terça-feira, 19 de junho de 2018

O Brasil é um sonho intenso

Por Ana Carla Abrão, colunista do Estadão
A apatia parecia ser a característica dessa Copa, como que refletindo um sentimento mais amplo. Não havia bandeiras expostas nem ruas pintadas. Mas foi o Brasil entrar em campo que o verde-amarelo apareceu. Marca brasileira, o futebol nos dá alegria, nos traz o Brasil grande, forte, vitorioso. A Copa, em particular, nos resgata aquele orgulho canarinho e desperta nossa identidade. Ela expõe com orgulho nossas raízes, revive a mistura de raças e levanta aquela moral nacional, algo combalida nos tempos atuais.

Sonhamos com a vitória, com o gol, com o brilho de um país cheio de vontade. Mas vem um empate e hoje nos frustra mais que nunca. Talvez menos pelo jogo e mais porque estamos em busca de salvação, de redenção. Nos falta onde nos segurar e por onde resgatar a confiança de que os dias que virão serão melhores do que aqueles que já foram. Afinal, estamos órfãos de heróis, que teimam em não surgir, se negam a nos surpreender.

Na falta deles, um povo cansado se agarra a falsos salvadores, que só nos sensibilizam nas nossas raivas, decepções e frustrações. Não é desses que precisamos. O Brasil precisa de uma liderança que nos defenda a todos nós – e não aqueles que gritam mais e podem mais. Precisamos de alguém com legitimidade, que nos defina um rumo, um caminho, uma agenda. Precisamos de alguém que nos diga que chegamos ao limite e que assim não dá mais para continuar, pois, se assim formos, corremos o risco de perder tudo, inclusive o que merecemos. Precisamos de alguém que faça o que precisa ser feito, em nome de todos e não dos que já nos levaram quase tudo.

O que nos falta é essa visão, essa serenidade e essa convicção de que não será dos pés de um craque formidável que sairá aquela grande jogada que nos livrará o grito de gol. Afinal, há sim trabalho, reconstrução, retomada, mas com sangue, suor e lágrimas. Não nos enganemos, pois a tarefa é árdua, há um passado a ser resolvido. Vivemos no campo e na vida um 7 a 1 que nos legou um trauma e, no concreto, uma péssima herança de desequilíbrios, de malfeitos e de privilégios que muito custam ao País. Uma herança que consolidou a cultura de que tudo pode, sem custos, sem ônus e sem deveres, só direitos. Para mudar a situação atual, para achar o rumo e retomar uma trajetória correta e justa há muito o que fazer, a reconquistar e, acima de tudo, a reformar.

As últimas duas semanas, marcadas por incertezas, turbulências e perdas, nada são além de uma constatação do que poderemos ter pela frente se não despertarmos desse marasmo. Deveriam servir como um alerta. Afinal, o grande jogo de 2018 certamente não será na Copa e sim nas eleições. Em outubro de 2018 estaremos decidindo que país queremos. Estaremos definindo se entregaremos o nosso futuro a falsos heróis que nos prometem o nirvana frente à realidade do inferno ou se buscaremos a dureza do trabalho em garantia do porto seguro e certo.

O Brasil vive uma grande crise, talvez a maior de todos os tempos. Não há como negar os problemas fiscais, ou a captura do Estado por interesses particulares e a força das corporações que avança sobre o interesse público. Não há como ignorar que temos hoje uma classe política alienada, autocentrada e desconectada dos interesses do cidadão. Não há como não perceber que nossa sociedade está descrente mas, ao mesmo tempo, quase nada entende das relações de causalidade entre esse nirvana prometido – e almejado – e a falta de emprego e renda que nos aflige.

Eleição, ao contrário do jogo do último domingo, não é só mais um jogo. É uma decisão que nos custará o futuro – nosso e de nossos filhos. Se não conseguirmos entender a gravidade do momento atual e a importância das nossas escolhas, não haverá hino cantado a capela, camisa canarinho ou grito de gol que evitará mais alguns anos de recessão, desemprego, retrocesso e pobreza. O Brasil tem essa força intensa de quem quer dar certo, de quem quer ser grande. Mas precisa acordar e entender que enfrentar as dificuldades do presente é o único caminho para que o futuro finalmente espelhe essa grandeza.

segunda-feira, 23 de abril de 2018

'Não faz bem para o país Lula preso', diz Marcos Valério, operador do Mensalão


São 12h15 quando se abre a segunda porta de ferro que leva a ala reservada aos presos do regime fechado na Apac (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados) de Sete Lagoas (MG).

Quem controla a entrada é Marcos Valério Fernandes, 57, condenado a 37 anos e cinco meses de prisão pelo Mensalão do PT e também acusado pelo mesmo esquema em governos tucanos.

De prancheta e caneta na mão, o ex-publicitário acusado de ser o operador do sistema de corrupção é um dos oito membros do CSS (Conselho de Sinceridade e Solidariedade), um dos pilares de funcionamento da unidade.

O CSS se ocupa da disciplina, tarefa que nas Apacs cabe aos chamados recuperandos, como passam a ser qualificados os presos que deixam o sistema prisional comum para cumprir pena em um presídio sem agentes penitenciários nem armas.

Marcos Valério foi transferido para uma das 38 Apacs do estado em julho de 2017, quando o Tribunal de Justiça de Minas Gerais atendeu a um pedido da Polícia Federal.

Deixar o presídio de segurança máxima Nelson Hungria, em Contagem (MG), onde cumpriu três anos e sete meses de prisão (após seis meses na Papuda, em Brasília), foi uma das condições de um acordo de delação premiada ainda em andamento.

Em uma das mesas do refeitório, onde dali a pouco seria servido o almoço preparado pelos próprios presos –carne cozida com batata, arroz, feijão e beterraba (maçã e banana de sobremesa)–, Marcos Valério discute as condições para quebrar o silêncio. “Faz dez anos que não dou entrevistas”, diz, com voz suave, cabelos crescidos e tingidos de preto.

O visual cabeça raspada da época que estourou o escândalo foi adotado em solidariedade ao filho caçula que morreu de câncer, lembra ele com olhos marejados. A quimioterapia para tratar um linfoma também o deixaria careca por um tempo.

É um Marcos Valério saudável e disposto que pula a refeição da prisão e prefere comer granola. Conta que emagreceu dez quilos em sete meses de Apac, ganhou músculos e se casou em 26 de janeiro com Aline Chaves, sua companheira há quase cinco anos. “Sou muito grato. Decidi dar a ela o meu nome.”

Ele conheceu a estudante de nutrição baiana de 26 anos seis meses antes de começar a cumprir pena pelo Mensalão. Relata que já havia se separado de Renilda, mãe de seus dois filhos, um garoto de 16 anos e uma jovem de 27.

“Erros cometidos por mim e por um monte de gente me custaram muito caro. Custou a educação do meu filho, custou quase cinco anos longe deles. Quando minha filha precisou de pai em momentos difíceis, eu não estava presente. Perdi o casamento dela, o nascimento do meu neto.”

Os filhos, assim como a mulher, costumam visitá-lo nos finais de semana. O novo casal tem direito a três visitas íntimas por mês.

A seguir, os principais trechos da entrevista exclusiva à Folha, concedida na sala transformada em ateliê, onde Valério dá aulas de pinturas aos companheiros de regime fechado e pinta telas que enfeitam a sala da administração do presídio.

Apac x prisão comum 

“As pessoas lá fora pensam que isso aqui é privilégio. Não. É a lei. É o cara trabalhando, produzindo, pensando, respeitado. Cuidando da própria comida, da própria roupa, do próprio dormitório e em contato com a família de forma respeitosa.”

