sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 22


– O DEBATE –
A imprensa de Belém do Pará possui assunto farto para muitos dias. Os “calamitosos efeitos da fenomenal enchente de 1971” constituem o prato principal das edições. Como o povo sofre de memória curta, não faz diferença a repetição de manchetes e até de alguns textos dos anos anteriores.

Nesta quarta-feira, os matutinos exibem fotografias verdadeiramente sensacionais: maromba que desabou em Oriximiná... reses atacadas, na várzea de Alenquer, por um estranho mal, ainda não diagnosticado... políticos de cócoras, confortando enfermos em barracas submersas e até o líder da maioria na Assembléia Legislativa atravessando o buraco da cobertura de um tapiri...

Além da entrevista do Secretário de Saúde, anunciando “severas medidas do governo para pôr um termo definitivo à grave e intolerável situação”, os jornais agasalham ainda outros informes de relevante interesse comunitário. Pronunciam-se fogosos e eruditos os debates entre os deputados, pois o combativo parlamentar Arcângelo Salvador inscreveu-se para ocupar a tribuna durante o grande expediente. Mas a bancada oposicionista, segundo os cálculos de bem informados colunistas políticos, deverá colocar em boas enrascadas oratórias o porta-voz do governo estadual.

Três horas da tarde. Presentes todos os ilustres representantes do povo e repletas as galerias, tem início a esperada sessão. Feitas algumas comunicações sem importância, Fortunato Filho, que preside o Poder Legislativo, concede a palavra ao líder situacionista.

Havendo integrado a comitiva que, no último fim de semana visitou o Baixo Amazonas, o posudo orador começa historiando as “superiores razões da patriótica viagem de estudos”. Em seguida, realça o “comovedor interesse deste grande governo em resolver a problemática dos nossos queridos irmãos da hinterlândia, sobretudo porque a várzea se erige como altaneiro propugnáculo da promissora economia planiciária”. Logo, entretanto, com a devida autorização do arrebatado tribuno, intervém o deputado Trancoso Setembrino, aguerrido componente da facção contrária:

– Ao repetir, com irritante insistência e condenável servilismo, que o governo atual sofre com a sorte dos ribeirinhos, Vossa Excelência insinua, desastrada e maldosamente, que nenhuma administração anterior fez qualquer coisa por essas massas infelizes. Quero apenas refrescar a memória do pobre deputado, dizendo-lhe que o Pará está sendo governado há sete anos pelo mesmo partido político.

– Agradeço a intervenção de Vossa Excelência – reinicia Salvador. Deixo claro, porém, que não estou atirando lama sobre quem quer que seja. Insisto apenas em proclamar – e o faço com desassombro, sem temer contestações! – que, sem demérito para os demais, o governo que aí está vem fazendo até o impossível para recolocar sorrisos definitivos nos rostos amargurados desses mártires sacrossantos das várzeas, às vésperas de sua radiosa e gloriosa libertação total! Órfãos da vida, esquecidos pelo próprio Deus, eles são, porém, lembrados por autoridades que chegam aos páramos do sublime, agasalhando-os amorosamente, como enternecidas mães desveladas, nos abismos de seus corações!

As galerias tentam manifestar-se, mas tímpanos soam, o silêncio é mantido e Setembrino aparteia:

– Dá até vontade de chorar, nobre colega! Palavra de honra! Os corações desses seus angélicais correligionários devem ter parentesco bem próximo com os velhos e sacolejantes ônibus desta capital: por mais superlotados que estejam, sempre têm lugar para mais quatro...

– Aceito intervenções ao meu discurso, mas só em termos elevados, à altura das magníficas tradições desta augusta Casa do Povo! Não admito molecagens de Vossa Excelência, nem de qualquer outro parlamentar. Estamos aqui, afinal, para dizer aos paraenses que confiem em nós e serão inteiramente felizes. Se o eminente membro da oposição repetir a deselegante atitude, não mais lhe concederei o direito de me perturbar este importantíssimo e histórico discurso.

– Peço desculpas ao brilhante deputado – penitencia-se, com visível cinismo, o ofensor.

Risos abafados entre os assistentes... O presidente da Casa exige compostura e ameaça evacuar as galerias. Arcângelo prossegue, dando ciência, no mesmo diapasão bombástico e enjoativo, das maravilhas planejadas pelos técnicos das Secretarias de Saúde, Agricultura e Obras, “trabalhando em perfeito e patriótico entrosamento para a rápida redenção dos varzeiros”. Em certo momento, declara, pomposo:

– Como intérprete humilde, mas leal, dos anseios governamentais, é com intensa emoção que informo agora: ultimam-se os detalhes de uma vasta, de uma formidável “Operação Salvamento” – coisa sem precedentes! – objetivando remover, no prazo máximo de uma semana, cerca de quarenta mil pessoas, das várzeas inundadas para as cidades mais próximas! Será, graças ao ínclito governador e a Deus, a salvação irreversível dos flagelados! – brada, triunfal, de braços abertos.

– Peço um aparte! – exclama Setembrino.

– Com grande prazer – aquiesce o tribuno, passando o lenço no rosto suado.

