sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 23


  FINANCIAMENTOS –
Antônio Presidente continua indo, com Zé Potoca, ao corte diário do capim. Agora, as reservas mais próximas de canarana e premembeca não ficam a menos de três horas de viagem... só de ida! Às vezes, nem dá sequer para se carregar completamente o alentado batelão. E os bois remanescentes, desnutridos, vão morrendo, a prestações, sobre a maromba...

Nesta manhã, Antônio esfrega os braços, tomados por uma legião de aguerridas formigas-de-fogo, quando o afilhado lhe diz, coçando a cabeça: – Ah! Meu padrinho, eu me esqueci de lhe avisar que o seu Quinca Pereba quer falar com o senhor. Eu encontrei ele onte lá no Aningar do Papagaio.

– E só agurinha que tu havera de te alembrar, rapaz?! – ralha o pecuarista, ainda matando formigas. Eu mardo que deve de ser coisa de muita percisão. Vamu passar pela casa dele quando a gente vortar de vorta.

No retorno, fazendo um desvio que lhes custa mais uma hora de varejão, param no “Retiro Pereba” e logo Presidente fica sabendo da boa novidade. A informação compensa o acréscimo de cansaço:

– O Miró Sardinha veio da cidade – explica o desdentado e narigudo Quincas – e me disse que um banco oficiar do gumverno vai começar amanhã a sortar muita grana pros criador da varja.

Pondo atrás da orelha o cigarro que apagou amassando a ponta no balcão da quitanda, completa:

– Dizque não tem dificurdade arguma. Tu entra lá e sai logo com o dinheiro no borso, porque o gumverno abaixou decreto.Isso já deu até na Rádio Rurar.

– É mesmo, meu mano?! – fala, animado, Antônio. Eu vou largar toda essa pitomba e amanhã tô em Santarém, porque perciso muito de um dinheirinho.

– Tu vai mais eu – intima o dono da casa. Deixa o teu motor pro Zé Potoca se virar no capim. Eu tava duido pra falar cuntigo, pois já faz um mês que nós não se vê. Eu sube que aquele ladrão do barco “Jutaicica” também fez tu de besta. O cachurro passou a perna em tudo quanto foi caboco.

– Então ele andou por aqui também? – indaga, encabulado, o esposo de Maria Flor, que não esperava uma referência direta à vigarice de que foi vítima.

– Aquele filho duma égua me deu um prejuízo de quase mir cruzeiro! – exclama Pereba, vermelho de raiva. Só não sangrei ele porque tem o diabo pra tirar e Deus pra dar.

– É mais melhor nós nem falar nisso, pois meu zóio fica logo atravessado de sangue – conclui o proprietário da “Fazenda Apuizeiro”. Que hora, então, tu vai me pegar lá em casa? – Amanhã, cedinho, por vorta das seis hora eu chego lá.

Ciente da esperançosa notícia, Maria Flor não se entusiasma. Talvez a enigmática intuição, o misterioso sexto sentido das mulheres esteja a lhe segredar qualquer coisa capaz de inibir súbitas e prematuras alegrias numa aposta contra o futuro. Limita-se a uma breve advertência, sem parar de mover bem depressa o abano de palha com que atiça o fogo: – Toma cuidado, Antônio. Quando a esmola é grande, o santo fica descunfiado, eu já te disse umas mir vezes.

Antes das seis da chuvisquenta manhã, Quincas Pereba está no porto da fazenda, em seu barco “Vitora Reja”, maior que o de Presidente. A saudação é típica da época. Sem um “bom dia”, vai dizendo: – A água cresceu um dedo de onte pra huje, seu Antônio. Vute! Se continuar assim, ela inda tufa até na Lua nova que vem. Deus tá mesmo zangado com nós. Eu não mardo que mar os caboco fez pra Ele.

– É – admite o companheiro, embarcando. Tudo dia eu tô aí perdendo arguma coisa, mas tô conformado com a mardita sorte. Na enchente de 1953 eu fiquei quase na misera, mas dispôs de pelejar muito e aduecer de tanto trabalho, acabei levantando a cabeça de nuvo. Essas raiva de Deus é como pira de cachurro: dá e passa.

Nessa permuta de infortúnios sofridos, e acompanhados pelo vaqueiro Mamede, eles consomem as três horas de percurso até Santarém. Pereba já levantou três vezes o assoalho da residência, trairambóia matou-lhe cinco animais, piranhas puseram oito vacas fora de ação. Agora, como sobremesa servida por vampiros ávidos de sangue, pipocou uma gripe desgraçada que já atingiu quase toda a família, com tosse braba, catarrão, febre e dor no peito.

A julgar por tantas confidências amargas, trocadas sob o embalo das ondas, não teve um pingo de razão Humberto de Campos ao garantir que “o andor da desgraça se torna mais leve quando é carregado por muitos.” Nessas faces sulcadas por tantas preocupações, mil pesadelos e incontáveis canseiras, não se percebe o menor indício de alívio pelo fato de saberem que as pesadas cruzes cabem a todos.

Deixando o “Vitora Reja” amarrado no porto da Vila Arigó, sob a vigilância do caboclo que trouxeram, os dois pecuaristas ajeitam os cabelos, passam as mãos nas roupas úmidas e amarrotadas. Encaminham-se logo para a suntuosa agência do banco que fica alí perto. Ao empurrarem a enorme porta de vidro, sentem, com algum espanto, a surpresa incômoda de um ar muito frio que lhes resseca as narinas. Mas, reunindo coragem, vão no rumo do funcionário mais próximo: – Me diga uma coisa, seu menino – fala Quincas, menos tímido. O Banco já tá sortando dinheiro pros criador da varja?