“Você não vê droga na Apac. Não vê celular. No presídio, você vê droga e celular. Qual é o milagre que esse povo faz aqui com menos dinheiro do que aquele monte que vai para a Nelson Hungria? Deve ser alguma coisa que faz com que o dinheiro não saia pelos dutos.”

“No sistema tradicional, a sociedade já perdeu a guerra contra o crime. O sistema prisional comum é uma grande universidade, onde os antigos no crime ensinam os mais jovens e vão utilizá-los lá fora. O melhor local para se fazer um exército de marginais, de pessoas carentes e sem perspectivas, é a cadeia.”

“Desculpa, mas as facções só vão crescer e se tornar mais fortes. Não se iluda. Tem político eleito com dinheiro das organizações [criminosas]. Elas estão dentro dos partidos políticos.

“O único oásis que aparece são as Apacs. E está todo mundo querendo ir para ele. No meu caso, o sistema tradicional vende dificuldades e opressões para depois vender facilidades.”

“O certo é fazer pequenas cadeias igual a esta e tirar o Estado da administração porque senão vamos ter corrupção na compra de remédio, na venda de quentinhas. O preso aqui faz a comida dele. Decente. Com toda dificuldade, esse sistema aqui custa dez vezes menos. O Estado está roubando e bem.”

Violência na cadeia 

“Quebrei meu punho lá dentro [da Nelson Hungria]. Tem inquérito. Um agente colocou uma algema bem apertada e quebrou o osso [aponta para o punho esquerdo, que tem uma mancha escura no lugar onde o osso calcificou deformado]. Um recado muito bem dado para eu não criar tanto problema. E aí tive que tomar cuidados redobrados.”

“Ninguém processa o Estado. Ninguém põe na cadeia um governador que faz uma cadeia daquele jeito.”

“O Estado é uma força de contenção. Te mantém naquele cercado. Mas dentro ele não te protege. Ele [o preso que é empresário ou bilionário] vai ser obrigado a financiar o crime lá fora. O Estado criou isso quando misturou todos.”

“É mais perigoso viver lá fora do que dentro do sistema. No meu caso, eu aprendi a viver lá dentro e a me proteger. Respeito muitos presos da Nelson Hungria. E sei que eles me respeitam. Dentro do código de honra deles, eu fui muito leal a eles e eles a mim.”

TREMEMBÉ

Marcos Valério se recusa a falar sobre os cem dias que passou na Penitenciária 2 de Tremembé (SP), entre outubro de 2008 e janeiro de 2009, quando teve prisão preventiva decretada em um processo em que é acusado de forjar um inquérito para prejudicar fiscais que haviam multado a cervejaria Petrópolis.
Após ser espancado várias vezes na cela, ele teria conseguido proteção do PCC (Primeiro Comando da Capital) para se manter vivo dentro da penitenciária.
“Não tenho interesse de conversar sobre esse assunto. Já passou”, disse, sobre os episódios que deixaram cicatrizes nas costas e resultaram em implante dos dentes da frente da arcada superior.
Ele também não quer falar sobre os processos de delação que negocia com a Polícia Federal e com o Ministério Público em Minas e no Distrito Federal. “Teria que entrar no mérito de certas coisas e não quero. Não posso.”
Discorreu sobre a prisão do ex-presidente Lula, sobre o momento político e o impacto do escândalo do Mensalão em sua vida e da família.

Lula na cadeia

“Fico triste. Pelos familiares e também pelo transformador que Lula foi. Apesar de todos os erros que cometeu. Tenho certeza de que ele vai analisar e chegar a esta conclusão. Mas ele foi um transformador. Um ícone, né? Eu fico triste. Não faz bem para o país Lula preso.”

“Parei para pensar sobre o preço que a transformação paga. Naquele momento [governo Lula] era uma transformação por caminhos errados. [O Mensalão] Era para tentar andar com algumas propostas que o governo tinha e nós aprovamos. Era preferível não ter feito, esperado, a pagar o preço que paguei.”

“Vamos ver fragmentação de partidos. Novos sistemas. O Brasil vai ter que achar um caminho. E não é um novo golpe de Estado. É a democracia. É errar novamente.”

Mensalão

“É um cunho que a imprensa criou para vender jornal, mas nunca foi Mensalão. É outra história. Não posso entrar muito nesse assunto, pois estou negociando delações.”

“O maior [arrependimento] é o de conhecer, como eu conheço, a máquina e ter participado. Era preferível fechar todas as agências de propaganda e ir criar galinha.”

“Não é só o dinheiro. É o poder. É agradável, mas, depois que passa por ele, você tem nojo. Hoje, tenho nojo de tudo aquilo. A política é bonita. O ruim dela são certos políticos e certas traições.”

“O que nós estamos assistindo é um processo de caos, no qual ressurgem as esperanças. Assistimos lideranças antigas sumirem e novas surgirem. E não quer dizer que estejam corrompidas pelo sistema.”

Pintor

O operador do Mensalão espera deixar a prisão até o fim do ano. Está na expectativa da progressão do regime para o semiaberto, como já ocorreu com seus ex-sócios, o ex-ministro José Dirceu e outros condenados pelo Mensalão do PT.
“Eu fico feliz [com a saída deles]. É sinal de que a minha está chegando.”
Pelas contas de Valério, ele teria direito a pelo menos 500 dias de remissão da pena, caso fossem computados trabalho, estudo e leituras feitas ao longo de quase cinco anos em regime fechado. “A juíza negou o pedido.”
Ele mostra o caderno com as fichas dos romances lidos e resumidos, conforme exige a Lei de Execução Penal, ente eles “O Negociador” e “Cães de Guerra”, de Frederick Forsyth; “O Sol Também se Levanta”, de Ernest Hemingway; e “O Poderoso Chefão”, de Mario Puzo.
Carrega também uma apostila do Centro de Educação Profissional para assistente administrativo, iniciado em 28 de fevereiro. A prova para o curso de office-boy estava prevista para 14 de abril.
Valério chegou a ter 22 alunos nas aulas de pintura na Apac. Atualmente, tem um, Gilmar Henrique dos Santos, 32, condenado a nove anos de prisão por tráfico de drogas. Ele está terminando uma tela gigante do Mickey para presentear o filho que completa um ano: “Aprendi muito com o doutor Marcos.”
Já Anderson Vinicius, 23, pintou um quadro com a face de Che Guevara. Indagado sobre a figura histórica, o ex-aluno de Valério diz que foi o professor que lhe apresentou. “Che foi um revolucionista (sic). Todos nós temos um dentro de si.”
“Preso pode não ter cultura, mas é inteligente, tem dom”, diz o publicitário, que ensina técnicas de desenho e pintura. Conhecimentos que diz trazer dos tempos de dono de agências. Hobby que o ajudou a lidar com a privação de liberdade.

Chegada à prisão

“Foi terrível. Momentos de muita solidão, muito choro. Não tem ninguém que não chora. Na hora que fecha a porta de uma cela, chora sozinho.”

"Há muita humilhação. Começa com a fila. As visitas têm que chegar de madrugada. Tem a revista. Às vezes, o ‘body scanner’ está estragado. A mulher precisa abaixar a calcinha, colocar um espelho e abaixar três vezes. Imagina o que é isso para minha mãe de 84 anos? Para a filha, a a esposa?”

“A depressão vem nos primeiros dias. Levantar era uma vitória. Depois, vem a fase de viver o dia a dia. E isso vai nos tornando mais insensíveis. As coisas se tornam mais brutas. E, no sistema tradicional, essa brutalidade é mais evidente.”

