sexta-feira, 27 de junho de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 17


– A BOIÚNA –
À sombra de uma vasta mangueira, a roda acaba de organizar-se, com oito componentes. Engolindo o derradeiro pedaço de lambuzante pé-de-moleque e limpando a mão melada na velha calça de mescla, Mingote Pica-pau, um caboclo atarracado e meio bicudo, inicia narrativa da aventura que alega ter vivido: um encontro com a formidável “Cobra Grande” ou “Boiúna”, mito que povoa e aterroriza tantas insônias amazônicas. Pigarreia e começa:

– Nós vinha, eu mais o Raimundo Cuiteua, no batelão “Tira teima”, cheinho de canarana e premembeca. Como vocês sabe, o capim tá cada vez mais escasso e a gente se atrasemo na viagem. O Sol já ia mergulhando ali pras banda do Roçado Alegre e nós atravessava aquela travessia do Marimarituba, com a vela marmente se tufando. O vento tinha quebrado muito e nós andava devagar.

Escarra, dá uma baita cusparada e vai adiante:

– Eu tava comendo na pá do remo umas fagulha de carauaçu muquiado. Aí o companheiro me cutucou e só fez amostrar com o dedo, mais branco que arma penada. Eu virei a cara pra ilharga e o coração velho quis sartar pela buca cheia de peixe e farinha: os faror da bichona faiscava na buca da nuite, como duas disconforme lanterna de carbureto!

– Vute! Então a coisa tava mesmo preta, Mingote! – comenta Catinga-de-mulata. Eu só quero ver como vocês se desembrulharam da desinquietação.

– Mais depressa que relampo, nós sentemo a mão no remo e toquemo pra beira! – continua o varzeiro.

– E a Boiúna tava muito longe? Indaga Antônio Presidente.

– Que nada, seu menino! Tava daqui praquela guiabeira! Nós só tinha começado a travessia e a valença foi essa, porque se a gente já tivesse mais pro meio do rio, eu não tava aqui contando esse causo.

– Égua! Eu me arrupeio tudinho! – confessa Zé Potoca.

– Mas espera aí, sacana, que tu inda não viu nada! Promete o empolgado narrador. – Nós puxemos o batelão até onde nós pôde e se enfinquemo no mato! Fiquemo ali trepado num galho de marizeiro, moroçoca como o diabo, mas a gente nem sentia as porquera, porque o medo era disconforme. Nessas hora não tem macho bom.

– Chega, nesse momento, João Bucheiro, com uma garrafa de cachaça. Mingote interrompe a história e pede: Me dá aí um trago dessa mardita! Deixa eu molhar o gogó pra acabar de contar.

Sorve uns goles no gargalo, enxuga a boca no ombro e retoma a palavra:

– O animarzão veio tomando chegada e fazia umas onda tão arta que jogaram o “Tira teima” lá em terra, como se fusse um barquinho mixuruca. A peste bufava como quinhentus buto junto e os zóio dela deixava dois clarão dentro d’água, iguarzinho como a Lua faz quando foca lá de cima.

Enxuga o suor da testa e revela: – Só de me alembrar, inda me dá tremedera, e toda essa varja velha sabe que eu nunca fui fruxo. Nem de visage eu não curro. Mas a gente pensar que pode ser engulido vivinho...Credo!

– Eu tô nessa idade e nunca, até o dia de huje, achei macho pra Cobra Grande – interrompe, solidário, Antão Aquiqui.

Mas Pica-pau ainda tem o que contar:

– A Lua tinha saído e nós enxergava direitinho as marmota da eguona da cobra. Quando ela mergulhava, fazia um funir iguarzinho de terra caída, num espumaceiro dos diabo! Mas o que nós achamo mais pior mesmo, de parar o coração, foi os esturro da mardita Boiúna dos inferno. Ela dava, de vez em quando, uns ronco tão medonho que o Cuiteua me disse, baixinho: – Mingote, se sangue é fedurento, eu tô muito ferido.

A turma, tensa, nem sequer consegue rir da pilhéria e o herói do Marimarituba explica:

– Coitado do parceiro! Inda mais fruxo do que eu pra essas arrumação que derruba quarquer caboco, ele não agüentou o tamanho do susto e sujou tudinho o carção. Pensava que era sangue...

– E como é que acabou o causo? – interrompe Zé Potoca, impaciente para contar a sua experiência.

– Bom. Nós fiquemo ali tremendo e rezando no tuco do pau e a desgraçada fincando o pé: mergulhava e buiava... Parecia que ela queria brincar de assombrar nós e não tinha pressa de ir de vorta pra casa. Passou umas três hora naquela sem-vergonhice, até que arresorveu ir passear. Com o fugo da Lua foi que nós vimo o monstro tudinho brilhando, de pupa à prua.

– Deu pra carcular o tamanho dela? – indaga Paulo Cascudo.

– Menino, o bichão foi saindo pra fora, como navio do Lóide que desatraca do porto da cidade. Deu um bordo e tomou o rumo do meio do rio. Pra ninguém dizer que eu tô mentindo, eu dou o tamanho da Boiúna por baixo: era uma cobra aí pruns trinta metro! Por Deus do Céu e Nossa Senhora!

