sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

É preciso reduzir a beligerância

Por Jaíza Fraxe, juíza federal do Amazonas.
O Brasil em 2018 precisará, desde o primeiro dia, fazer um grande esforço para ser derrotado na arte ou desastre de entortar o direito, seja em nome de pseudos paradigmas da liberdade, da dignidade ou da idolatria.

O Brasil em 2018 precisará compreender a importância da cultura, tradição e ancestralidade de seus povos, sem os quais a descoberta da cura de muitas doenças jamais existiria e a turma da tapioca jamais conheceria essa iguaria, assim como ao sabor do guaraná e do vatapá. Nem em redes seria possível embalar.

O Brasil em 2018 precisará entender o que significa direitos humanos, expressão destinada a proteger as mulheres e os homens de bem e não os do mal, porque violência se combate com penas justas e programas sociais e não com cabeças cortadas e jogadas em fogueiras.

O Brasil precisará aprender em 2018 que as redes sociais não são uma versão pós-moderno da Lei de Talião, onde a cada olho furado, retira-se o olho do agressor.

Admitir nos dias atuais reciprocidade de crime e pena, é o mesmo que incentivar a beligerância – já reinante na internet; é aceitar com passividade, habitualidade ou normalidade a prática de destroçar corpos ou decepar cabeças a sangue frio. O fato desafiaria tudo o que pensamos sobre os direitos que visam a resguardar os valores mais preciosos dos seres humanos, em especial a solidariedade, a igualdade, a fraternidade, a liberdade e sobretudo a dignidade.

O Brasil em 2018 precisará explicar aos seus filhos a grande violação continua de direitos imposta às mulheres em sua história, onde se registra que os homens votaram pela primeira vez em 1532 e elas somente em 1932. São 400 anos de humilhação de gênero que necessitam ser desmascarados desde os livros didáticos da educação infantil até a pós-graduação.

O Brasil precisará em 2018 dar um salto na educação ambiental, para que todas e todos saibam que os recurso do planeta são finitos, estão se esgotando e a manutenção do ritmo consumerista contaminará e destruirá nossas águas e florestas em um século!

O Brasil precisará aprender a respeitar a população LGBTI e alcance da expressão “direitos iguais”, pois a perseguição e a discriminação fazem com que 1 membro dessa população seja assassinado a cada 25h.

O Brasil em 2018 será convidado a respeitar todas as religiões, todos os credos, todas os rituais. E respeitará os que não creem. Pois uma e outra opção se inserem na liberdade de escolha.

O Brasil necessitará respeitar a população em situação de rua. Ninguém mora sem teto porque quer. Ninguém passa fome e frio porque escolheu assim. As oportunidades não são iguais para todos nesse país e precisamos entender as diferenças, lutando para que diminuam a cada dia.

Em 2018, Brasil precisará de toda ajuda e socorro. Não fuja da luta, não seja só mais um martelo contra as feiticeiras. A inquisição não precisa voltar explicitamente; ela já mora em cada um de nós e precisa ser expulsa do vício de hostilizar.

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Ayres Britto saúda instituições que “impedem desgoverno”