– Isto seria uma alegre palhaçada se não fosse revoltante, afrontoso, intolerável e trágico! Fala-se em retirar, às carreiras, milhares de párias dos alagados infernos para as zonas urbanas, o que, além de impossível e imbecilmente demagógico, seria apenas uma forma diferente de matá-los à mingua. Fugiriam à morte por afogamento, fome e epidemias para se acabarem, cadavéricos, em marombas erguidas na periferia do asfalto ou nas sarjetas, mendigando nas ruas! Isto é uma irresponsabilidade criminosa, possível de processo e cadeia. É mais um atestado público da monumental ignorância, da estupidez jumentícia com que são tratados os problemas regionais, senhor presidente e senhores deputados.

Vermelho de raiva, Salvador retruca, gritando:

– Com essas demagógicas palavras, Vossa Excelência prova estar abissalmente alienado de uma realidade que até os cegos enxergam. Saiba que nós acabamos de passar nada menos de dois dias andando na área afetada pela enchente e sentimos que não há outra solução de igual magnitude e tanto senso prático. Basta que se diga a esta Casa o seguinte: nosso amado governador sobrevoou as várzeas durante meia hora. Só por isso mereceria unânime e agradecida moção de congratulações por sua reconhecida clarividência administrativa.

Sem pedir licença, esgoela-se Trancoso:

– Vossa Excelência e vis comparsas estiveram no Baixo Amazonas fazendo turismo às custas da miséria popular, enquanto a vaidade única de minha vida é ser filho daquela esquecida região. Sou caboclo nascido e criado em Santarém! Respondo, portanto, a esse plano monstruosamente idiota com uma gargalhada e uma banana!

No gesto característico, o parlamentar imita a fruta com os braços e complementa, colérico:

– O nobre líder situacionista não passa mesmo de um desprezível moleque de recados, de um palhaço como o são todas essas vaquinhas de presépio que endossam qualquer imbecilidade. Realmente, há homens que conduzem no cérebro o que deveriam esconder nos intestinos!

As galerias aplaudem ruidosamente o aparteante. Antes, porém, de retomar a palavra, o presidente da sessão adverte a assanhada platéia: não vai tolerar qualquer outra manifestação. Apoplético, troveja Salvador:

– Não se insulta impunemente um homem de bem e muito menos quando o vômito verbal se generaliza, atingindo outros cidadãos incorruptíveis e parte de um cachorro como Vossa Excelência!

– Cadela é a distinta mãe do nobre deputado! – responde, erguendo-se e caminhando para a tribuna o decidido oposicionista.

Arcângelo desce, rápido, ameaçando, aos gritos:

– Vou quebrar a cara sem-vergonha de Vossa Excelência, cretino, crápula, canalha!

Instala-se o tumulto. As duas bancadas trocam desaforos, como se nunca houvessem tomado conhecimento de algo que os próprios representantes das multidões chamam decoro parlamentar. A equipe de segurança intervém, separa os valentões. Furioso, o presidente esbofeteia os dois tímpanos, exigindo silêncio, e comunica: – Está suspensa a sessão até que o sacrossanto decoro parlamentar retorne ao seio augusto desta conspurcada Casa do Povo!

Os moderadores vão acalmando os dois fumejantes candidatos a pugilistas e até conseguem, nuns cinco minutos de judicioso “deixa disso”, que Salvador e Setembrino concordam, para assombro da platéia, em trocar um apertado abraço de paz... As galerias explodem numa ululante vaia e são imediatamente evacuadas pelos homens da segurança, acatando ordens da presidência.

O deputado Esperidião Santa Rosa, veterano legislador, pondera, tomando um cafezinho:

– O entusiasmo dos civilizados debates parlamentares é, em verdade, o mais enobrecedor apanágio das democracias autênticas, transbordantes de vitalidade. A efervescência efêmera dos espíritos, no entrechoque sublime das idéias díspares, é indício de vida e criatividade. Tudo isso dignifica o parlamentar.

Nada mais disse, nem lhe foi perguntado. Reposta a serenidade no ambiente austero, Arcângelo sobe outra vez à tribuna. Mas anuncia de saída:

– Como é de crucial relevância para os destinos do povo o que ainda me cumpre relatar a Vossa Excelências, senhor presidente e senhores deputados, e o tempo urge, participo à nobre e patriótica bancada oposicionista que não concederei apartes.

Protestos. Tímpanos acionados. Silêncio no Plenário.

O orador passa a desfiar um cansativo monólogo, especificando a quantidade colossal de vacinas e pílulas que o governo enviará aos ribeirinhos. Discorre sobre o “curriculum vitae” do novo Secretário Estadual de Saúde e presta outras atraentes informações. Tem o cuidado de não dizer mais nenhuma palavra sobre o fantástico remanejamento de quarenta mil caboclos em uma semana. Tão comunicativo é o orador que, ao terminar sua saborosa explanação, só os leais correligionários permanecem, a bocejar, em suas poltronas. Dois deles perderam a cerimônia e dormem, placidamente, de cabeça esparramada no peito. A oposição escafedeu-se. Isso tudo não impede que, findo o discurso, a miúda platéia aplauda o denodado líder: – Muito bem! Apoiado! Viva o Brasil!

E o abraçam efusivamente ao descer da tribuna, onde fez um trabalho tão cintilante. Seja como for, os jornais dispõem de novos petiscos para amanhã: engalfinhamento frustrado na Assembléia... fotos de parlamentares roncando e... enchente!

No ônibus, um popular desdentado olha o jornal, vê as manchetes da véspera e diz ao companheiro de banco: – Essa pitomba de enchente já tá enchendo o saco. Deviam ter deixado esses deputados quebrar a cara um do outro.

Com a máxima atenção, passa a ler a página de esportes.

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