– E vocês fizeram logo dispôs a travessia? – pergunta Antão.

– Que nada, mano! – replica o outro. – Nós fiquemo no marizeiro matando moroçoca e sofrendo frio até o dia butar a venta de fora. Aí nós atravessemo a travessia, ulhando pra tudo lado. Vute! Deve tá pra aparecer outra notícia de que a diabona butou outros cabuco pra correr por aí.

Sem respeitar o supersticioso silêncio que emudeceu o grupo, Zé Potoca abre logo o bico grosso. Embalado por alguns aperitivos, está tinindo de eloquência:

– Dizque eu sou potoqueiro. Mas dessa vez tá aqui na minha ilharga o meu padrinho, que tem mais raiva de mentira do que de trairambóia. Eu e ele vimo esse causo de pertinho.

– Mas, então, conta direito! – adverte, sério, Antônio. Não vai enfeitar o periquito.

– Não se avexe, meu padrinho – pede o crioulo. – Nas hora das coisa séria esse nego aqui não brinca, não.

E começa:

– Nós tava fazendo um puxirum, lá no Paraná de Baixo, na fazenda do seu Vivico Maracanã. Faz uns seis ano.

Atira um punhado de paçoca na bocarra, engole rapidamente e prossegue:

– Nós era uns vinte macho e fazia broca pra uma baita prantação de maniva. Pudia ser umas nove hora da manhã quando a gente ouvimo o primeiro ronco. Foi um negócio feio: “Uuuuuuú!”... Como não tinha barranco no lugar, não dava pra nós mardar que aquilo era terra caída. Os caboco todo, descunfiado, pararam de derrubar o pau e arrumar cuivara.

– O Vivico era mais ruim que mamona em jejum – lembra Antônio. Ruim e pão duro. Quando ele dava uma cibalena prum curumim, ele amarrava uma linha de costura na píula. Assim que passava a dur do dente, o miserave puxava o fio e guardava o remédio pra utra vez...

– A caipirada ri e o preto retoma a narrativa:

– É. O bandidão era tão suvino que a gente só trabalhava se ele pagasse tudo adiantado. Quando ele já vinha dar bronca em nós porque nós tava parado, ouvimo outro esturro, mais perto e mais feio:

“Uuuuuuú!”...

O negro abre inteiramente a boca, amarra a cara e arregala os olhos graúdos, tentando uma cômica imitação do aterrador e soturno rugido. Depois, readquire embalagem:

– Foi aí que o seu Vivico sentiu que aquela peste era mesmo a tar de Cobra Grande atravessando o mato. Disse pra gente largar depressa as foice e os machado, pra pegar os pau-de-fugo que ele guardava no barracão da farinhada. Nós fumo lá e arrumemo quatro cartuchera, dois rifle 22 e muita munição. Meu padrinho puxou logo o revorvi dele, um baita dum 38 que ele comprou dum gringo.

– Agora que se arrupeia su eu – confessa Catinga-de-mulata. Eu sempre tive medo pai-d’égua de Boiúna.

Prestigiado pelo aparte, Potoca vai adiante, entusiasmando-se a cada frase:

– Quando nós escutemo o terceiro esturro, a bichona já vinha saindo do matagar, pois ela tava querendo passar dum lago pru rio. E era aquele escangalho de pau quebrando e bicho correndo pra tudo canto!

Emocionado à simples lembrança do assombroso episódio e vendo que o rapaz não exagera ao relatá-lo, apesar das biritas ingeridas, Presidente mete-se na conversa:

– Eu nunca mais quero ver coisa iguar nessa minha vida, seus menino! Foi um tiroteio medonho, com bala e cartucho pipocando pra tudo lado! Os caboco armado era bom de pontaria e acertaram logo na baita cabeça do monstro.

Mesmo tendo respeitado a intervenção sem licença, Potoca não suporta mais a agonia de ficar em silêncio e acrescenta:

– O diabão dava cada besta pinote que botou um jauarizeiro embaixo e urrava como tudos os cão junto!

– Quando a gente vimo que ela tava quase morta – arremata Antônio – os cabra mas macho chegaram perto dela e retalharam a peste com machado e facão. Era uma bichona de trinta e quatro metro bem medido, da grossura de um camburão de carbureto. As presa deu três parmo de tamanho!

– E quando acabou a confusão, nós demo com um caboco estendido no chão – recorda-se Zé. Corremo pra lá e vimo que era o Quixito Coroca, mortinho da sirva! O fruxo morreu de medo, botando o esprito pela bunda, porque tava cheinho de bosta! No outro dia um vaqueiro achu no mato um cocô seco da Boiúna: era da grossura duma panela de cozinhar peixe! Também uma cobrona daquela tinha que ser disconforme em tudo, até na bosta. Olha lá!

O caboclo faz a circunferência das fezes com as mãos, quando o padrinho resolve corrigi-lo, sorrindo: – Tu não havera de esquecer ao menos uma potoca, Zé. A merda do bicho era assim como uma lata de leite em pó, dessa que a gente compramo na cidade.

– Só, meu padrinho?!