Congresso em Foco: Com base no que senhor tem visto no país, com foco em 2017, institucionalmente o Estado brasileiro faliu? Como anda o Judiciário?
Ayres Britto: Não. Eu penso que há muitos modos de encarar o que vem acontecendo com o Brasil nos últimos dois anos. Vê-se por um prisma negativo, de desânimo, diante das malfeitorias, dos desvios de conduta no âmbito, sobretudo, da parceria do poder público com a área econômica. Porém, por outro lado, vê-se as coisas com ânimo, com otimismo, porque tudo está vindo a lume. Nada, hoje, se passa no espaço do mistério. E já é possível perceber que a democracia brasileira nos possibilita colher frutos importantíssimos. Como, por exemplo, liberdade de imprensa em plenitude; hiperaquecimento da cidadania, notadamente pelas redes sociais; soberania e independência do Poder Judiciário – como nunca antes se viu, a despeito de um ou outro revés, uma ou outra situação, digamos, de interpretação equivocada da própria Constituição. Mas, em linhas gerais, estamos em fim de ano, e fim de ano é para balanço do que se ganhou e do que se perdeu. Embora a gente reconheça, a gente deva concluir que nenhuma democracia vence por nocaute – principalmente democracia jovem como a nossa, que em rigor só tomou contornos mais nítidos com a Constituição de 1988; há menos de 30 anos, portanto –, o fato é que nós, por pontos, estamos vencendo, democraticamente falando. Porque a democracia brasileira tem batido mais, juridicamente, do que apanhado – estamos fazendo balanço. De novo: estamos fazendo a contabilidade de ganhos e perdas.
Nesse sentido, como o senhor avalia o desempenho do STF em 2017, com tantos desafios enfrentados e a enfrentar?
Não foi um bom ano, 2017, para o Supremo se o compararmos com anos anteriores. Mas em 2016 o Supremo produziu, exarou uma decisão que talvez corresponda à mais importante guinada política desses últimos 30 anos, para não dizer da história político-partidária do Brasil. Qual foi essa decisão, arejadora dos nossos costumes, significante de uma inflexão histórica altamente positiva? Foi o Supremo entender que o parágrafo nono, artigo 14, da Constituição, é proibitivo ao financiamento empresarial de campanha eleitoral. Essa foi uma decisão tecnicamente correta, cientificamente perfeita, e que demandou do Supremo aquela coragem moral de que falava [o filósofo grego] Aristóteles, e que tem merecido do ministro Luís Roberto Barroso toda a ênfase. Eu já vinha dizendo, desde meu tempo de Supremo, que em um país de subserviências multisseculares, sobretudo em torno do Poder Executivo, é preciso muita coragem para ser independente. O que eu vinha chamando de coragem para ser independente, Aristóteles – bem lembrado por Luís Roberto Barroso – chamava de coragem moral. A necessidade de coragem moral.
O que senhor diz, por exemplo, sobre o episódio em que o Senado se negou a receber um oficial de Justiça incumbido da missão de comunicar o afastamento do então presidente da Casa, Renan Calheiros (PMDB-AL), de suas funções institucionais? Foi um problema de falta de autoridade do STF ou o deslize está na desobediência do senador?
Ali faltou ao Supremo essa disposição para assumir, com toda coragem, a independência que é própria do Poder Judiciário. O Supremo deveria, sim, ter dobrado a resistência do senador Renan Calheiros. Foi uma conduta muito ruim do Supremo, historicamente acabrunhante. E faço questão de que seja registrado que eu digo isso com todo o respeito, debaixo de todas as venias, mas entendo que houve uma decisão equivocada, tecnicamente, e politicamente acabrunhante.
Como o senhor tem visto o recorrente confronto teórico entre o ministro Luís Roberto Barroso, que tem priorizado a questão ética na interpretação da lei, e o ministro Gilmar Mendes, cujas decisões têm privilegiado os direitos dos investigados?
São dois ministros reconhecidamente de formação constitucionalista. Dois brilhantes intelectuais que têm, sobre a Constituição brasileira, notadamente sobre o programa normativo principiológico da Constituição, visões divergentes. Visões, digamos, de reduzida coincidência. Só não digo “pouco coincidência” porque aí ficaria a pronúncia “co” e “con” – e eu, como sou meio purista na linguagem, evito as cacofonias. Então, eu diria de baixa coincidência. E que minha inclinação pessoal, sem desdouro algum para os posicionamentos do ministro Gilmar Mendes, minha posição pessoal se inclina na direção daquela perfilhada pelo ministro Barroso, a propósito desses últimos embates. Mas eu os considero, sem favor algum, constitucionalistas de envergadura, grandes teóricos do Direito, escritores consagrados. É fato que os dois, a propósito de interpretação de textos constitucionais importantíssimos, delicados, complexos, eles têm divergido mais do que convergido. É um fato. Com toda delicadeza, quero dizer que sou admirador dos dois nesse plano científico. Porém, nos meus escritos, nas minhas aulas, nas minhas entrevistas tenho manifestado entendimentos que se aproximam mais daqueles perfilhados pelo ministro Roberto do que os perfilhados pelo ministro Gilmar – sem qualquer desdouro, desapreço pelo elevado teor de cientificidade do ministro Gilmar Mendes.
Há uma tendência no STF disposta a reformular entendimentos como o que assegura a prisão após condenação em segunda instância e legislações como a que exige ficha limpa de candidatos. Trata-se de ameaça contra o combate à corrupção, ou retrocesso quanto ao que o próprio Supremo já decidiu?
Não vejo como, digamos, uma séria ameaça à prevalência do entendimento até então espojado pelo tribunal no que toca a esses dois temas – o tema do início do cumprimento de pena e o tema da Lei da Ficha Limpa. Há o entendimento de que o Supremo já internalizou, consistentemente, a frase oracular de Albert Einstein que é a seguinte: “Quando a mente humana se abre para uma nova ideia é impossível retornar ao tamanho inicial”. E o que [o físico e teórico alemão Albert] Einstein, em última análise, relançou a frase igualmente, sábia, oracular, definitiva, de Victor Hugo [intelectual francês] segundo a qual “nada é tão irresistível quanto a força de uma ideia cujo tempo chegou”. O fato é que, consciente ou inconscientemente, pouco importa, a sociedade civil brasileira vem internalizando, mais e mais, avançando na direção dos princípios constitucionais até mais do que a esfera política. E mais, até, do que certos segmentos do Poder Judiciário no sentido de que há mesmo, nesses princípios, um fortíssimo traço de processo civilizatório avançado, o que me anima a diagnosticar a realidade brasileira afirmativamente, positivamente, otimisticamente. Ou seja, nós estamos, sim – embora com um recuo pontual, aqui e acolá – estamos acertando o passo das instituições. Estamos colocando os pontos nos “is” do nosso vocabulário ético-penal. É só vermos quem já foi condenado, quem já está atrás das grades…
