legitimar revides e vingança.

Escrevi em 96: “O filme atende aos desejos dos terroristas (muito antes de Osama Bin Laden, que deve ter se inspirado nesses enredos). No filme, a América é destruída com fogo e sangue, espatifada com amor e ódio - um pavoroso delírio de ruína misturado com um patriotismo vingativo. Os marginais e vagabundos (como os contestadores dos anos 60) vibravam na cena em que os ETs destroem a Casa Branca”.

Quando vi Forrest Gump e Independence Day, notei que algo importante estava mudando, tive a visão esquisita de um futuro torto.

E não deu outra: veio o 11/9 e agora o Trump, o “Forrest Trump”. Senti que a barra pesava nos Estados Unidos - vi que o “godzilla” republicano já andava solto.

Hoje, os Estados Unidos estão diante de um dos maiores desastres de sua história. Toda a grandeza da democracia americana virou um pesadelo humorístico. O mundo perde o respeito pela América, diante desse suicídio. Esse bufão é o retrato caricatural da estupidez e da crueldade do Partido Republicano, que virou o inimigo interno do próprio país. Ele é o homem-bomba da América. E pode estourar no mundo também, completando o xadrez sinistro dos líderes populistas atuais, do porco da Coreia, passando por Putin, Assad etc. Agora, sentimos medo e depressão. A ficção virou realidade? Ou será o contrário?

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Família é fator determinante no crescimento de torcidas de futebol

Por Rodolfo Ribeiro - Estadão
O que seria de um time de futebol sem sua torcida? Entender a importância de seus aficionados é um fator preponderante para o crescimento de um clube, e os fatores que fazem aumentar seu número são dados relevantes para elaborar estratégias que atraiam novos fãs. Assim como os próprios times de futebol, o pesquisador Rodolfo Ribeiro, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP, interessou-se pelo tema e desenvolveu sua tese, defendida na última semana, sobre os motivos que levam as pessoas a torcer por determinada agremiação.

A pesquisa de Ribeiro se baseou num conceito de estratégia na área de administração chamado “recurso imperfeitamente móvel”. Trata-se do valor que uma marca carrega e transmite, sustentado por aspectos como país de origem, qualidade, história e outros fatores de análise psicológica. “Isso é algo que não pode ser adquirido no mercado, é construído, como um bloqueio competitivo”, diz.

Dentro da literatura especializada, segundo o pesquisador, há uma lacuna para explicar de onde surge tal recurso, e seu trabalho buscava preenchê-la. “Em torno da torcida gira toda a captação de receita de um clube de futebol, seja por meio da bilheteria, dos patrocínios, da venda de produtos; o tamanho da torcida é o que determina o tamanho do mercado, o que faz dela um recurso extremamente necessário para os clubes, e ele é diferente para cada um deles.”
 
Com base nisso, o pesquisador conseguiu estabelecer alguns critérios que seriam relevantes em suas simulações, como os títulos, exposição na mídia (número de jogos televisionados num ano em particular) e o número de jogadores convocados para a seleção naquele ano. Concluída a primeira etapa, quando os depoimentos deixaram de apresentar novos fatores a serem considerados, Ribeiro desenvolveu um questionário que foi respondido pela internet por mais de mil pessoas, filtradas de acordo com idade, residência e outros aspectos para chegar a 352 respostas úteis.

Embora o desempenho esportivo de um clube seja importante para atrair novos torcedores, Ribeiro concluiu que o fator mais determinante é a dinâmica familiar. “A probabilidade de uma pessoa nascida numa família de fanáticos pelo Corinthians torcer pelo São Paulo, por exemplo, existe, mas é muito pequena, coisa de 2% a 3%”, diz.
Numa situação hipotética em que a divisão das torcidas dos três clubes mais populares de São Paulo Corinthians, São Paulo e Palmeiras – fosse igual, com famílias de torcedores dos diferentes times formando-se aleatoriamente, Ribeiro calcula que o time com desempenho mais forte em número de títulos conquistados poderia crescer, em 10 anos, de um terço da torcida para cerca de 40%. Porém, na realidade em que o tamanho das torcidas é bastante díspar, é difícil quebrar a diferença, justamente pela relação familiar em que alguém que já torce por determinado time influencia a escolha de um futuro torcedor.

“Um time muito campeão nessa situação de desequilíbrio não vai ‘roubar’ torcida do time com mais torcedores, mas, sim, do que tem menos. No caso de São Paulo, o Palmeiras, por exemplo, ao ter sucesso por uma década, não tiraria futuros torcedores do Corinthians, mas do São Paulo.”   

Segundo o pesquisador, os clubes devem ter isso em mente ao planejar suas estratégias. “É importante ter noção da influência da dinâmica familiar e investir em fortalecer essa relação. Não é que uma torcida seja mais forte que a outra e por isso não vai perder torcedores, mas a torcida que for maior, que tiver mais membros dentro das famílias, é a que mais determina para quem os fãs em potencial vão torcer.”
O doutorado de Rodolfo Ribeiro teve orientação do professor Edison Fernandes Polo, da FEA.