– E tu inda acha puco, pira! – rebate o pecuarista, entre as gargalhadas da turma.

– É, eu soube desse causo e... – começa a dizer João Bucheiro, mas é interrompido por uma senhora que chega com quatro meninos. Trata-se de Maria Flor, que convida: – Vumbora, Antônio? Já é mais de meio-dia. Vamo comer a merenda que nós trouxemo, pra não chegar muito tarde lá em casa.

– Levantando-se Presidente, a espanar as calças com as mãos, a roda logo se desfaz: – Até outra vez! – vão dizendo os matutos uns aos outros.

Depois de almoçarem e fazerem uma visita à sepultura de Toninho, os peregrinos reembarcam no “Flô das onda II”. Escurece quando amarram o bote no beiral da residência, na “Fazenda Apuizeiro”, descansados e num estado de espírito traduzido por Maria: – Um dia alegre e feliz como esse paga tudas as desinquietação daqui da varja. Obrigado, Mãezinha do Céu!

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 16


– O PADRE E O CATEQUISTA –
No jantar, os deliciosos quitutes do gordo peixe-boi ajustaram-se a todos os paladares, pois Maria Flor é cozinheira muito competente. A refeição está quase terminando e, após limpar os lábios com a mão, ela participa a novidade: – O Frei Arnardo teve aqui huje. Chegu na vuadeira dele e veio convidar nós pra Missa, dumingo que vem, lá na capela do Paricatuba. Fazia três mês que ele não podia viajar pra cá, porque anda muito avexado com a enchente.

Lutando para engolir uma reforçada porção de alimento, Antônio toma uns goles de água e concorda: – Tá bom. Nós vamo arrumar um jeito de ir. A gente tá rezando pouco. Só essa ladainha de Nossa Senhora e uns quatro curto dominicar por ano não dá, não.

Maria sempre foi mais piedosa – ou menos relaxada – que o ignorante esposo. Animando-se com sua imediata adesão, ela acrescenta sábios argumentos: – É isso aí. O cristão percisa mesmo ter mais hora de reza do que urubu tem de vôo. Já faz uns uito mês que a gente não sabemo o que é Missa e eu nem me alembro quando nós teve no úrtimo curto dominicar. Vute!

Tosse, expelindo um transviado caroço de farinha e encerra o pequeno sermão: – É por isso que tanta consumição tem pressiguido nós. Se a gente véve de bunda virada pra Deus, Ele também fica de costas pros caboco. – Eu faço minhas reza tuda noite – assegura Zé Potoca, enquanto limpa os dentes com a ponta do garfo. Duvido que esse preto durma sem fazer na testa o sinar da cruz. Portege a gente do cão, de arma penada e de mau ulhado!

– Bem – interfere novamente o dono da casa. Farta nós acertar o jeito de subir lá pro Paricatuba. Que parpite tu dá, Zé?

Antes, porém, que o pensativo afilhado sugira uma alternativa qualquer, Maria Flor propõe: – O seu Romuardo Bicudo, lá do Garapé do Matupiri, tem quatro filho homem. Se nós mandar um recado pra ele, nós arruma dois pra trabalhar dumingo no corte do capim. A gente pagamo eles com peixe-bui sargado e duas garrafa de cachaça, eu sei que eles aceita. São protestante, não querem saber de Missa nem de padre. Mas a religião deles deixa beber cana.

–Mas a senhora é danada mesmo, minha madrinha! – exclama, encantado, o negro Zé Potoca. Eu tava maginando outras bestera, mas nunca ia mardar uma coisa dessa.

Concluindo as confabulações, o patrão elabora o esquema para que se ponha em prática a idéia da engenhosa esposa. Hoje é sexta-feira. Quando voltarem, no sábado, da colheita da forragem, passarão pela fazenda de Romualdo Bicudo.

Não surgem obstáculos. O vizinho (a três quilômetros de distância...) logo se prontifica a ceder os robustos rapazes e também uma filha para vigiar a residência dos amigos. Só não aceita a cachaça, porque mudaram de seita: agora são Testemunhas de Jeová e “os meninos não tenham quarquer viço, além de mulher”. Em lugar da aguardente, Antônio lhes fornecerá um pouco de querosene.

É assim que, às sete da manhã do ensolarado e bendito domingo, o último de maio, a família toda, inclusive o cachorro “Desacato”, sobe o Amazonas no “Flô das onda II”, em direção ao Paricatuba. Um alegre vento geral balança mansamente o barco, pondo risonhos contentamentos nesses corações com várias feridas em início de cicatrização. Ao menos durante um dia, eles estarão livres da desgastante briga com o rio.

Já se concentram umas cem pessoas no grande barracão que funciona como capela de toda a redondeza. Frei Arnaldo Smith, o sacerdote estadunidense, e o catequista Miracildo Coelho serão as estrelas da liturgia. O padre ouve confissões e o caboclo arruma com esmero a mesa onde se há de celebrar a Missa.

Ficando um pouco para trás, Antônio Presidente diz à Zé Potoca, apontando com um bico formado pelos lábios: – Vigia só quem vai ali...