A despeito da morosidade em alguns casos…
Isso. Perfeito.
No caso do senador Aécio Neves (PSDB-MG), quando foi dada ao Senado a última palavra sobre medidas cautelares a mandatários, o Supremo causou certa estupefação, no mundo jurídico, e indignação na opinião pública. Objetivamente, qual dos princípios constitucionais deve prevalecer quando confrontados, o da harmonia ou o da independência entre os Poderes?
Em uma decisão tecnicamente equivocada [caso Aécio], ao meu juízo, ao contrário do que diz a Constituição, às vezes o erro está na base de inspiração. Eu entendi que, ali, na base da inspiração – e, por isso, a maioria votou a favor de Aécio, em última análise – está o juízo, igualmente equivocado, de que no limite da inconciliabilidade entre o princípio da harmonia e o princípio da independência entre os Poderes, a meu juízo a maioria pensa que prevalece o da harmonia. Então, qual dos princípios é mais importante para a Constituição, no limite da confrontação? É uma pergunta fundamental. E eu digo que é o princípio da independência. Basta comprovarmos o seguinte. No artigo 2º da Constituição, encontra-se a seguinte redação – estou falando de memória: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Veja: há duas ordens tão lógicas quanto cronológicas nesse enunciado normativo do artigo 2º. Primeira ordem lógica e cronológica: são três Poderes da União, e o que vem primeiro? “Independentes e harmônicos”, percebe? Então, primeiro a independência. Se for possível a harmonia, é o ideal, mas sem qualquer sacrifício da independência. Principalmente para o Judiciário, porque sem independência, no rigor dos termos, o Judiciário não é nada, se esfacela, se desmilingue, implode. Quer ver que isso é verdade? Quando vamos ao artigo 60, sobre cláusulas pétreas, no parágrafo quarto, inciso 3º, a cláusula pétrea é a separação dos Poderes, e não a harmonia.
Agora, a segunda ordem, tão lógica quanto cronológica: Legislativo, Executivo e Judiciário. Ou seja, tudo começa com o Legislativo. Por quê? Porque a Constituição diz, no artigo 5º: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. E quem produz a lei é o Legislativo, que vem em primeiro lugar na ordem do artigo 2º. Imediatamente vem o Poder Executivo, que é assim chamado porque executa as leis, com imediaticidade. O Executivo baixa decretos e regulamentos, diz a Constituição, para fiel execução da lei. Então, o Legislativo é um gravitar em torno da lei com imediaticidade. Eis que vem o fecho maravilhoso, lógico: o Judiciário. Porque tudo afunila para o Judiciário, que é o Poder que vai dizer que o Legislativo legislou de acordo com a Constituição e que o Executivo baixou decretos e regulamentos para fiel execução da lei. Então, tudo afunila para o Judiciário, e a maioria não entendeu assim [no caso Aécio]. Mandou afunilar para o Legislativo, e não para o Judiciário. Ao meu juízo, partiu-se dessa base de inspiração, que eu tenho como equivocada, de que no limite da confrontação entre harmonia e independência prevalece o princípio da harmonia.
O STF converteu em pagamento de multa e prestação de serviços comunitários a condenação de prisão em regime semiaberto imposta ao senador Ivo Cassol (PP-RO). Ou seja, ele não foi absolvido. A propósito disso, a Constituição diz, em seu artigo 55, que “perderá o mandato o deputado ou senador [...] que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado”, e que a Casa correspondente deve votar a perda do mandato em plenário (parágrafo 2º daquele dispositivo). Não só Cassol, como o deputado Celso Jacob (PMDB-MG) e, mais recentemente, Paulo Maluf (PP-SP) ainda detêm os mandatos.
Esta é uma questão que chamamos de tormentosa. O artigo 15 da Constituição tem tudo a ver com o artigo 55, parágrafo segundo. O artigo 15, redação originária, diz assim: “É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de…”. Aí vem um dos casos: condenação criminal transitada em julgado. O artigo optou por uma lógica de incidência, e não de eficácia automática – condenada criminalmente, a pessoa tem seus direitos políticos ou cassados ou suspensos, o juiz é que decide. E isso é incompatível com o exercício do mandato. Mas a Constituição também diz o seguinte, no parágrafo 3º do artigo 14: “São condições de elegibilidade, na forma da lei [...] o pleno exercício dos direitos políticos”. Veja a lógica. Se você não estiver na plenitude dos direitos políticos, não pode ser eleito, certo? Aí vem o artigo 15, portanto subsequente ao 14, dizendo que a condenação criminal transitada em julgado acarreta ou a cassação dos direitos políticos ou a suspensão, o que é incompatível com o exercício do mandato. Mas acontece que, na Assembleia Nacional Constituinte, houve abstrações. Paradoxalmente, o artigo 55, fingindo ignorar tudo isso, traz o parágrafo 2º, que diz o seguinte: “Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal [...]“. Olhe que impasse! Por isso digo que a questão é tormentosa. Então, a meu juízo, há que se conciliar as interpretações, porque a Constituição originária não pode conter contradição, tem que eliminar a contradição. O Direito não pode conter antinomia, porque se não perde sua característica de ordem lógica das questões humanas. Então, como conciliar essas questões? Vamos ao atigo 15, que fala de perda ou suspensão dos direitos políticos, e interpreta assim: se o juiz suspender ou cassar os direitos políticos, deixa de operar aquele parágrafo 2º do artigo 55. Se o juiz não suspender e nem cassar, aí sim… Olha como isso é tormentoso. Então, eu respondo que se trata de uma questão tipicamente, classicamente tormentosa, em face da redação de todos os dispositivos aqui mencionados. Todos eles.
Ou seja, um grande conflito de conteúdo sobre o mesmo assunto.
Há um conflito de conteúdo. Estamos à espera de que o Supremo Tribunal Federal resolva, de uma vez por todas, essa questão interpretativa tormentosa. Os direitos políticos fazem parte dos direitos e garantias fundamentais da Constituição, segundo o Título nº II, de que o artigo 15 faz parte. Ao passo em que aquele artigo 55, parágrafo 2º, não faz parte dos direitos e garantias fundamentais. O que quero dizer com isso? É que há uma preferência interpretativa mais favorável, mais elástica, para os direitos e garantias fundamentais. Então, quem for interpretar o parágrafo 2º do artigo 55 há de fazê-lo de modo deferente para com o artigo 15. Se eu estivesse lá no Supremo, eu faria isso, como fiz tantas vezes – por exemplo, nas questões da homoafetividade, das células-tronco embrionárias, da liberdade de imprensa, da proibição do nepotismo. Entre o certo e o certo, eu vou homenagear [o preceito dos] direitos e garantias fundamentais, porque fundamenta, cimenta a personalidade humana, a personalidade coletiva.