Disciplina

Os tempos brutos parecem ter ficado para trás. Há cinco meses, Valério foi convidado pelo colega de prisão Junior Mendes de Araújo para integrar o Conselho de Solidariedade e Sinceridade.
Toda semana, eles se reúnem para avaliar o comportamento dos 62 presos do regime fechado.
Na avaliação disciplinar de abril, Valério e Marcos Antonio Oliveira, companheiros do dormitório 2, que dividem com outros quatro presos, levaram uma dupla de bolinhas amarelas. Elas correspondem a infrações leves, como esquecer o crachá ou deixar a cama sem fazer.
No caso, tiveram discussão acalorada, sem xingamentos. Ambos recorrem da punição dada pelo colegiado. Se confirmada, ficam sem lazer.
Cinco bolinhas amarelas equivalem a uma vermelha (infração de média gravidade, como falar de crimes dentro da prisão). Duas vermelhas correspondem a uma preta, conferida por atos mais graves, como brigas e ameaças, que levam à expulsão da Apac.
As regras rígidas são dignas de colégio militar. “A adaptação é meio complicada. É difícil se acostumar quando você sai do sistema tradicional, onde as regras não são as certas”, diz Valério.

Lições

“Dentro do sistema prisional, cresceu em mim o respeito por uma pessoa chamada Edir Macedo [líder da Igreja Universal do Reino de Deus e dono da Rede Record]. Ele leva dentro da religião dele um consolo aos presos. Eu respeito muito a Igreja Universal, que pode ter os erros dela, mas a Católica também teve a Inquisição.”

“Mesmo encastelada entre muros, a sociedade nunca vai estar protegida dela mesma. A marginalidade é um excremento dela. E vai chegar um tempo que vai produzir tanto que vai morrer sufocada se não tomar a atitude de reciclar. Prefere deixar lá, não ver, do que recuperar.”

Na telona

Valério diz que pensa em escrever um livro quando sair da prisão. Não faz anotações nem diário. “Está tudo aqui”, aponta para a cabeça.
Foi procurado por um cineasta famoso, que quer levar sua história para a telona. “É o José Padilha?”. Sorri e desconversa: “Não sei. É você quem está dizendo.”
Não quer para si o papel de vítima. “Ninguém me trouxe até aqui. Eu mesmo me trouxe, com meus próprios pés. Seria leviano julgar, nominar um ou outro. É um conjunto de coisas. Eu tinha o livre arbítrio de não ter participado.”
Ainda não sabe o que pretende fazer quando deixar a prisão. “A única coisa que sei é que tenho dois filhos e uma mulher para sustentar.”
Valério afirma ser possível fazer política e negócios de modo diferente no Brasil pós-Lava Jato. “Não digo que vai acabar a corrupção, mas, pelo menos, vai ficar mais regulado.”

segunda-feira, 16 de abril de 2018

Lula atrás das grades

Por Mario Vargas Llosa - Estadão
Que Lula, o ex-presidente do Brasil, tenha dado entrada em uma prisão em Curitiba cumprindo uma pena de doze anos de prisão por corrupção, e originado protestos organizados pelo Partido dos Trabalhadores e homenagens de governos latino-americanos tão pouco democráticos como os da Venezuela ou da Nicarágua, era algo previsível. Mas é menos previsível que tantas pessoas honestas, socialistas, social-democratas e até mesmo os liberais tenham considerado que foi cometida uma injustiça contra um ex-mandatário que muito se preocupou em combater a pobreza e realizou a proeza de tirar, aparentemente, cerca de 30 milhões de brasileiros de extrema pobreza quando esteve no poder.

Aqueles que pensam assim estão convencidos, aparentemente, que ser um bom governante tem a ver apenas com a execução de políticas sociais avançadas, e isso o isenta de cumprir as leis e agir com probidade. Porque Lula não foi levado à cadeia pelas coisas boas que fez durante seu governo, mas pelas más, e entre estas figura, por exemplo, a corrupção espantosa da companhia estatal Petrobrás e de seus empreiteiros, que custou ao castigado povo brasileiro nada menos que três bilhões de dólares (dois bilhões deles em subornos).

Além disso, aqueles que têm Lula em tão alta consideração esquecem o papel feio de alguém “que corre de um canto para outro levando fofocas” que atuou como um emissário e cúmplice em várias operações da Odebrecht – no Peru, Peru, entre outros países – corrompendo com milhões de dólares presidentes corruptos e ministros para que favorecessem essa transnacional com contratos multimilionários de obras públicas. É por este motivo e outros casos que Lula tem não um, mas sete processos por corrupção em curso e que dezenas de seus colaboradores mais próximos durante seu governo, como João Vaccari ou José Dirceu, seu chefe de gabinete, tenham sido condenados a longas penas de prisão por roubos, golpes e outras operações criminosas. Entre as mais recentes acusações que recaem sobre ele, está a de ter recebido da construtora OAS, em troca de contratos públicos, um apartamento de três andares em uma praia do Guarujá (São Paulo).

Os protestos pela prisão de Lula não levam em conta que, desde a grande mobilização popular contra a corrupção que ameaçava sufocar todo o Brasil, e em grande parte graças à coragem dos juízes e promotores liderados por Sérgio Moro, juiz federal de Curitiba, centenas de políticos, empresários, funcionários públicos e banqueiros, foram presos ou estão sendo investigados e têm processos abertos. Mais de cento e oitenta já foram condenados e há várias dezenas deles que o serão em futuro próximo.

Nunca na história da América Latina havia acontecido algo semelhante: um levante popular, apoiado por todos os setores sociais, que, a partir de São Paulo, se espalhou pelo País, não contra uma empresa, um caudilho, mas contra a desonestidade, as más ações, os roubos, os subornos, toda a corrupção gigantesca que gangrenava as instituições, o comércio, a indústria, a prática política, em todo o país. Um movimento popular cujo objetivo não era nem a revolução socialista nem derrubar um governo, mas sim a regeneração da democracia, para que as leis deixassem de ser letra morta e fossem verdadeiramente aplicadas a todos igualmente, ricos e pobres, poderosos e pessoas comuns. O extraordinário é que esse movimento plural tenha encontrado juízes e promotores como Sérgio Moro, que, encorajados por essa mobilização, deram-lhe um canal judicial, investigando, denunciando, mandando para a prisão uma série de executivos, empresários, industriais, parlamentares, funcionários, homens e mulheres de todas as condições, mostrando que é viável, que qualquer país pode fazê-lo, que a decência e a honestidade são possíveis também no terceiro mundo, se houver vontade e apoio popular para fazê-lo. Sempre cito Sérgio Moro, mas seu caso não é único, nestes últimos anos, temos visto no Brasil como seu exemplo foi seguido por inúmeros juízes e promotores que se atreveram a enfrentar os supostos intocáveis, aplicando a lei e devolvendo pouco a pouco ao povo brasileiro uma confiança na legalidade e liberdade que quase tinha sido perdida.

Existem muitas pessoas admiráveis no Brasil; grandes escritores como Machado de Assis, Guimarães Rosa ou minha querida amiga Nélida Piñon; políticos como Fernando Henrique Cardoso, que, durante sua presidência, salvou a economia brasileira da hecatombe e fez um modelo de governo democrático, sem jamais ser acusado de ação punível; e atletas e desportistas cujos nomes deram a volta pelo mundo. Mas se eu tivesse que escolher um deles como um modelo exemplar para o resto do planeta, não hesitaria um segundo para escolher Sérgio Moro, este modesto advogado natural do Paraná, que, após sua formatura, entrou na magistratura por concurso, em 1996. Segundo comentou, o que aconteceu na Itália na década de noventa, o famoso processo Operação Mãos Limpas, deu-lhe ideias e entusiasmo para combater a corrupção em seu país, usando instrumentos semelhantes aos dos juízes italianos de então, ou seja, a prisão preventiva, a delação premiada e a colaboração da imprensa dos meios de comunicação em troca da redução da sentença. Eles tentaram corrompê-lo, é claro, e é certamente um milagre que ainda esteja vivo, em um país onde os assassinatos políticos não são, infelizmente, excepcionais. Mas lá está ele, fazendo parte de uma verdadeira – embora ninguém a tenha chama disso – revolução silenciosa: o retorno à legalidade, ao império da lei, em uma sociedade na qual a corrupção generalizada a estava desintegrando impedindo de o “grande país do futuro” que sempre foi ao ser o grande país do presente.