– Eu já vi aquela vaca, meu padrinho – responde, sério, o rapaz.

Trata-se de Mundinha, filha de Mário Catinga-de-mulata, ex-quase-futura noiva do bom crioulo. Dengosa, derreia-se no braço de um matuto com cara de porco-espinho e calça arregaçada de um lado...

Entram no templo. Como já são mais de nove horas, a Eucaristia começará com atraso, pois na fila do improvisado confessionário – uma cadeira anexada a um caixote, que é o genuflexório – esperam diversas pessoas. Para prender as atenções da caboclada inquieta, o catequista passa a ensaiar alguns hinos, puxando os cânticos com uma voz de taboca rachada, porém de irrepreensível afinação.

É impressionante a participação dessa maltratada gente: quase todos, a plenos pulmões, louvam a Deus e à Virgem Maria através das letras singelas e expressivas, adaptadas à sua mentalidade. Isto, no entanto, tem uma explicação: a diocese de Santarém concentra uma das mais notáveis obras catequéticas do mundo católico. Cerca de três mil homens e mulheres, cuidadosamente preparados em cursos regulares, na cidade, substituem os poucos sacerdotes disponíveis, dirigindo o chamado “Culto dominical” de todas as semanas. É uma liturgia em que praticamente só falta a consagração das hóstias. Como a maioria dos varzeiros participa assiduamente dessa assembléias comunitárias, os ribeirinhos sabem de cor as piedosas canções.

Pouco antes das dez horas o padre inicia, finalmente, a celebração. Embora esteja na Amazônia há uma década, o franciscano originário do Texas maneja precariamente o idioma brasileiro. Mas sempre se faz entender pelos simplórios ouvintes das comunidades interioranas que visita, em intermináveis e penosos rodízios apostólicos.

Após a leitura do milagre da multiplicação dos pães, o sacerdote profere uma homilia alusiva às agruras da grande enchente. Diz, em certo instante de entusiasmo: – A cheia é ruim, meus queridos irmãos, não pela vontade de Deus, mas por causa da má vontade dos homens. Se os graúdos quisessem, se fossem eles que sofressem aqui como vocês, logo endireitariam esse rio, dando um jeito de corrigir o seu curso. Vocês teriam mais assistência e esses promesseiros não iriam aparecer na várzea só em véspera de eleições ou quando as desgraças são maiores, como agora, para depois dizerem no rádio e no jornal, que são os salvadores da pátria.

Lá no fundo, uma irreverente intervenção é ouvida por todos: – Tome cuidado, seu padre! O senhô é gringo e cumeça aí a fazer cumício contra o gumverno. Os sordado da polícia acaba encanando o senhô..

Estabelecendo-se um princípio de revoltada algazarra na platéia, Miracildo, o catequista, brada, com voz firme: – Respeita a Casa de Deus, seu bêbado!

Contudo, uns quatro fiéis já vão levando para fora o atrevido aparteante. Trata-se de Bené Gambira, lá do Atumã. Tomou umas antes da Missa e, metido a comunistóide, resolveu ameaçar o franciscano em pleno sermão. Até ao fim do ato litúrgico não ocorre mais nenhum incidente.

Encerrada a celebração, o povo espalha-se pelo imenso terreiro, onde se amontoam bancas de venda de café com bolos, mingaus e “rala-rala”, com gelo trazido na véspera da cidade, e conservado em caixotes com serragem de madeira. Até moleques com tabuleiros de pirulito e paçoca trançam pelo meio dos grupos que já se formam. Aos gritos, eles tentam vender os pobres atrativos.

Não só os meninos, mas, sobretudo, os castigados adultos sempre consideram essas raras e gostosas interrupções de uma rotina aniquiladora, um ameno deleite, que precisa ser devidamente saboreado. E se reúnem a rir, a conversar, comentando a inundação, dividindo esperanças, fazendo as tristezas ficarem menores ao reparti-las em fatias distribuídas entre os irmãos de calvário.

– O Divino Esprito Santo esse ano caiu muito tarde no calendaro – ensina Mário Catinga-de-mulata. É por isso que a gente tamo com essa água disconforme. Mas ontem eu arreparei, não sei se vocês viram: a Lua tava virada pra banda da cidade. É sinar seguro de vazante.

Assentindo com a cabeça, Mingote Pica-pau torce ligeiramente o assunto, embora permanecendo na mesma linha... fluvial: – Transantontem eu e o Raimundo Cuiteua corremo da bichona. – Conta, conta como foi! – pede Zé Potoca, sempre doido por um “causo”. Conta, que dispôs eu sorto a minha.

– Conta, conta, Mingote! – insistem todos, ajeitando-se confortavelmente no chão varrido.

Vão sair as últimas da cobra grande...

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 15


– O PEIXE-BOI  –
É sempre assim. Quando um perigo – seja bicho feroz, fogo, doença ou bala – nos amedronta e fere a alma, fica, durante algum tempo ou definitivamente, dependendo da coragem com que cada qual enfrenta a vida, fica um um complexo, um medo no pensamento e no coração torturado. Teme-se que a dose brutal de lágrimas se repita, pois dizem que as desgraças costumam chegar aos pares.