O senhor participou da concepção do Conselho Nacional de Justiça, por ocasião da mais recente “reforma do Judiciário”, e já presidiu o colegiado. Como vê as críticas de que o CNJ não tem exercido um controle consistente da magistratura e ainda não estabeleceu, efetivamente, uma orientação de punição a juízes flagrados em malfeitos?
O CNJ é uma instituição do Judiciário absolutamente necessária. Faz parte do Judiciário, segundo o artigo 92, mas não tem função propriamente jurisdicional. Das competências do CNJ, duas são fundamentais, sobrelevam. Uma, porque é anticorporativa; compete ao CNJ o controle das atividades administrativas e financeiras do Poder Judiciário. A outra, porque compete ao CNJ zelar tanto pela autonomia do Poder Judiciário quanto pelo cumprimento dos deveres dos magistrados. A Constituição fez dele [CNJ] um necessário antídoto institucional para livrar o Judiciário de si mesmo naquele sentido do cometimento de, digamos, eventuais desvios de poder. Porque vejamos: não se pode impedir a imprensa de falar primeiro sobre as coisas, nos termos da Constituição, nem o Judiciário de falar por último, não é isso? Ora, quem fala primeiro sobre as coisas é superempoderado. Quem fala por último também é muito empoderado. Cito [o filósofo francês] Montesquieu: como quem detém o poder tende a abusar dele, é preciso criar antídotos contra esse abusos. E o CNJ é um antídoto institucional necessário. O desafio do CNJ é ser rigorosamente independente, imparcial, e não cair na tentação do corporativismo. Eu fui um defensor, quando estava no Supremo, da proposta de emenda constitucional instituidora do CNJ. Fui presidente do CNJ e o conheço de perto. Acho que ele é fundamental para essa qualificação democrática, ética, qualificação de desempenho, também de planejamento da função jurisdicional.
Para finalizar, que nota o senhor daria ao cenário institucional do Estado brasileiro no ano que se encerra em dois dias?
A nota eu não gosto de dar porque é juízo de valor. E eu só gosto do juízo técnico. O juízo técnico, científico, é objetivo – você vai lá e diz: “Olha, aqui na Constituição é assim, assim e assim”. E quando se vai dar uma opinião, eu não gosto, pois é juízo de valor, e não juízo técnico, objetivo. Juízo de valor é juízo subjetivo. E não gosto pelo seguinte. Se eu vou dar uma nota às instituições… Por exemplo, a Polícia Federal, cinco; ao Ministério Público, cinco; ao Poder Judiciário, seis… Digamos assim que eu termino projetando a imagem ruim daquelas menos ranqueadas. E eu acho que estamos em uma fase da vida nacional em que é preciso entender – e o grande público já começa a entender, e a imprensa tem informado muito, consciente ou inconscientemente, volto a dizer – que [o dramaturgo alemão Bertold] Brecht tinha razão quando disse: “Triste de um povo que precisa de heróis”. Que precisa de líderes, de chefes. O povo precisa é de instituições, porque elas são o reino da impessoalidade, o reino da sustentabilidade, da permanência. E [o jurista e diplomata brasileiro] Ruy Barbosa, melhor do que Brecht, disse o seguinte, uma frase pouquíssimo conhecida – a de Brecht é conhecida: ”Salvação, sim; salvadores, não”. Que maravilha, não? Frase fantástica, maravilhosa. Então, eu, você e todos, que gostamos do Brasil, nosso grande amigo – não é fulano, beltrano e sicrano, mas o Brasil que é nosso grande amigo, institucionalmente falando –, nós queremos o fortalecimento das instituições. Queremos desfulanizar a vida brasileira, livrá-la deste compadrio, deste chiclete psicológico, deste grude entre fulano, beltrano e sicrano. Você veja: o Cunha, por exemplo [deputado cassado, preso e condenado Eduardo Cunha, do PMDB fluminense], elegeu 170 deputados, para termos uma ideia. Uma coisa horrorosa.
E hospedou muitos deles em um hotel de luxo em Brasília, em plena campanha para se eleger presidente da Câmara…
Então, o que eu poderia lhe responder, em uma tentativa de pensar grande – e pensar grande pensar institucionalmente –, é o seguinte: há dois blocos de instituições criadas pela Constituição. Há o bloco das instituições que governam, concentradas no Parlamento e no Executivo; e há um segundo bloco, de instituições que não governam, mas que impedem o desgoverno. Querendo e tendo a coragem de agir com independência, elas impedem o desgoverno. Aí eu coloco o Ministério Público, a polícia, o Judiciário e o sistema tribunais de contas. São instituições concebidas para, no limite, impedir o desgoverno. Então eu lhe responderia que as instituições concebidas para impedir o desgoverno, no ano de 2017, funcionaram melhor do que o outro bloco. [O terceiro presidente norte-americano] Thomas Jefferson cunhou duas frases que parecem responder pelo momento brasileiro nos últimos dois, três anos. Primeira frase: “O preço da liberdade é a eterna vigilância”. Por isso lhe disse que a cidadania nunca esteve tão ativada, a imprensa nunca foi tão livre e o Poder Judiciário, a despeito de tudo, nunca foi tão independente. Diga-se o mesmo do Ministério Público, da Polícia Federal. Há recuos, há tropeços, aqui e ali. Mas, no conjunto da obra, sob intensa vigília popular e da imprensa, sob intensa vigília da cidadania, as instituições brasileira avançaram, notadamente as impeditivas do desgoverno.
Segundo pensamento de Thomas Jefferson: “A arte de governar consiste, exclusivamente, na arte de ser honesto”. Por isso que, no Brasil de hoje, consciente ou inconscientemente, a sociedade civil já vitaliza essa ideia de que a corrupção… Os três conteúdos do patrimonialismo, que é aquela indistinção entre o público e o privado para prevalecer o privado; é confundir “tomar posse no cargo” com “tomar posse do cargo”. Eu disse isso em um voto lá no Supremo, quando votei contra o nepotismo e emplaquei meu voto. A sociedade brasileira já entendeu que os três conteúdos do patrimonialismo – corrupção sistêmica, corporativismo e irresponsabilidade com o bem público –, terríficos, deletérios, são uma declaração de guerra ao nosso Estado de civilização, à nossa ânsia de alcançar um patamar civilizatório de vida coletiva. Se combatermos esses três conteúdos, faremos um ajuste fiscal tão heterodoxo quanto eficaz. O ajuste fiscal começa por aí, e vai sobrar dinheiro. Claro que os economistas vão dizer que isso não tem nada a ver com ajuste fiscal, mas tem tudo a ver. Sabe por quê? Porque são esses três conteúdos que exaurem a capacidade estatal de financiar saúde, educação, segurança, serviços públicos, infraestrutura… Se fecharmos as três torneiras do patrimonialismo – desperdício de dinheiro público, corporativismo e corrupção sistêmica –, vai sobrar dinheiro.