Sem erguer os olhos do papel que lê, responde o burocrata: – As liberações de crédito começaram ontem. – E o que nós percisa fazer pra arreceber logo o nosso? – Um momento, senhores, por obséquio. Já vou entregar a relação dos documentos necessários.

O atendente conversa uns cinco minutos com uma graciosa estudante que acaba de chegar e depois apanha uma folha mimeografada e, voltando-se para os caboclos, rosna, incisivo:

– Aqui está. Se o pretendente ao empréstimo deixar de cumprir uma só destas oito exigências aqui especificadas, nem adianta mais voltar aqui, pois nada poderemos fazer. São ordens expressas da nossa matriz.

– O diabo é que nós não sabe ler, seu menino – gagueja Pereba. Se o senhor não fica brabo, diga que papelada nós tem de arranjar, que a gente vamo logo buscar tudinho e vorta de vorta. Nós tem que ir hoje pra farja tratar do nosso gadinho.

Mal humorado, o bancário desfia, lendo rapidamente: cadastro atualizado neste Banco; certidão negativa do Cartório de Protestos, obtida nas vinte e quatro horas anteriores à eventual concessão do crédito; prova de quitação com a Justiça Eleitoral; CPF; certificado de regularidade perante o INCRA; comprovação, testemunhada em cartório, do número de reses que possui, pois o financiamento se fará na base de vinte e cinco mil cruzeiros por unidade; indicação de dois avalista idôneos, que devem ser aprovados pelo Banco; e, certidão negativa de impostos municipais.

Devolvendo o papel ao caboclo perplexo, o funcionário passa a atender outro cliente. Os dois varzeiros retiram-se, de cabeça baixa e chapéu na mão. Lá fora, na escadaria do prédio, fitam inicialmente um ao outro e, depois, mudos, como feras acuadas que não sabem para onde correr, passeiam os olhos tristes pela vasta praça de São Sebastião. Calado desde o ingresso no estabelecimento, Antônio rompe o silêncio – funeral de mais uma efêmera e besta esperança de matuto:

– Bem que a Maria Flor não se assanhou com essa história. Mulher é bicho danado pra adivinhar. Se eu ouvisse sempre os parpite dela, não havera de fazer tanta bestera na merda dessa vida. E agora, seu Quinca? – Agora, meu mano... Agora vamo comprar gasolina pra vortar de vorta e vamo simbora. – Acende um cigarro e assegura: – Nem passando um mês aqui na cidade, nós não havera de arrumar esse monte de paper pra receber dinheiro.

– É, vumbora pra casa – concorda Presidente. Mas pra não perder toda essa viagem do cão, tu me espera um pedacinho que eu vou comprar umas coisinha que eu perciso. É mais melhor até tu ir logo pro purto do mercado, porque é lá praquelas banda que eu vu fuxicar atrás dos bagulho.

Pereba rasga em pedacinhos a maldita relação de exigências burocráticas. Os fragmentos saem voando, exatamente como os farelos de um sonho doce e fugaz... Separam-se os amigos e colegas de sofrimentos. Por intolerável ironia, passa, nesse exato instante, um carro de propaganda em que o locutor berra, através de estridentes amplificadores: – Atenção! Muita atenção, senhores pecuaristas! Os Bancos oficiais dos governos estadual e federal, em suas agências desta cidade, avisam que iniciaram ontem, e prosseguirão durante quinze dias, os generosos financiamentos em tão boa hora autorizados pelas autoridades governamentais, para minimizar os efeitos da calamitosa enchente deste ano. Aproveitem as grandes facilidades de crédito fácil e imediato, sem burocracias.

Quando vai atravessando a Praça do Pescador, o dono da “Fazenda Apuizeiro” enxerga, por acaso, fumando um charutão, aboletado em reluzente automóvel vermelho, alguém que ele muito conhece. Depressa, entretanto, o caboclo olha para o lado oposto e prossegue andando, pois perigosos ímpetos assassinos lhe aceleram o coração: acaba de ver Raimundo da Silva, da empresa “Jesus dos Anjos Ltda”, proprietária do barco “Jutaicica”.

Maria Flor está com o rosto na porta do telhado – o buraco aberto por exigência do rio – esperando os viajantes. Ao ver que chegam em silêncio, com cara de quem vomitou lombriga, tem certeza de que nada obtiveram, mas indaga: – Que tar? Os home sortaram a grana pra vocês?

– Não – responde o marido, sério e já de pé, carregando alguns embrulhos. Percisa tanta papelada que só a gente se mudando pra cidade pra arrumar tudo o que eles quer.

– Eu não te disse nada pra dispôs tu não falar que eu tava jogando terra na paçoca – revela a mulher. Mas meu coração farejava que essa porquera não ia dar certo nem pelo rabo do cão. Onde vocês já viram arguma vez o gumverno dar coisa que preste pra gente? Essas peste só mostra os dente e parece anjo quando que pegar voto dos besta. Cambada de cachurro!...

Servindo-se de sua expressão predileta para escapar de diálogos desagradáveis, Presidente despede-se de Pereba e Mamede, dizendo: – É mais melhor nós não falar mais nisso. A gente véve pra sofrer e tem que agüentar como macho essas aporrinhação. Dá essas bolacha pros curumim e vamo comer arguma bestera que eu tô com fome.

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