A corrupção é o grande inimigo do progresso latino-americano. Faz estragos nos governos da direita ou da esquerda e um grande número de latino-americanos chegou a acreditar que é inevitável, algo como os fenômenos naturais contra os quais não existe defesa: terremotos, tempestades, relâmpagos. Mas a verdade é que existe e de fato o Brasil está demonstrando que é possível combatê-lo, se há juízes e promotores arrojados e responsáveis, e, claro, uma opinião pública e os meios de comunicação que os apoiam. Por isso, é bom, para a América Latina, que pessoas como Marcelo Odebrecht ou Lula da Silva tenham sido presos depois de terem sido processados, concedendo a eles todos os direitos de defesa que existem em um país democrático. É muito importante mostrar em termos práticos que a justiça é a mesma para todos, os pobres diabos que são a imensa maioria e os poderosos que estão no topo graças ao seu dinheiro ou suas posições. E são precisamente estes últimos que têm maior obrigação moral de obedecer a lei e para mostrar, em suas vidas diárias, que não são necessárias transgressões para preencher essas posições de prestígio e poder que eles têm alcançado, pois isso é possível dentro da legalidade. É a única maneira pela qual uma sociedade acredita em instituições, rejeita o apocalipse e as fantasias utópicas, sustenta a democracia e vive com o sentimento de que as leis existem para protegê-la e humanizá-la mais a cada dia.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Reforma seria o melhor presente para o Dia do Aposentado e da Previdência

Por  e 
O Brasil iniciou, mais uma vez, um intenso debate sobre a necessidade da Reforma da Previdência. Fala-se aqui em “mais uma vez” porque a necessidade de adequações no sistema previdenciário nacional é reconhecida de há muito não apenas no Brasil, independentemente de governo, partido político ou ideologias as mais variadas, mas também por especialistas de outros países e organismos internacionais.

Não é novidade sobre o quão implacável é o envelhecimento populacional para países que, como o Brasil, adotam o sistema de repartição, no qual a geração atual de trabalhadores paga os benefícios dos atuais aposentados e pensionistas, com a expectativa de que as próximas gerações pagarão seus benefícios, o chamado pacto de gerações. Em sistemas como o brasileiro, o ajuste das contas da Previdência é fundamental para a garantia do pagamento dos aposentados atuais, que já estão com seus direitos adquiridos, mas dependem da viabilidade do sistema para o recebimento dos seus benefícios.

Portanto, o envelhecimento da população brasileira é o ponto mais sensível da discussão previdenciária, mas está sendo ignorado no debate. Os países que já passaram por esse processo, sem exceção, tiveram que mudar suas legislações. Aqueles que postergaram as mudanças, como Portugal, Espanha e Grécia, foram vitimados por grave crise fiscal que gerou desemprego, desestruturação produtiva e, ao final, reformas ainda mais severas nos seus regimes, inclusive com redução do valor dos benefícios já ativos, flexibilizando direitos adquiridos.

Economistas estimam que o sistema previdenciário brasileiro tem uma curtíssima janela de apenas três anos antes de chegar à situação catastrófica de faltar recursos para pagamento das despesas obrigatórias (como disse Paulo Tafner, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, em 2018). O país seria obrigado a adotar medidas drásticas, como o corte de benefícios e atraso no pagamento de fornecedores e servidores. Não se trata de ficção, como muitos querem fazer acreditar. Isso já está acontecendo em estados da Federação, como Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

Há que se notar que a exposição de motivos da Medida Provisória 664/2014 – que trouxe significativas, mas não exaustivas, alterações no sistema previdenciário – já alertava para a urgência do problema; o texto citava o crescimento da participação dos idosos de 11,3% em 2014 para 33,7% em 2060. Também fazia menção à estimativa de crescimento da despesa do RGPS de 7% para 13% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2050.

Assim, é absolutamente necessário que o debate sobre a reforma do nosso sistema de Previdência Social seja estruturado em torno do envelhecimento da nossa população, e as consequências que isso trará nas próximas décadas, como há tempos se faz, diga-se de passagem. Não é possível ignorar o aumento significativo da expectativa de vida, devido à melhora da qualidade de vida e saúde da população, e a impossibilidade de manter aposentadorias precoces, acumulação integral de benefícios de valor elevado, e outras características da atual legislação previdenciária.

A outra realidade que se impõe no debate previdenciário é a necessidade de equiparação das regras para todos os trabalhadores. Há ainda aposentadorias precoces e de valor elevado, principalmente nos regimes próprios de servidores, absolutamente insustentáveis em termos atuariais. As regras anteriores às reformas de 1998 e 2003 ainda abrangem um grande número de servidores públicos, motivo pelo qual não é viável aguardar os efeitos plenos dessas alterações, sob pena de gerar gravíssimos efeitos a estes regimes.

A crise da Previdência Social no Brasil não é diagnosticada apenas pelo governo federal. Também o Tribunal de Contas da União, em recente relatório de 21 de junho de 2017 (TC-001.040/2017-0), reconhece a situação preocupante do sistema previdenciário. O órgão classifica como “impressionante” o déficit de R$ 226,9 bilhões e cita o desiquilíbrio dos números como principal responsável pela insuficiência financeira da Seguridade Social. Segundo o TCU, o déficit cresceu 54% entre 2007 e 2016, enquanto as despesas saíram de 8,74% do PIB para 8,87% no mesmo período. Afirma ainda o tribunal que “o envelhecimento da população, decorrente do aumento da expectativa de vida do brasileiro, conjugado com a redução na taxa de fecundidade, produzirá um aumento no número de aposentados e pensionistas e uma diminuição de contribuintes para sustentar as despesas com benefícios.”

No último dia 22 foi divulgado o resultado financeiro dos regimes de Previdência da União Federal de 2017, incluindo RGPS e o RPPS. Os números continuam impressionando, não apenas pelo tamanho, mas pela velocidade do crescimento. O total foi de R$ 268,79 bilhões, que tiveram que ser cobertos com impostos e contribuições não previdenciárias. Um aumento de 18,5% em relação ao ano anterior, mesmo com a inflação abaixo de 3%.

Analisando a situação brasileira em comparação com os parâmetros verificados pelo mundo, o Banco Mundial defendeu uma reforma da Previdência no Brasil e alertou para a existência de déficits crescentes. Estudo realizado pelo Banco afirma que o acelerado envelhecimento da população é uma das tendências a ser levada em conta na hora de remodelar o atual sistema. Em 2035, quase 20% da população brasileira terá 60 anos ou mais, enquanto a idade média de aposentadoria para homens e mulheres pelo RGPS é, respectivamente, 60,3 e 58,6 anos.

Segundo o estudo do Banco, as faixas etárias estão abaixo das médias dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) — 64,3 para homens e 63,2 para mulheres.

No entanto, como colocado acima, pouco se discutiu sobre a origem dos problemas: envelhecimento da população e benefícios precoces, de valor elevado, sem custeio suficiente.

O debate dos últimos meses se deteve em “descobrir” se há, ou não, déficit da Previdência (e de toda a seguridade), distorcendo a discussão.

Há déficit, por qualquer critério sério de mensuração. Inclusive aquele adotado pelos últimos governos brasileiros. O déficit é mensurado e explicado pelo Tribunal de Contas da União, pelo Banco Mundial, pela OCDE e por outros organismos internacionais públicos e privados. O desequilíbrio previdenciário brasileiro também já foi mostrado e analisado pela reconhecida consultoria australiana especializada, Melbourn Mercer Global Pension Index-MMGPI.