domingo, 17 de dezembro de 2017

Uma só entre todas as mulheres

Por Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga - Jornal do Brasil
Naquele tempo, o anjo do Senhor dirigiu-se a uma jovem mulher, noiva do carpinteiro José. E o nome dela era Maria. O anjo lhe revela uma notícia impossível: uma gravidez inesperada e não planejada. Dialogando com o mensageiro divino, ela assume o incompreensível mistério que nela se realiza. E o assume com todas as suas consequências.

Em uma sociedade patriarcal como a de seu tempo e seu lugar, uma gravidez acontecida fora do momento certo e da instituição abrigada por lei era algo perigosíssimo. O compromisso de noivado equivalia ao matrimônio e uma infidelidade dentro deste contexto podia resultar em severa punição, até mesmo o apedrejamento reservado às adúlteras.

Não é difícil imaginar a dificuldade de todo o processo da concepção de Jesus que Maria enfrentaria sem o concurso de José. Igualmente é fácil imaginar o que aconteceria a ela em uma cultura patriarcal, segundo o relato de Mateus, se José não houvesse decidido tomá-la por esposa crendo no que Deus lhe dizia e passando além da letra da lei.

Trata-se de algo profundamente revolucionário a hipótese de que o Espírito de Deus repouse em plenitude sobre uma mulher que apresenta uma gravidez de origem ignorada ou suspeita. Mesmo se o que acontecia na corporeidade de Maria fosse fruto de uma violência – da qual eram vítimas muitas mulheres daquele tempo, jovens camponesas que sofriam o ataque dos soldados romanos de passagem - isso a poria em situação de extrema vulnerabilidade, ameaçada pelo desprezo da sociedade em que vivia.

Por isso, é ainda mais extraordinário que ela, com a força que lhe foi dada por Deus, tenha sido capaz de converter em bem uma situação de insegurança e incalculável risco. Parece-nos que aí está em movimento e acontecendo de fato uma revelação que ilumina problemas tão contemporâneos como a violência contra a mulher, desde a pornografia até as agressões físicas, as violações e as escravidões sexuais.

A jovem aceita o que lhe é anunciado como graça e bênção. O menino que nascer será Filho do Altíssimo. No centro do plano de Deus está uma mulher jovem e grávida. Uma jovem mãe.

O Advento que vivemos e celebramos é um tempo de espera, dessa espera que acontece no ventre fecundo de Maria. Espera lenta e gozosa, como a da gravidez de Maria e de toda gravidez. Em seu ventre livre e disponível cresce a semente da vida, o broto do Povo de Deus, o Salvador a quem dará o nome de Jesus, que significa Javé salva.

Maria é única pela enorme importância que tem o mistério que nela acontece no imaginário religioso cristão. Mistério que no fundo está presente em toda mulher habitada por outra vida, gerando um novo ser, um novo membro do gênero humano. No caso de Maria, este que é gerado tem um destino que supera a mãe, assim como a todos os outros seres humanos. E que por isso torna sua pessoa e vocação matriz de outras relações muito ricas e complexas: a de Deus com a humanidade, a do homem com a mulher, a do filho com a mãe.

Com ela e a partir dela, o Cristianismo e por causa dele o Ocidente encontrou um discurso sobre a maternidade que ultimamente parece correr o risco de perder. Um novo olhar sobre o mistério de Maria exorciza esse risco, pois reabilita a corporeidade feminina – coisa que a arte, com relação a Maria, já andou fazendo – apresentando positivamente a erótica feminina, impossível sem essa glorificação do corpo da mãe judia do homem Jesus.

O culto a Maria exorciza em parte a culpabilidade imposta à mulher desde Eva e suas filhas. E torna possível uma ética para a modernidade, que sem o concurso das mulheres, não poderá ser construída. Trata-se de uma ética que não se confunde com a moral, que não evita a iniludível problemática da lei; ao contrário, lhe dá corpo, linguagem e fruição.

Em Jesus, o próprio Deus assumiu a carne humana, carne de homem e de mulher. O Filho de Deus é igualmente o filho de Maria de Nazaré...nascido de mulher. Este que vigilantes esperamos e cujo nascimento celebraremos no Natal não é diferente daquele que nasceu da carne de Maria. Desta mulher galileia, Jesus de Nazaré recebeu a carne reconhecida e aclamada pela Igreja e pela fé cristã como carne de Deus.

Nascido de Maria, Jesus de Nazaré andou pelos caminhos de terra da humanidade. Tendo nascido do útero desta jovem mulher nazarena, nutrido e alimentado por sua carne e seu leite, cresceu em graça e sabedoria, e surpreendeu seus contemporâneos, os quais, vendo os maravilhosos e poderosos sinais que realizava disseram um ao outro: “É este o filho do carpinteiro? Não se chama sua mãe Maria e não está no meio de nós? “

No centro do mistério da Encarnação, o Novo Testamento situa o homem e a mulher, Jesus e Maria, Deus que assume a carne humana dentro e através da carne de uma mulher, “nascido de mulher”. Deus não se fez homem, não se identificou apenas com uma metade da humanidade. Ele se fez carne, carne de homem e de mulher, a fim de que o caminho para o Pai possa passar necessariamente através da condição humana total, masculina e feminina, porque Deus criou a criatura humana macho e fêmea.

A afirmação “Deus se fez carne” deve ser completada por outra de análogo valor: “Deus nasceu de uma mulher”. Ambas significam um extraordinário salto qualitativo na consciência histórica da relação da humanidade com Deus. A descoberta de que não há mais necessidade de buscar a Deus no estrito ritualismo ou na letra da Lei. Deus pode e quer ser descoberto no nível mais frágil dos homens e mulheres. Nos pobres e nas vítimas da injustiça e da violência, nas mulheres grávidas e nas crianças pequenas está a definitiva interpelação para a humanidade. O mistério da Encarnação de Jesus na carne de Maria ensina que o ser humano não está dividido entre um corpo de pecado e defeito e um espírito de grandeza e transcendência. O mistério da Encarnação está enraizado exatamente na fragilidade, na pobreza, e é nos limites da carne humana – carne de homem e de mulher – que a inefável e infinita grandeza do Espírito pode ser contemplada e adorada.

Preparai os caminhos

Por Cardeal Orani Tempesta
Uma das práticas do Advento é a celebração Penitencial. Precisamos nos preparar abaixando as colinas, enchendo os vales e endireitando os caminhos de nossas vidas. Para isso, além de tantas outras práticas do Advento, organizam-se mutirões de confissões quando vários sacerdotes de uma mesma região atendem os penitentes que assim se preparam para o Natal.

Jesus, que é Deus bendito, tem o poder perdoar os pecados: “O Filho do homem tem o poder de perdoar os pecados sobre a terra” (Mc 2,10). Este poder, ele concedeu a Igreja, para que o exerça em seu nome: “Tudo isso vem de Deus, que nos reconciliou consigo por Cristo e nos confiou o ministério da reconciliação” (2Cor 5,18); “O que desligares na terra será ligado no céu, e o que desligares na terra será desligado nos céus” (Mt 16,19); “Em verdade vos digo: tudo quanto ligardes na terra será ligado no céu e tudo quanto desligardes na terra será desligado no céu” (Mt 18,18). As passagens são claras: o Cristo, único que pode perdoar os pecados, deu à sua Igreja o poder de perdoar os pecados em seu nome! Ligar e desligar significa, na linguagem rabínica do tempo de Jesus, excluir da comunhão com Deus e com a comunidade (= ligar) e acolher novamente na comunhão com Deus e a Igreja (= desligar). Vale à pena, ainda, citar Jo 20,22s: “Recebei o Espírito Santo. Aqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados; aqueles aos quais retiverdes, ser-lhes-ão retidos”.