Na “Fazenda Apuizeiro”, após o enterro de Toninho, a relativa serenidade interior das pessoas andou muito abalada com a “neurose da cobra”. Receava-se que o par da sucuriju assassina estivesse a rondar por perto, em busca da companheira ou de alimento. Daí as cautelas, as advertências, os sustos ante qualquer coisa que parecesses com a infernal serpente. No entanto, ao correrem os dias com sua carga massacrante de tarefas e preocupações de outra espécie, a psicose foi diminuindo até que se extinguiu.

Zé Potoca vai descendo para desamarrar o batelão do capim. Ainda está escuro, pois são apenas quatro horas da madrugada. Ao conseguir entrar no barco, ele tem de conter uma espantada e alegre exclamação, que sai em voz baixa de seus lábios grossos: – Oba!... Muito pai-d’égua!... Hoje a gente não vamo dar murro no varejão!

Eis a razão da repentina euforia que lhe enche a alma de luz, antes mesmo de brilhar o clarão da aurora: acaba de enxergar, ali pertinho, um imenso matupá – ilhota de canarana e outros vegetais comestíveis – que encalhou na margem com a ventania da noite. Retida pela maromba, aí está ela, numa imprevista colher de chá atirada pela Mãezinha do Céu. Subindo no estrado, o vaqueiro examina bem a avantajada bolota de pasto e conclui, satisfeito, que os bois terão alimento para quase três dias, desde que se divida o presentão com engenho e arte. Antônio Presidente aparece, já pronto para viajar, e é recebido com espalhafato: – Eita, meu padrinho! Muito pai-d’égua! A gente hoje tamo por cima! Venha ver essa bacanagem: tem capim que nem ladrão acaba!

Presidente olha a forragem que chegou, de bubuia, na correnteza do Amazonas, e diz, algo preocupado: – Graças a Deus. Mas eu vou já chamar a Maria e os dois curumim maior pra ajudar nós. A gente tem que se avexar porque o rio tá correndo como o diabo gosta e essa porqueira fica aí forcejando em cima da maromba. Vumbora se virar, caboco!

Tão intensa é a atividade conjunta da família que, às sete da manhã, todo o capim foi retirado da ilhota. Potoca ainda teve que matar uma surucucu-pico-de-jaca. Por um triz ela não lhe acertou a picada, fatal se não houver socorro imediato. Depois de concluído o serviço, num violento esforço final, a turma desprende dos esteios da maromba a massa careca. Muito lentamente, lá se vai o bagaço, à deriva, no rumo de baixo...

Terminada a labuta não programada, o dono da fazenda lembra-se de uma notícia que lhe haviam dado e propõe ao companheiro: – Zé, o Totó Pica-pau me disse que anda boiando uns peixe-boi lá naquela restinga do Sovaco da Velha. Nós tamo meio forgado hoje. Vamo ver se a gente estragamo um corno desse? – Vumbora, meu padrinho! – aquiesce, entusiasmado, o leal caboclo. Já faz bem uns três ano que nós não matamo um peixe-boi.

Maria Flor intervém, complascente: – Vão mesmo se divertir um bucadinho. Vocês tenham sufrido mais do que cangote de estivador. A Mãezinha do Céu havera de abençoar essa pescaria, pois huje a santinha acurdô inda mais camarada. Mandou o rio despejar até capim na nossa porta. – Papai, deixe eu ir com o senhô! – pede Raimundinho, que, agora é o mais velho.

– Não, meu filho. Tu tem que ajudar tua mãe – responde-lhe o pai, arrumando coisas para a viagem.

– Que nada, Antônio! Leva o menino. Deixa que eu me ajeito com os outros – sentencia a esposa, com autoridade.

– Pois vumbora, moleque! – concorda Presidente. Mas o peixe é velhaco que nem rato. Se tu atrapalhar nós, eu te meto peia. Veste uma camisa, põe o chapéu e vumbora.

Sai o barco “Flô das onda II”, que deverá navegar durante hora e meia para que se chegue ao local pretendido. Olhando a desolação da paisagem que vai surgindo ao longo do caminho, com as casas quase totalmente no fundo, o crioulo fala alto, para superar o ruído da máquina: – Meu padrinho! – Que é?! – Quando nós parar eu quero lhe dizer uma coisa! – limita-se a prevenir Zé Potoca, que de vez em quando tem uns rompantes idiotas.

Chegando o bote às proximidades do lugar procurado, o fazendeiro desliga o motor. Eles devem prosseguir, agora, a varejão, tanto por motivo do capinzal espesso, como para não afugentar os ariscos peixes que desejam arpoar. Cessada a barulheira da máquina, pergunta Presidente: – Que diabo então tu quer comigo, rapaz? – Não é nada, não, padrinho. Eu ouvi dizer que quando a água tufa muito aqui na varja, ela seca num tar de Ceará e outros país. Então eu fico mardando assim: puxa vida, Deus até que faz as coisa bem pai-d’’egua!