E mesmo que utilizada as equivocadas e distorcidas premissas dos críticos da metodologia oficial, há aumento significativo e progressivo das despesas previdenciárias, que são custeadas pelo Estado. O cálculo alternativo mais difundido reconheceu que houve deficit em 2016, o que ira necessariamente se repetir em 2017. Se há despesa pública crescente, a identificação da fonte orçamentária perde relevância diante do desafio de garantir a sustentabilidade das demais políticas públicas. Orçamento da seguridade ou não, há necessidade de recursos para pagar, e esses recursos virão de tributos ou de um insustentável endividamento público.

Portanto, frise-se, o Brasil e o mundo já reconhecem a necessidade de ajustes nas normas previdenciárias, tornando-as mais justas, equânimes e distributivas, reduzindo as despesas do sistema e prestigiando o princípio da igualdade. Em contraposição a esse debate sério e necessário, grupos voltados à manutenção de privilégios e agremiações políticas populistas lançaram-se em uma campanha de desinformação, buscando lançar uma cortina de fumaça sobre o real problema, que é a necessidade de ajustes estruturais no sistema em razão de mudanças demográficas.

Essa dissuasão tem consequências. A cada dia que se tenta fechar os olhos da população para a realidade, postergando-se a necessária reforma, majora-se o prejuízo para a população atual e futura. Privilegiam-se poucos em detrimento de muitos. Os aposentados precoces de hoje estão colocando um peso nas costas de seus filhos e netos, além de provocarem o estrangulamento das demais políticas públicas de atenção aos mais pobres, e por fim, colocando em risco o pagamento dos benefícios dos atuais aposentados e beneficiários, já que a reforma, além de não tocar seus direitos, garante que recebam seus benefícios integral e pontualmente.

Um dos compromissos da reforma é manter incólume os direitos adquiridos e os benefícios que já estão sendo pagos, o que demonstra o respeito que o país deve ter com seus aposentados. Mas isso depende da garantia de equilíbrio das contas públicas, em especial do regime previdenciário público. Sem mudanças, em poucos anos todos os aposentados brasileiros podem sofrer aquilo que aposentados de alguns Estados Federados estão vivendo.

Os aposentados, mais do que quaisquer outros brasileiros, deveriam ser os maiores interessados na aprovação da reforma da Previdência. O maior presente que poderiam receber nesse dia 24 de janeiro de 2018, Dia do Aposentado e da Previdência Social, é a garantia de um futuro tranquilo, que depende da imediata mudança das regras previdenciárias brasileiras.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Geografia da fome

Por Almir Pazzianotto Pinto, advogado, foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho.
 
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou em 15/12 a pesquisa Síntese dos Indicadores Sociais 2017, documento arrasador, conquanto não surpreendente ou inesperado. Mostra a fome no Brasil. Confirma que o País é pobre. É rico apenas na visão alienada de bilionários, corruptos e privilegiados.

Graciliano Ramos descreveu-a em Vidas Secas. Euclides da Cunha dela falou em Os Sertões. Ninguém, entretanto, o fez com mais profundidade do que Josué de Castro (5/9/1908-24/9/1973), o médico pernambucano reconhecido mundialmente, autor de vasta bibliografia sobre a matéria, em que se projetam Geopolítica da Fome, Geografia da Fome, Sete palmos de terra e um caixão. Duas vezes deputado federal, Embaixador do Brasil na ONU, presidente do Conselho Executivo da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), professor honorário de universidades estrangeiras, Josué de Castro foi vítima do Alto Comando Revolucionário em abril de 1964, quando teve cassados os direitos políticos. Injustiçado, passou a residir em Paris, onde faleceu.

Em Geopolítica da Fome Josué de Castro observa que “A fome constitui um fenômeno de extrema variabilidade. No emaranhado e policrômico desenho da fome universal, podemos divisar surpreendentes matizes; desde os mais negros e impressionantes, da fome total, da completa inanição, transformando suas vítimas em verdadeiros espectros vivos, até os tipos mais discretos das fomes ocultas ou específicas, atuando sorrateiramente, quase sem sinais aparentes” (pág. 79).

O menino faminto de 8 anos de idade que desmaiou em escola pública de Brasília – fato minimizado pelo governador Rodrigo Rollemberg – é apenas um entre milhões de casos semelhantes. São crianças nascidas de famílias esquecidas, às quais falta o mínimo necessário à subsistência. Se sobreviverem, crescerão subnutridas e analfabetas, até alcançarem a maturidade, carentes de recursos para a difícil disputa de espaço no exigente mercado de trabalho.

O cenário desnudado pela Síntese dos Indicadores Sociais 2017 revela que “mais de 25 milhões de brasileiros, o equivalente a 25,4% da população, vivem na linha de pobreza e possuem renda familiar equivalente a R$ 387,07 - ou US$ 5,5 por dia, valor adotado pelo Banco Mundial para definir se uma pessoa é pobre”. Prossegue a notícia: “A situação é ainda mais grave se levadas em conta as estatísticas do IBGE envolvendo crianças de 0 a 14 anos de idade. No país, 42% das crianças se enquadram nestas condições e sobrevivem com US$ 5,5 por dia. As pesquisas de indicadores sociais revela uma realidade: o Brasil é um país profundamente desigual e a desigualdade gritante se dá em todos os níveis”.

Informações publicadas no Relatório de Atividades da Associação Brasileira do Agronegócio relativo a 2016 revelam que em 2015 foram colhidas 97.043.705 toneladas de soja, 12.312.315 de arroz, 85.707.796 de milho, 3.107.911 de feijão, 22.756.807 de mandioca, 5.425.856 de trigo, 351.453 de amendoim; e que a produção de carne bovina foi da ordem de 7.613.163.153 quilos, 3.354.699.150 a de suínos, 12.990.348.875 a de frangos, de 24 bilhões de litros a de leite e de quase 3 bilhões de dúzias a de ovos. A fome não decorre da falta de alimentos, mas da injusta distribuição de rendas, da falência da educação, do colapso do ensino público, da ausência de trabalho para 13 milhões de desempregados e outros tantos subocupados em tarefas ocasionais ou intermitentes.

Geografia da Fome é de 1948 e Geopolítica da Fome, de 1951. Desde então duas medidas foram implantadas: a instituição do programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), pela Lei nº 6.321/1976; e do Bolsa Família, mediante a Lei nº 10.836/2004. Ambos, contudo, não foram a fundo no combate à pobreza e à fome, como revelam os indicadores do IBGE.

É elevado o número de programas de televisão dedicados à alta culinária. Renomados cozinheiros esmeram-se na preparação de pratos fora do alcance da maioria da população, constituída por pobres, cujos filhos, subnutridos e doentes, tomam água açucarada pela manhã e comem um prato de angu no almoço.

A fome registrada por Euclides da Cunha, em Os Sertões, mapeada e denunciada por Josué de Castro, permaneceu ignorada por sucessivos governos do PSDB, PT e (P)MDB, para me limitar aos últimos 30 anos. O dinheiro que vai para o ralo do desperdício e às malas da corrupção falta para enfrentar a miséria.

O trabalho infantil está relacionado ao nível de pobreza. Registra o IBGE: “Os dados do estudo indicam que, quanto menos escolaridade, mais cedo o jovem ingressa no mercado de trabalho. A pesquisa revela que 39,9% dos trabalhadores ingressaram no mercado de trabalho com até 14 anos”. Não surpreende a constatação de que a fome é mais grave nas Regiões Norte e Nordeste. Sempre foi assim. No mapa alimentar do Brasil, Josué de Castro coloca a Região Amazônica e o litoral nordestino como áreas de fome endêmica, o agreste nordestino como área de epidemias de fome, o centro-oeste, o sudeste e o sul como regiões de subnutrição.