No caso do Sacramento da Penitência (Confissão), é importante recordar: “E eu te digo: Tu és Pedro e sobre esta pedra construirei a minha Igreja e as portas do inferno nunca levarão vantagem sobre ela. Eu te darei as chaves do reino dos céus, e tudo que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo que desligares na terra será desligado nos céus” (Mt 16,18s); “Após essas palavras, soprou sobre eles e disse: ‘Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados serão perdoados. A quem não perdoardes os pecados não serão perdoados” (Jo 20,22s). Assim, Cristo fez dos Apóstolos (e de seus sucessores) participantes do seu próprio poder de perdoar os pecados, reconciliando os pecadores com Ele mesmo e com a sua Igreja!

Somos chamados à conversão, a uma contínua mudança de vida pela penitência. A penitência são as atitudes e gestos que revelam a mudança interior, a conversão do coração. O catecismo da Igreja explica que “a conversão interior impele à expressão exterior com gestos e sinais visíveis, gestos e sinais de penitência” (n. 1430). E o Catecismo completa, de modo muito preciso: “ A penitência interior é uma radical reorientação de toda a vida, um retorno, uma conversão a Deus com todo o coração, uma ruptura com o pecado, uma aversão ao mal, juntamente com a reprovação das más ações que cometemos” (n. 1421).

Sabemos que o Tempo do Advento, é tempo de preparação para o encontro com Cristo que vem, veio e virá, em especial para o Natal do Senhor. Quantas pessoas neste período começam em suas casas fazer uma reforma, pintura e faxina. Assim, também espiritualmente falando, somos convidados neste tempo do Advento a através do Sacramento da Penitência a nos aproximar da reconciliação com Deus e com o nosso próximo. Confessar-se neste período é uma prática importante, pois, é necessário limpar o nosso coração dos pecados e mágoas. É um momento de olharmos para dentro da casa do nosso coração e fazer a faxina geral. O Tempo do Advento é tempo de parar e refletir: o que fiz este ano? O que posso melhorar para o próximo ano? E sem dúvida, é momento de agradecer a Deus.

Advento, tempo de Conversão como clamou João Batista ao anunciar o Messias que estava entre eles. Não existe possibilidade de esperança e de alegria sem retornar ao Senhor de todo coração, na expectativa da sua volta. O cristão, convertido a Deus, é filho da luz e, por isso, permanecerá acordado e resistirá às trevas, símbolo do mal, pois do contrário corre o risco de ser surpreendido pela parusia.

Esse comportamento de vigilante espera na alegria e na esperança exige sobriedade, isto é, renúncia aos excessos e a tudo aquilo que possa desviar-nos da espera do Senhor. A pregação do Batista, que ressoa no texto do evangelho do segundo domingo do Advento, é apelo para a conversão, a fim de preparar os caminhos do Senhor. O espírito de conversão, próprio do Advento, possui tonalidades diferentes daquelas relembradas na Quaresma. A substância é essencialmente a mesma, mas, enquanto a Quaresma é marcada pela austeridade da reparação do pecado, o Advento é marcado pela alegria da vinda do Senhor.

sábado, 16 de dezembro de 2017

Novena de Natal

Por Cardeal João Orani Tempesta
O tempo do advento é constituído de quatro domingos que antecedem o Natal do Senhor. É, portanto, tempo de piedosa espera. Ora, esperar uma pessoa querida requer alegre e cuidadosa preparação. Esta preparação para o natal tem dupla característica: tempo de preparação para as solenidades do Natal, nas quais se recorda a primeira vinda do Filho de Deus ao meio dos homens; e simultaneamente, tempo em que, com esta recordação, a atenção se dirige para a expectativa da segunda vinda de Cristo no fim dos tempos. Celebrando cada ano este mistério, a Igreja nos exorta a renovar continuamente a lembrança de tão grande amor de Deus para conosco. Eis aqui algumas atitudes que nos ajudarão a preparar uma celebração digna e frutuosa do Natal. A primeira atitude é de Oração. A oração abre-nos, por Cristo, em Cristo e com o Espírito Santo, à contemplação do rosto do Pai, colocando-nos em comunhão e sintonia com a Trindade, fonte de santidade, de alegria e da verdadeira paz. A liturgia especial da semana de preparação próxima do Natal nos traz uma bela espiritualidade para este tempo tão especial.

Tradição religiosa que costuma ser realizada na preparação de momentos importantes, a novena faz parte do patrimônio da religiosidade popular. Diante do Advento, vivido pela Igreja antes da celebração do Natal, não poderia ser diferente. A montagem do presépio, a intensificação do espírito de caridade e a novena de Natal fazem parte da vida dos cristãos.

A Novena do Natal em família ou nos grupos como pequena comunidade, círculo bíblico ou grupo de reflexão é uma expressão belíssima de oração comunitária. Participe de algum grupo da sua comunidade, vizinhança, condomínio ou apartamento. O espírito do natal é a aproximação entre as pessoas que cria a cultura do encontro. Só com a cultura do encontro superamos o individualismo e o isolamento que empobrecem a vida.

Iniciamos por estes dias a novena de natal. Mas, antes disso, podemos nos perguntar sobre o significado verdadeiro do natal. Esta bonita celebração que nós celebramos tem o sentido verdadeiro em Jesus Cristo. O sentido do natal é celebrar a encarnação de Jesus Cristo, ou seja, Deus se fez homem e habitou entre nós. Ao assumir a nossa natureza, comunica-nos a sua condição divina, Unigênito do Pai, nascido do Pai antes de todos os séculos (tempos). Luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Por Ele todas as coisas foram feitas. Por nós homens e para a nossa salvação desceu do céu e se encarnou, pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria e se fez Homem. Assim professamos a nossa fé cristã, o Credo.