Pega a cuia do porão e vai movimentando a vasilha conforme as palavras que pronuncia: – A terra é paresque uma baita cuia, uma cuiona do tamanho do céu. Então, quando Deus entorta ela pra este lado, enche aqui e fica seco lá. Se Ele emborca ela ao contrário, enche no Brasir e vaza aqui. Não é? – Sei lá, homem! – retruca Antônio, fazendo força na vara. Tu sai com cada arrumação insquisita! Eu nunca estudei essa tar de Ingronomia pra conhecer essas porquera direito. Mas vamo calar logo a buca, senão a gente não pegamo nem baiacu! – encerra, ríspido, o padrinho, que nunca teve grande paciência nesses momentos de original loquacidade do benquisto xerimbabo.

Antes de iniciar a tocaia, Presidente instrui muito bem o filho calouro: o peixe-boi tem o ouvido altamente sensível e, por isso, qualquer barulhinho, quando ele vem à tona, espanta o animal. Nem fósforo risca-se na canoa.

Agasalhados num esconderijo que lhes parece bom, todos ficam quietos e silenciosos. O esposo de Maria Flor segura o arpão firmemente preso a uma longa vara de pau-d’arco, ligada a um resistente cordel plástico de cem metros de comprimento.

Não transcorreu ainda meia hora de espera, quando o que eles chamam de “bezerro” – o filhotão do peixe-boi – emerge, perto. Com a máxima cautela, Presidente ergue o braço para lançar o ferro, mas nesse crucial instante o impossível acontece: – Atchim!... – espirra, com estardalhaço, Raimundinho!

– Seu cachurro do cão! – explode, furioso, o pai, aplicando-lhe dois cascudos. Tu fez o peixe fugir, moleque sem-vergonha! Mardita hora em que eu arresorvi trazer essa peste! Vá ser panema assim na baixa da égua! Vute!

– Eu não agüentei mais, papai! – explica, a chorar, o desastrado menino. Já fazia um bocado que meu nariz tava coçando. – Cala já essa buca suja, curumim perebento, senão eu te bando a cabeça com essa vara!

Ficam quietos, de novo. Em períodos mais ou menos regulares, o estranho peixe sobe para respirar e comer o capim da superfície. Todavia, se toma um susto, pode ir embora e não voltar mais, indo reaparecer num local muito distante.

A paciente vigília já se prolonga por duas horas, quando, sem dizer nada, Antônio leva o dedo indicador aos lábios, num gesto em que exige completa imobilidade. Algumas bolhas espumantes anunciam a presença iminente da cobiçada embiara. Primeiro, surge um focinho avermelhado e, depois, uma parte do cinzento dorso. De pé, o caboclo solta vigorosamente o arpão que penetra, fundo, no lombo do animal. Agora, podem falar e espirrar à vontade, porque a bóia está segura...

No desespero da dor, o bichão dispara pelo capinzal, arrastando consigo todo o peso do barco e de seus três ocupantes. Firme, no banco da proa, o experiente pescador segura a corda. Não sendo muito grande, logo o fujão há de se deter, extenuado.

Cinco minutos depois, emaranhando-se numa galharia do igapó, o peixe pára, exausto, mas ainda sacudindo raivosamente o rabo em forma de pá. Com todo o cuidado, Antônio enfia uma cunha de madeira roliça numa das narinas do boi aquático, fazendo-o agitar-se com ligeira e ainda perigosa violência. Tenta, inclusive, arrancar o tarugo que lhe meteram na venta, acionando a insólita nadadeira lateral que possui na parte anterior do ventre. Entretanto, ao receber o segundo rolo na outra narina, ele é convulsionado pelos derradeiros espasmos agônicos e... está morto. Agora, bóia, de barriga para cima.

É com muito trabalho que a trinca de varzeiros consegue embarcar a grotesca figura biológica, apesar de serem relativamente modestas as suas dimensões: deve pesar uns cento e vinte quilos, quando até de duzentos ou mais se pode apanhá-los. Trata-se de um peixe com hábitos singulares, desde que vive na água, alimenta-se de capim e “fisionomicamente” faz lembrar um boi. Apresenta cinco dedos sob o couro de duas patas-nadadeiras e, com o corpo redondo, aerodinâmico, dá a impressão de uma descomunal e acinzentada melancia.

O Sol já vai assinalando quatro horas da tarde no momento em que o “Flô das onda II” zarpa de volta à fazenda. A bóia anda tão escassa em toda a várzea que, durante dias seguidos, só conseguem os caboclos enganar o estômago com os mandis e piranhas fisgados pelos meninos, que jogam o anzol da varanda ou da cozinha. O grosso dos cardumes está embrenhado nos igapós, engordando para as piracaias do verão. Alegre com o êxito da pescaria, Presidente grita, rindo, para Raimundinho, o autor da inédita façanha espirratória: – Mas tu é um bestão mesmo, meu filho! Então quando eu ia arpoando o bichão, tu sortou um disconforme dum espirro que butô até arma penada pra correr? – Gargalha, sacudindo-se, e acrescenta: – É muita uruca prum curumim desse tamanho! Tua mãe percisa rezar pra ver se tu fica menos panema. Vute!

E os três riem muito, acariciando, vez por outra, o falecido e imenso peixe-boi...