A situação pouco se alterou. Segundo o IBGE, “Quando se avalia os níveis de pobreza no país por estados e capitais ganham destaque, sob o ponto de vista negativo, as Regiões Norte e Nordeste, com os maiores valores sendo observados no Maranhão (54,4% da população), Amazonas (49,2%) e Alagoas (47,4%)”.

Em 2018 o salário mínimo será de R$ 954,00. A Bolsa Família, R$ 85,00. O Brasil ocupa a 7ª posição no ranking do desenvolvimento econômico e o 79º no Índice de Desenvolvimento Humano, abaixo do Chile, do Uruguai, da Argentina.

O que dizem os candidatos ao governo da República?

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

A garra da pornografia

A pornografia é um negócio poderoso e devastador. Causa dependência, desestrutura a afetividade, desestabiliza a família e passa uma pesada conta no campo da saúde mental. Mas o mais grave, de longe, é a estratégia de “desmitificação” do material pornográfico. Eliminou-se o carimbo de proibido. Deu-se ao conteúdo pornográfico um toque de leveza, de algo sexy e divertido. Na prática, no entanto, a pornografia tem a garra da adicção e as consequências psicológicas, afetivas e sociais da dependência mais cruel. Na era da internet, a pornografia invadiu computadores, implodiu relacionamentos e algemou muita gente. A pornografia produz uma imagem cínica do amor e transmite uma visão da sexualidade como puro domínio do outro.

Norman Doidge, importante psiquiatra canadense, tem tratado do tema com clareza e realismo. Mostrou, por exemplo, o que acontece no cérebro do consumidor assíduo de pornografia. A repugnância inicial aos conteúdos pornográficos, fruto dos naturais filtros morais, vai cedendo espaço ao acostumamento. O usuário demanda uma dose cada vez maior e mais “sofisticada” para obter os mesmos resultados. É a espiral da dependência. E dela brotam terríveis patologias sociais: violência, abuso sexual, pedofilia.

Frequentes denúncias de pedofilia na internet demonstram que a rede se está transformando no principal meio de aliciamento e exploração sexual de crianças. Apesar de proibidas pelas legislações, imagens de crianças em cenas de sexo pipocam constantemente na internet.

Abusadores criminosos põem à disposição do público arquivos com fotos pornográficas. Depois de localizadas, elas passam a circular entre usuários da rede e até em locais que poderiam ser considerados públicos. A crescente presença da pornografia infantil tem chocado a sociedade.

O problema, independentemente da justa indignação da opinião pública, não é de fácil solução. Envolve, de fato, inúmeras dificuldades de caráter político e operacional. Um mundo que não é capaz de estabelecer uma política unitária no combate às drogas dificilmente conseguirá desenhar uma plataforma comum na guerra à pornografia.

Na verdade, medidas preventivas são bastante limitadas. Policiar um sistema tão vasto e com tantos recursos técnicos seria uma tarefa extremamente cara e de resultados incertos. Embora seja possível bloquear o acesso aos sites publicamente conhecidos como pornográficos, os programas de filtros, apresentados como uma alternativa para impedir o acesso às páginas inconvenientes, diminuem o problema, mas não bloqueiam a perversa criatividade dos delinquentes do ciberespaço.

Algumas medidas, no entanto, podem e devem ser adotadas. A Polícia Federal tem feito um trabalho excelente. A frequente identificação e prisão de predadores da internet é alentadora. Os responsáveis pela divulgação de pornografia infantil, racismo, publicidade de drogas ou outros crimes devem ser rigorosamente punidos. Denunciar é um dever. Afinal, a rede mundial não pode ser transformada num instrumento da patologia e do crime.

A situação é grave. E exige uma forte autocrítica. A culpa é de todos nós – governantes, formadores de opinião e pais de família –, que, num exercício de anticidadania, aceitamos que o País seja definido mundo afora como o paraíso do sexo fácil, barato, descartável. É triste, para não dizer trágico, ver o Brasil ser citado como um oásis excitante para os turistas que querem satisfazer suas taras e fantasias sexuais com crianças e adolescentes. Reportagens denunciando redes de prostituição infantil, algumas promovidas com o conhecimento ou até mesmo com a participação de autoridades públicas, crescem à sombra da impunidade.

Mas a raiz do problema, independentemente da irritação que eu possa despertar em certas falanges politicamente corretas, está na onda de baixaria e vulgaridade que tomou conta do ambiente nacional. Hoje, diariamente, na televisão, nos outdoors, nas mensagens publicitárias o sexo foi guindado à condição de produto de primeira necessidade.

Atualmente, graças ao impacto da TV e da internet, qualquer criança sabe mais sobre sexo, violência e aberrações do que qualquer adulto de um passado não tão remoto. Não é preciso ser psicólogo para que se possam prever as distorções afetivas, psíquicas e emocionais dessa perversa iniciação precoce. Com o apoio das próprias mães, fascinadas com a perspectiva de um bom cachê, inúmeras crianças estão sendo prematuramente condenadas a uma vida “adulta” e sórdida. Promovidas a modelos, e privadas da infância, elas estão se comportando, vestindo, consumindo e falando como adultos. A inocência infantil está sendo impiedosamente banida. Por isso a multiplicação de descobertas de redes de pedofilia não deve surpreender ninguém. Trata-se, na verdade, das consequências criminosas da escalada de erotização infantil promovida por alguns setores do negócio do entretenimento.

Os problemas levantados pelo mau uso da internet, embora gravíssimos, são infinitamente menores que os benefícios trazidos por esse notável canal de aproximação dos povos, de democratização dos conhecimentos e de globalização da solidariedade. Seus desvios não serão resolvidos por meio de ineficazes tutelas governamentais. Na verdade, a internet salienta uma nova realidade: chegou para todos, sobretudo para a família e para os educadores, a hora da liberdade e da responsabilidade.

Os filtros são úteis, mas não substituem a presença da família. A educação para o exercício da liberdade é o grande desafio dos nossos dias. A aventura da liberdade responsável, desguarnecida de ilusórias intervenções do Estado, acabará criando uma sociedade mais consciente e amadurecida.