Jesus Cristo, o eterno Verbo do Pai, nasce para nós. Ele que desde o princípio está com o Pai, pelo qual tudo foi criado e nada foi criado sem Ele, no qual tudo subsiste e toma consistência. Ele se encarna no mundo que por Ele mesmo foi criado, para dar sentido à vida, ao tempo. Sua eternidade dá sentido ao tempo. A cada ano o Natal revigora a nossa fé. A fé revigora os nossos laços espirituais entre os familiares, entre vizinhos, entre amigos, entre todos os povos da terra. Porque, naquele que nasceu por nós, sua Luz de vida e Verdade nos foi dada. Hoje, doado a nós pelo Pai, o Espírito que n’Ele repousa renova a face da terra, em conformidade com a sua Palavra: “Eis que faço novas todas as cosias” (Cf. Ap. 21,5).

Uma das formas de se preparar espiritualmente é a novena de natal. A novena recorda os dias próximos que a Virgem santíssima estava prestes a dar à luz ao Menino-Deus. Para prepara melhor para o natal do Senhor temos várias versões de textos, inclusive um próprio de nossa arquidiocese que focaliza o tema do cristão leigo dentro do ano do laicato. A CNBB apresenta as reflexões neste ano baseadas na Iniciação Cristã: 1° Dia da novena: Anúncio: A alegre notícia; 2° Dia da novena: A iniciação: mergulho no mistério, 3° Dia da novena: Iniciação à vida cristã: gestação do cristão, 4° Dia da novena: João Batista, figura do Introdutor, 5° Dia da novena: Maria, modelo de catequista, 6° Dia da novena: Catecumenato e mudança de vida: itinerário de José, 7° Dia da novena: A comunidade, casa da iniciação à vida cristã, 8° Dia da novena: A família, berço da iniciação, 9° Dia da novena: Natal de Jesus, nascimento do cristão.

Ao celebramos esta novena de natal, nos deixamos ser conduzidos pelo Senhor, pois, ser iniciados na vida de Cristo, no modo de viver de Cristo é conhecer e seguir seus passos nos faz sermos verdadeiros discípulos e missionários.

domingo, 3 de dezembro de 2017

No Ver-o-Peso, o pecado da gula é para excomungar

Por Heitor e Silvia Reali - No Estadão
Anime-se para uma festa! Vem comigo a Belém, Pará, onde a festança nasce junto com o dia, quando o sol e os barcos tocam a névoa sobre as águas ambarinas do rio Guajará. Rio que encosta no mercado Ver-o-Peso, coração e palco desta festa. Vamos agorinha mesmo ver a chegada dos coloridos barcos com porões grávidos de frutas e peixes. Assim que atracam no ancoradouro, começa o bailado vaivém dos carregadores transportando cestos de frutas, peixes, açaí, e braçadas de folhas de maniva (mandioca). Depois me conta se já viu coisa igual no mundo. Impossível!Tão importante para os paraenses quanto a Torre Eiffel para os franceses, o Mercado Ver-o-Peso, tem estrutura de ferro trazida da Inglaterra e foi inaugurado em 1901. Sua influência é tão grande na vida do belenense que só fecha num único dia ao ano – o consagrado a Virgem de Nazaré.

Só lá para sentir os exóticos aromas das frutas regionais que incensam o ar: umari, fruto que só cresce no Pará; pupunha, encontrada nas cores vermelho, verde e laranja; piquiá, fruto carnudo de polpa cor de gema cozida de sabor e aroma inconfundível; ingá, bacuri, cutite cutitiribá de nome tão sonoro que faz a gente até querer dançar; e o rei dos sabores e aromas – o cupuaçu. Embora não seja uma fruta, são as amêndoas da semente, não poderia de reverenciar aqui a castanha-do-Pará.

Nesta hora chega o zombeteiro feirante que me oferece uma folhinha com o botão de uma flor singela para experimentar – o jambu. Pronto, um sobressalto, pois a verdura e sua flor produzem um leve tremorzinho e dormência na boca. Passado o susto, deixa um sabor único. Ah, pensa que é só! Tem produto de tal fartura e importância que ganha ala inteirinha só para si, como as coloridas pimentas, dentre elas a olho-de-peixe, e a pimenta-de-cheiro. Outro com espaço exclusivo são os peixes de rio e mar: tambaqui, tucunaré, pirarucu, matrinchã, xaréu, aruanã, gó, dourada, e filhote de 60 quilos (imagine o tamanho do pai). A maioria tem nomes indígenas e alguns dos peixes, como o cascudo tem jeitão jurássico. 
 
E ainda tem a ala das farinhas de mandioca, e a dedicada aos utensílios para o preparo dos pratos únicos.Outra com ala própria é a das “bruxas de Belém”, como carinhosamente são chamadas as vendedoras de todo tipo de soluções para as mazelas do corpo e da alma. São 1.600 tipos de ervas, como a amarapuama, a priprioca e o cuxui. Essências do pau-rosa, este usado na composição do Chanel 5; patchuli, considerado o cheiro do Pará, sândalo, além de ingredientes especiais mandingas, são vendidos em garrafas, frasquinhos coloridos ou na forma de unguentos.
 
Todo esse banquete para os sentidos tem início com a Feira do Açaí, fruta tão importante para o paraense que é homenageada com uma feira só para ela e que acontece todas as madrugadas, ao lado do mercado Ver-o-Peso. A frutinha é o “oro negro”, como a definem os ribeirinhos, e a de melhor qualidade é nativa da Ilha do Marajó. Extraído de uma palmeira que cresce em terrenos alagadiços, pequenino e ácido, de cor arroxeada, quase negro, é conhecido também como o maná da Amazônia. De alto valor energético e rico em fibras, ele aparece, no norte do país, em receitas tanto doces quanto salgadas, como bolo, pudim, ou mingau. Nas refeições acompanha peixe frito ou camarão. Na sobremesa vira pudim, sorvete ou creme. 
 
Agora com apetite desperto, vou saborear o xodó paraense, o tacacá. Feito de goma de tapioca, tucupi, que é o caldo extraído da mandioca brava, camarões, pimenta e jambu. Tradicionalmente tomado em cuias, não acompanha nem garfo, nem colher, e fica a dúvida, se é bebida ou comida, mas a cuia é tão quente que não dá para segurar.