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 14


– A SUCURIJU –
A tarde já vai mostrando os sintomas iniciais do mal galopante que, dentro de uma hora, por entre desmaios e rubores, há de levá-la ao suspiro derradeiro. Maria Flor esfrega umas roupas das crianças nos degraus da escadinha dos fundos, quando um dos meninos grita: – Mamãe, a sucuriju pegou o patarrão! ...

A mulher corre, mas Antônio, que regressa da maromba onde estava cuidando das reses, dá vigorosas remadas na montaria e parte no rumo indicado pelo garoto, que disse ter visto a cobra fugir para as bandas do aningal próximo. Como, porém, o local já está parcialmente no fundo e é muito feio, o caboclo, depois de navegar um pedaço, reconhece que não adianta perseguir agora a temida serpente. Preocupado, pergunta ao filho: – Tu viu ela? De que tamanho era? – Eu não vi bem o tamanho. Mas paresque era grandona e assim da grossura de uma lata de leite “Ninho”.

Quieto, no pontalete da canoa, o varzeiro calcula que, se é correta a informação do guri, deve ser uma cobra para uns três ou quatro metros, no mínimo. É um desassossego a mais, neste fim de mundo, saber-se que passeia pelo quintal alagado uma traiçoeira e aterrorizante sucuri, a fera que mata se enroscando com tremenda força no corpo da embiara que lhe cai no bote – seja pato, boi ou gente.

Quarenta e oito horas mais tarde, o ramerrão de outro dia insuportavelmente igual aos anteriores e vindouros está quase encerrando. Terminou-se de inspecionar as quatro dezenas de animais restantes e foi preciso jogar, lá no meio do rio, uma esquelética novilha morta pela manhã. Só de olhar os esfomeados bichos em cima do estrado, Antônio sente um desespero a lhe pungir o coração. Contam-se as costelas de cada um e os pontiagudos ossos das ancas estão quase varando o couro, tal a magreza do gado. Se a vazante demorar, ele não tem dúvida de que os prejuízos serão totais.

Entardece. Cansado, o Sol se apóia sobre as copas da mataria azul, reunindo esforços e coragem para o mergulho no desconhecido, de onde boiará, de manhãzinha, consumando o milagre triunfal de um novo dia. Entretanto, ainda está bem claro e Antônio Presidente atira a primeira cuia com água sobre o corpo, num gostoso banho, quando reboa pelo ar o berro horrível: – Aaaiii!... Papaaaiii!...

– A sucuriju pegou o Tuninho! – denuncia, espavorida, a irmã de sete anos.

Como um raio, Maria Flor, que costurava, pula n’água, com a tesoura grande na mão.

– Deixa comigo! – brada, enérgico, o marido, correndo com o facão afiado. Dá uma trombada na menina, atirando-a longe e salta quase em cima do monstro que aperta a esperneante criança em suas roscas fatais!

Com indizível pavor nos olhos esbugalhados, lutando desesperadamente para se livrar da triturante pressão, ruge a inocência martirizada: – Aaaiii!... Papaaaiii!... Me sarve, papaizinho!... Meus osso tão quebrando!... Mamãezinha do meu coração! Aaaiii!...

Os quatro irmãos da vítima fazem tremendo alarido de medo e compaixão, enquanto se trava formidável combate aquático. Sua simples visão é suficiente para fulminar covardes ou cardíacos. Maria Flor conseguiu agarrar a cabeçorra da enorme cobra e tenta introduzir a tesoura em seus olhos, pondo, na briga desigual, toda a força que lhe dá a alma rasgada de dor e ódio. Escancarando a bocarra onde se agita a língua bífida, a serpente procura morder o rosto da valente mãe.

Louco de fúria, Presidente acerta a primeira terçada na fera, que logo começa a afrouxar o torniquete assassino, dando rabanadas violentas que fazem um escachoante tumulto na água suja. Repetindo, vezes sem conta, os violentos golpes, o alucinado pai termina matando a sucuriju. Mas, quando retira o menino daquele inferno de sangue e lama, compreende, com um profundo soluço, que tudo foi inútil: toda fraturada, a criança acaba de morrer, por asfixia! Recebera o bote fatídico da cobra quando brincava na escada do alpendre.

Antônio não chora há muitos anos e nem saberia dizer quando isso ocorreu pela última vez. Todavia, com o garoto morto nos braços, exausto da luta feroz, o pobre pai, agasalhando o cadáver sobre a mesa da cozinha, não consegue reter o pranto convulsivo. O rio acaba de lhe roubar o segundo filho em menos de três meses!

Entrando um pouco depois, Zé Potoca nem precisa perguntar nada: viu o monstro estraçalhado lá na porta e, de longe, escutara o berreiro pavoroso. Limita-se a curvar a cabeça sobre o peito nu, lagrimando em silêncio. Dos cinco meninos, esse era sempre o mais amigo do crioulo. Está, assim, outra vez enlutada e em tão dolorosas circunstâncias, a bela “Fazenda Apuizeiro”.