Entrevista do general Eduardo Villas Bôas ao Estadão

Em algumas comunidades, as organizações criminosas têm conseguido eleger candidatos e fazer indicações políticas para cargos públicos. Há preocupação da indicação política em polícias militares nos Estados?
A escolha de um comandante da Polícia Militar sempre tem o caráter político. O problema é que houve distorção e adquiriu caráter político-partidário. Isso acaba provocando sectarismos, divisões e perda da coesão em instituições militares. A Constituição de 1988 permitiu que houvesse direito de associações com caráter de sindicato, o que atrapalhou a hierarquia e disciplina, porque ela é mecanismo de conter a violência e mantém a coesão das instituições. Sempre que uma instituição perde sua coesão, ela traz desgraças para ela própria e para a sociedade a que serve.
Há preocupação de que indicações políticas possam levar o crime para as instituições?
As facções criminosas no Rio e em São Paulo, que se estendem para outros Estados e produzem filhotes, e essa estruturação do crime, principalmente em relação ao narcotráfico e associações internacionais, aumentam em muito a capacidade de contaminação das instituições. Realmente preocupa porque isso pode se estender, claramente, em todo o processo político, de forma que eles coloquem pessoas ligadas a eles ou a seus próprios integrantes em cargos públicos importantes.
Existe essa contaminação do crime nas tropas federais?
Há preocupação de contaminação das tropas, e por isso queremos evitar o uso frequente das Forças Armadas. Recentemente, no Rio, verificamos desvios do nosso pessoal. Foram pontuais, restritos a um ou outro indivíduo, de nível hierárquico baixo. Está infinitamente distante de representar um problema sistêmico ou institucional. Mas temos preocupação e estamos permanentemente atentos.
O senhor teme o uso político das Forças Armadas para segurança pública próximo das eleições?
Há preocupação de uso político das Forças Armadas com a proximidade das eleições porque governos, não querendo sofrer desgastes políticos com a população e em determinadas situações por comodidade, solicitam intervenção federal.
Como o senhor classifica a situação da segurança pública do País?
Tem havido negligência em relação à segurança pública no País. Mas também é surpreendente uma certa passividade da população em relação a isso. Nenhum conflito no mundo hoje faz perder o número de vidas que temos no Brasil, onde são assassinadas 60 mil pessoas por ano. Há negligência em grande parte dos Estados. Mas a questão da segurança é muito profunda e está claro que o simples emprego das Forças Armadas não tem capacidade, por si só, de solucionar problemas de segurança pública que estamos vivendo.
Onde a situação é pior?
Nos Estados do Nordeste, os índices de criminalidade são mais altos do que no Rio de Janeiro. Só que o Rio é uma caixa de ressonância. Por isso, é difícil dizer onde é mais grave ou não. No Rio Grande do Norte, de onde sairemos neste fim de semana (a entrevista foi feita na sexta-feira), fomos empregados pela terceira vez e, neste espaço de tempo, estruturalmente nada foi feito na segurança pública do Estado. Sabemos que, ao sairmos de lá, os problemas continuarão, o que indica que proximamente poderemos ser chamados a intervir. É preciso que se modifique os aspectos na conduta dos governos locais em relação à segurança pública. Acho que é inevitável que o governo federal terá de chamar para si a responsabilidade, pelo menos parcialmente, porque o crime extrapola as fronteiras e o combate está sem integração. Há Estados que nitidamente negligenciam essas preocupações e, nesse caso, o governo federal tem de intervir, usando Forças Armadas e Força Nacional de Segurança Pública.
Como resolver esta questão da criminalidade que afetou a segurança pública?
Somos um País carente de disciplina social, que prioriza os direitos individuais em relação ao coletivo e ao interesse social. E um ambiente de pouca disciplina favorece à diluição das responsabilidades. Por isso, há uma certa resistência a que se busque o saneamento das condutas individuais e coletivas. Por outro lado, estamos vivendo uma imposição do politicamente correto, vivendo uma verdadeira ditadura do relativismo e com uma tendência a que não se estabeleçam limites nas condutas. Isso vai numa onda e volta em um refluxo que atinge as pessoas e a sociedade como um todo. Isso está na raiz dos problemas, insisto, do politicamente correto, privilegia e atua reforçando o seu caráter ideológico e não apresentando a solução dos problemas. Quando nós vemos agressões a mulheres, abusos, quando vemos desrespeito, na raiz disso está a falta de limite e de disciplina que existe na sociedade. Precisamos de muito mais educação e responsabilidade por parte de todos e cada um precisa cumprir efetivamente seu papel e assumir suas responsabilidades até em relação à segurança.
É necessário o uso das Forças Armadas em Porto Alegre no dia 24 de janeiro durante o julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva?
Este é um problema essencialmente de segurança pública. Não precisa de decretação da Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para isso. Assim como no Paraná foi muito efetiva a atuação do governo estadual na estrutura de segurança pública, o Rio Grande do Sul tem plenas condições de fazer face a essa questão. A Brigada Militar gaúcha é uma corporação capacitada. A estrutura de segurança pública tem condições de resolver o problema e o pedido do prefeito de tropas federais é inconstitucional.
Há uma banalização do uso das Forças Armadas?
Há uma tendência à banalização do uso da Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e isso acarreta desvio de emprego das Forças Armadas.
Qual sua avaliação das eleições este ano? 
As eleições, de certa forma, representarão um plebiscito em relação à Lava Jato.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

É preciso reduzir a beligerância

Por Jaíza Fraxe, juíza federal do Amazonas.
O Brasil em 2018 precisará, desde o primeiro dia, fazer um grande esforço para ser derrotado na arte ou desastre de entortar o direito, seja em nome de pseudos paradigmas da liberdade, da dignidade ou da idolatria.

O Brasil em 2018 precisará compreender a importância da cultura, tradição e ancestralidade de seus povos, sem os quais a descoberta da cura de muitas doenças jamais existiria e a turma da tapioca jamais conheceria essa iguaria, assim como ao sabor do guaraná e do vatapá. Nem em redes seria possível embalar.

O Brasil em 2018 precisará entender o que significa direitos humanos, expressão destinada a proteger as mulheres e os homens de bem e não os do mal, porque violência se combate com penas justas e programas sociais e não com cabeças cortadas e jogadas em fogueiras.

O Brasil precisará aprender em 2018 que as redes sociais não são uma versão pós-moderno da Lei de Talião, onde a cada olho furado, retira-se o olho do agressor.

Admitir nos dias atuais reciprocidade de crime e pena, é o mesmo que incentivar a beligerância – já reinante na internet; é aceitar com passividade, habitualidade ou normalidade a prática de destroçar corpos ou decepar cabeças a sangue frio. O fato desafiaria tudo o que pensamos sobre os direitos que visam a resguardar os valores mais preciosos dos seres humanos, em especial a solidariedade, a igualdade, a fraternidade, a liberdade e sobretudo a dignidade.

O Brasil em 2018 precisará explicar aos seus filhos a grande violação continua de direitos imposta às mulheres em sua história, onde se registra que os homens votaram pela primeira vez em 1532 e elas somente em 1932. São 400 anos de humilhação de gênero que necessitam ser desmascarados desde os livros didáticos da educação infantil até a pós-graduação.

O Brasil precisará em 2018 dar um salto na educação ambiental, para que todas e todos saibam que os recurso do planeta são finitos, estão se esgotando e a manutenção do ritmo consumerista contaminará e destruirá nossas águas e florestas em um século!

O Brasil precisará aprender a respeitar a população LGBTI e alcance da expressão “direitos iguais”, pois a perseguição e a discriminação fazem com que 1 membro dessa população seja assassinado a cada 25h.

O Brasil em 2018 será convidado a respeitar todas as religiões, todos os credos, todas os rituais. E respeitará os que não creem. Pois uma e outra opção se inserem na liberdade de escolha.

O Brasil necessitará respeitar a população em situação de rua. Ninguém mora sem teto porque quer. Ninguém passa fome e frio porque escolheu assim. As oportunidades não são iguais para todos nesse país e precisamos entender as diferenças, lutando para que diminuam a cada dia.

Em 2018, Brasil precisará de toda ajuda e socorro. Não fuja da luta, não seja só mais um martelo contra as feiticeiras. A inquisição não precisa voltar explicitamente; ela já mora em cada um de nós e precisa ser expulsa do vício de hostilizar.