Toda essa pluralidade gera uma gastronomia singular. Nenhuma é tão brasileira, tão fiel às origens, e tão tradicional, daí registrada como Patrimônio da UNESCO como gastronomia criativa.

Coragem e decência

Por Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República
Quando eu era criança havia um ditado que insistia em que “ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil”. Eram tempos do Jeca Tatu, figura mítica que habitava os campos brasileiros. Ainda devem existir jecas-tatus por este mundão afora, mas sua imagem esmaeceu no imaginário brasileiro. Havia o drama dos pés descalços; mesmo no Rio, onde passei a meninice e não havia muita gente descalça, muitos usavam tamancos. O bicho-do-pé era uma preocupação dos que iam às fazendas. Depois veio a leva das “havaianas” e se tornou raro ver gente sem sapato. As saúvas devem continuar existindo...

Mais recentemente, antecedendo a Constituição de 1988 e mesmo depois dela, durante meu governo, as “marchas dos sem-terra” tornaram realidade política a carência de reformas no campo. Bem ou mal fomos distribuindo terras. Somando o que foi feito em meu governo ao que fez o primeiro governo petista, houve, sem alarde, uma “reforma agrária”, se considerarmos a redistribuição de terras. Ao lado disso, houve uma revolução agrícola, com ciência e tecnologia da Embrapa por trás, financiamento mais adequado e audácia empresarial.

Não havia SUS até que os governos pós-Constituição de 1988 o puseram em marcha. Adib Jatene, Cesar Albuquerque, José Serra e Barjas Negri são, dentre outros, nomes a serem lembrados nessa construção. Sem esquecer que foi o grupo dos “sanitaristas” da Constituinte, composto por médicos, geralmente de esquerda, que introduziu a noção de seguridade e inventou a colaboração público-privada no SUS.

É boa a prestação de serviços pelo SUS? Depende. Mas ele existe e atende, em tese, os 205 milhões de brasileiros.

Dou esses exemplos que mostram a capacidade que tivemos para enfrentar, mesmo que parcialmente, certos problemas que afligem o povo. Isso nos deve dar ânimo para continuar a acreditar no País.

Duas questões nos desafiam especialmente na atual conjuntura: o desemprego e a desconfiança nos governos. De permeio, o crime organizado e o ódio entre facções políticas, além da corrupção dos que usam colarinho branco. Acrescente-se que desta vez a “crise” dos governos (financeira e moral) foi criada internamente. Não há como jogá-la no colo do FMI ou dos “estrangeiros”. É tão nossa quanto a saúva ou o bicho-de-pé. Políticas equivocadas da dupla Lula-Dilma levaram a que depois do boom viesse a borrasca: os governos (não só o federal) estão exauridos, o PIB despencou mais de 8% entre 2015 e 2016, a desigualdade voltou a aumentar e o desemprego passou de 4% a 14% no mesmo período. Embora não faltassem razões jurídicas, foi o descontrole da economia que, no fundo, causou o impeachment, pois atingiu e irritou o povo e levou o Congresso a agir.

Foi para sair do impasse que o governo Temer obteve apoios: para retomar o crescimento da economia (tendo o projeto Ponte para o Futuro como roteiro). A despeito de tudo, até da crise moral, o governo vai atravessando o despenhadeiro. Retomou as condições para transformar de retórica em prática viável a exploração do pré-sal, com a reconstituição financeira e moral da Petrobrás. Está estabelecendo um plano adequado para as empresas energéticas, deu ímpeto à reforma educativa e assim por diante, sem se esquecer dos esforços para conter os gastos nos limites do Orçamento e das possibilidades de endividamento do Estado.

Não há razão para um partido como o PSDB repudiar o apoio que deu ao governo de transição, muito menos para, dentro ou fora do governo, deixar de votar a agenda reformista, que é a do próprio partido. No caso da Previdência, principalmente, as únicas questões cabíveis são: tal ou qual medida aumenta ou diminui os privilégios e, consequentemente, a desigualdade social no País? Nada justifica manter vantagens corporativas nem privilégios. O mesmo vale para uma futura reforma tributária ou para medidas fiscais, que podem doer no bolso de alguns, como é o caso do fim do diferimento de Imposto de Renda nos “fundos fechados”, mas que são justas e necessárias.

Ou nos convencemos de que por trás do desemprego, do ódio político e da violência criminosa está um grau inaceitável de desigualdade, agravado pela crise que nos levou à falta de horizonte, e lutamos contra esta situação, ou pouco caminharemos no futuro. Sem confiança no País, a começar em nós próprios, não há investimento nem crescimento que se sustentem. Essa é, portanto, uma questão coletiva, afeta ao País como um todo, e precisa ser tratada como um desafio para o Estado e para a Nação.

A questão central de um partido que nasceu como o PSDB, para se diferenciar da geleia geral que se formou na Constituinte, é a de se distinguir pela afirmação, não pela negação. Não será em função de posições que ocupa ou deixa de ocupar nos governos que se afirmará, mas das bandeiras que simboliza e das políticas que apoia para o Brasil. A hora é de coragem para mostrar como o partido vê o futuro e como colabora para formar uma sociedade melhor (apoiando medidas igualadoras e votando a favor das reformas). Não se trata de questão eleitoral, mas de compromisso com o povo e com o Brasil. A história de um partido não se escreve apenas com manifestos e programas, mas com gestos e com pessoas que simbolizem a mensagem que se quer transmitir. Se o preço para ganhar eleições for o de desfigurar as crenças - no que não creio -, melhor ficar com estas e semear para o futuro.

É em nome de sua identidade que o PSDB poderá desligar-se do governo que ajudou a formar, mas sem abdicar de suas propostas. É legítimo que um partido escolha dentre seus quadros quem, circunstancialmente, é mais adequado para ser seu candidato à Presidência e lute para alcançá-la. Sem “hegemonismos”, pois num país diverso como o Brasil todo partido precisa de aliados com quem compartilhar o poder e as crenças, o que não subentende a submissão cega nem a desmoralização das instituições republicanas.