Aplacada a tempestuosa crise emocional que agitava Maria Flor e postos em calma os chorosos maninhos do falecido, passa-se a fazer o que a vida (ou a morte?) exige: mandar avisos à vizinhança através do prestativo afilhado e preparar o velório do pequeno defunto, para, no dia seguinte, conduzi-lo ao cemitério de Paricatuba. No entanto, fazendo das tripas coração, Antônio ainda vai substituir o vaqueiro no fornecimento do capim para a pequena boiada. É que, na várzea, até o sofrimento, às vezes, se torna um luxo proibido.

Antônio e Maria não dormem um minuto sequer nessa noite, arrastada e interminável como soro pingando em veia de doente. Além da mágoa dilacerante de um filho a menos, o caboclo tem seu martírio ampliado por uma amarga sensação de culpa: acha que deveria Ter morto a sucuriju de qualquer maneira, quando ela pegou o pato. A esposa, porém, já lhe disse, com o apoio de todos os amigos presentes: – Tira isso da cabeça! Era o dia dele. Se tu havera de matar essa marvada, o cão mandava logo outra mais grande do que ela. Foi a vontade de Deus.

É impossível acreditar, contudo, por mais fatalista que se consiga ser, que o Senhor de todas as misericórdias tenha desejado mesmo que uma criança morresse tão pavorosamente assim.

Às duas horas da fria madrugada, com os caboclos jogando baralho, na cozinha, para espantar o sono, começam os dois cônjuges a conversar, a prestações e em voz baixa, debruçados no parapeito do alpendre: – Essa nossa vida, Maria, tá mesmo um causo sério – principia, hesitante, o marido.

Ele nunca mais fumara. Contudo, para acalmar os nervos esfrangalhados, pita um cigarro que enrolou durante dez minutos, já sem a prática antiga. Contra os seus hábitos de tagarelice, a mulher continua muda, a olhar, de mãos no queixo, um ponto invisível na cara da noite escura. Mais alguns momentos transcorrem. Como quem pensa alto, Presidente fala, de novo: – Nem que nós havera de se acabar tudinho em boca de cobra ou jacaré, eu juro que não arredo pé daqui pra canto argum. Para onde, então, a gente podia se mudar? Pra murrer de fome na cidade, é mais melhor penar na varja. Pelo meno no verão a gente não véve desinfeliz.

Suspirando fundo, Maria Flor concorda, embora com alguma grosseria: – Não fica pensando bestera, homem. Eu só ia de vez morar na cidade se fosse presa por sordado e levada para o xilindró. Aqui a gente pega bote e dentada de cobra, ferrada de caba, arraia e lacrau. Lá é carro que mata, é bandido que assarta, é ruindade de patrão e ortoridade que só quer os pobre como inleitor, engraxate e lavadeira. Tisconjuro!

Por toda a redondeza, sapos seresteiro e insones continuam a ensaiar, em conjunto, a mesma interminável e áspera sinfonia e o fazem como quem raspa fundo de cuia com caco de vidro: – Crrrrôooo!... Crrrrôooo!... Crrrrôooo!...

Como contraponto ao monótono coral, uma rês faminta, ou agonizante, faz a segunda voz lá na maromba: – Muuuuuú!...

Dando um tapa no próprio rosto, como autoflagelação, mas, em verdade, esfarelando um carapanã impertinente, Antônio confidencia, enquanto atira a bagana do cigarro dentro do rio: – Eu tô com muita vergonha de ti e dos pirralho, Maria.

Abaixa a cabeça, mas, erguendo-lhe o queixo com as mãos e fitando meigamente os seus olhos, indaga a esposa, com ternura na voz: – Mas por que então, meu bem?

Usada com pouca freqüência, a expressão carinhosa surge no instante psicológico exato. A esperta criatura intuiu rapidamente a razão determinante do incomum desabafo e se sente na feminina obrigação de confortar o seu humilhado e másculo companheiro.

Com a dificuldade visível de quem se esforça querendo vomitar coisa intragável, ele comprime a mão da esposa de encontro ao próprio coração e diz, num sussurro: – Eu churei na ilharga de vocês. E churei como criança. Macho não chora, Maria. Só lagrima.

Lutando para não dar continuidade ao teimoso pranto que já lhe ensopa os olhos amarelados, Maria Flor aperta-lhe fortemente a mão calosa. Não pode dizer nada, ainda. Mas assim que consegue engolir o nó da garganta, segreda-lhe ao ouvido: – Não pensa mais nisso, meu amurzinho. Vergonha é robar e ser marvado. Tú só fez churar a morte tão triste do nosso Tuninho. – Detém-se, engasgada. Mas logo completa, num só fôlego: – Eu inda te quero mais bem dispôs dessa desgraça. Sei que tu é macho pra cachurro, mas tu não deixou de ter um coração bom e amuroso dentro do peito.

E, de rostos unidos, os dois emocionados caboclos ali ficam, durante longos minutos. Na cozinha, o jogo de baralho prossegue, animado, a até uns palavrões já saíram por lá. É preciso, porém, interromper o doce colóquio para servir mais uma rodada de café quentinho aos participantes do velório. Como foi uma criança que morreu, não se bebe cachaça. Só em vigília de adulto os varzeiros gostam de tomar umas duas ou três.