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Ayres Britto saúda instituições que “impedem desgoverno”

Congresso em Foco: Com base no que senhor tem visto no país, com foco em 2017, institucionalmente o Estado brasileiro faliu? Como anda o Judiciário?
Ayres Britto: Não. Eu penso que há muitos modos de encarar o que vem acontecendo com o Brasil nos últimos dois anos. Vê-se por um prisma negativo, de desânimo, diante das malfeitorias, dos desvios de conduta no âmbito, sobretudo, da parceria do poder público com a área econômica. Porém, por outro lado, vê-se as coisas com ânimo, com otimismo, porque tudo está vindo a lume. Nada, hoje, se passa no espaço do mistério. E já é possível perceber que a democracia brasileira nos possibilita colher frutos importantíssimos. Como, por exemplo, liberdade de imprensa em plenitude; hiperaquecimento da cidadania, notadamente pelas redes sociais; soberania e independência do Poder Judiciário – como nunca antes se viu, a despeito de um ou outro revés, uma ou outra situação, digamos, de interpretação equivocada da própria Constituição. Mas, em linhas gerais, estamos em fim de ano, e fim de ano é para balanço do que se ganhou e do que se perdeu. Embora a gente reconheça, a gente deva concluir que nenhuma democracia vence por nocaute – principalmente democracia jovem como a nossa, que em rigor só tomou contornos mais nítidos com a Constituição de 1988; há menos de 30 anos, portanto –, o fato é que nós, por pontos, estamos vencendo, democraticamente falando. Porque a democracia brasileira tem batido mais, juridicamente, do que apanhado – estamos fazendo balanço. De novo: estamos fazendo a contabilidade de ganhos e perdas.
Nesse sentido, como o senhor avalia o desempenho do STF em 2017, com tantos desafios enfrentados e a enfrentar?
Não foi um bom ano, 2017, para o Supremo se o compararmos com anos anteriores. Mas em 2016 o Supremo produziu, exarou uma decisão que talvez corresponda à mais importante guinada política desses últimos 30 anos, para não dizer da história político-partidária do Brasil. Qual foi essa decisão, arejadora dos nossos costumes, significante de uma inflexão histórica altamente positiva? Foi o Supremo entender que o parágrafo nono, artigo 14, da Constituição, é proibitivo ao financiamento empresarial de campanha eleitoral. Essa foi uma decisão tecnicamente correta, cientificamente perfeita, e que demandou do Supremo aquela coragem moral de que falava [o filósofo grego] Aristóteles, e que tem merecido do ministro Luís Roberto Barroso toda a ênfase. Eu já vinha dizendo, desde meu tempo de Supremo, que em um país de subserviências multisseculares, sobretudo em torno do Poder Executivo, é preciso muita coragem para ser independente. O que eu vinha chamando de coragem para ser independente, Aristóteles – bem lembrado por Luís Roberto Barroso – chamava de coragem moral. A necessidade de coragem moral.
O que senhor diz, por exemplo, sobre o episódio em que o Senado se negou a receber um oficial de Justiça incumbido da missão de comunicar o afastamento do então presidente da Casa, Renan Calheiros (PMDB-AL), de suas funções institucionais? Foi um problema de falta de autoridade do STF ou o deslize está na desobediência do senador?
Ali faltou ao Supremo essa disposição para assumir, com toda coragem, a independência que é própria do Poder Judiciário. O Supremo deveria, sim, ter dobrado a resistência do senador Renan Calheiros. Foi uma conduta muito ruim do Supremo, historicamente acabrunhante. E faço questão de que seja registrado que eu digo isso com todo o respeito, debaixo de todas as venias, mas entendo que houve uma decisão equivocada, tecnicamente, e politicamente acabrunhante.
Como o senhor tem visto o recorrente confronto teórico entre o ministro Luís Roberto Barroso, que tem priorizado a questão ética na interpretação da lei, e o ministro Gilmar Mendes, cujas decisões têm privilegiado os direitos dos investigados?
São dois ministros reconhecidamente de formação constitucionalista. Dois brilhantes intelectuais que têm, sobre a Constituição brasileira, notadamente sobre o programa normativo principiológico da Constituição, visões divergentes. Visões, digamos, de reduzida coincidência. Só não digo “pouco coincidência” porque aí ficaria a pronúncia “co” e “con” – e eu, como sou meio purista na linguagem, evito as cacofonias. Então, eu diria de baixa coincidência. E que minha inclinação pessoal, sem desdouro algum para os posicionamentos do ministro Gilmar Mendes, minha posição pessoal se inclina na direção daquela perfilhada pelo ministro Barroso, a propósito desses últimos embates. Mas eu os considero, sem favor algum, constitucionalistas de envergadura, grandes teóricos do Direito, escritores consagrados. É fato que os dois, a propósito de interpretação de textos constitucionais importantíssimos, delicados, complexos, eles têm divergido mais do que convergido. É um fato. Com toda delicadeza, quero dizer que sou admirador dos dois nesse plano científico. Porém, nos meus escritos, nas minhas aulas, nas minhas entrevistas tenho manifestado entendimentos que se aproximam mais daqueles perfilhados pelo ministro Roberto do que os perfilhados pelo ministro Gilmar – sem qualquer desdouro, desapreço pelo elevado teor de cientificidade do ministro Gilmar Mendes.
Há uma tendência no STF disposta a reformular entendimentos como o que assegura a prisão após condenação em segunda instância e legislações como a que exige ficha limpa de candidatos. Trata-se de ameaça contra o combate à corrupção, ou retrocesso quanto ao que o próprio Supremo já decidiu?
Não vejo como, digamos, uma séria ameaça à prevalência do entendimento até então espojado pelo tribunal no que toca a esses dois temas – o tema do início do cumprimento de pena e o tema da Lei da Ficha Limpa. Há o entendimento de que o Supremo já internalizou, consistentemente, a frase oracular de Albert Einstein que é a seguinte: “Quando a mente humana se abre para uma nova ideia é impossível retornar ao tamanho inicial”. E o que [o físico e teórico alemão Albert] Einstein, em última análise, relançou a frase igualmente, sábia, oracular, definitiva, de Victor Hugo [intelectual francês] segundo a qual “nada é tão irresistível quanto a força de uma ideia cujo tempo chegou”. O fato é que, consciente ou inconscientemente, pouco importa, a sociedade civil brasileira vem internalizando, mais e mais, avançando na direção dos princípios constitucionais até mais do que a esfera política. E mais, até, do que certos segmentos do Poder Judiciário no sentido de que há mesmo, nesses princípios, um fortíssimo traço de processo civilizatório avançado, o que me anima a diagnosticar a realidade brasileira afirmativamente, positivamente, otimisticamente. Ou seja, nós estamos, sim – embora com um recuo pontual, aqui e acolá – estamos acertando o passo das instituições. Estamos colocando os pontos nos “is” do nosso vocabulário ético-penal. É só vermos quem já foi condenado, quem já está atrás das grades…
A despeito da morosidade em alguns casos…
Isso. Perfeito.
No caso do senador Aécio Neves (PSDB-MG), quando foi dada ao Senado a última palavra sobre medidas cautelares a mandatários, o Supremo causou certa estupefação, no mundo jurídico, e indignação na opinião pública. Objetivamente, qual dos princípios constitucionais deve prevalecer quando confrontados, o da harmonia ou o da independência entre os Poderes?
Em uma decisão tecnicamente equivocada [caso Aécio], ao meu juízo, ao contrário do que diz a Constituição, às vezes o erro está na base de inspiração. Eu entendi que, ali, na base da inspiração – e, por isso, a maioria votou a favor de Aécio, em última análise – está o juízo, igualmente equivocado, de que no limite da inconciliabilidade entre o princípio da harmonia e o princípio da independência entre os Poderes, a meu juízo a maioria pensa que prevalece o da harmonia. Então, qual dos princípios é mais importante para a Constituição, no limite da confrontação? É uma pergunta fundamental. E eu digo que é o princípio da independência. Basta comprovarmos o seguinte. No artigo 2º da Constituição, encontra-se a seguinte redação – estou falando de memória: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Veja: há duas ordens tão lógicas quanto cronológicas nesse enunciado normativo do artigo 2º. Primeira ordem lógica e cronológica: são três Poderes da União, e o que vem primeiro? “Independentes e harmônicos”, percebe? Então, primeiro a independência. Se for possível a harmonia, é o ideal, mas sem qualquer sacrifício da independência. Principalmente para o Judiciário, porque sem independência, no rigor dos termos, o Judiciário não é nada, se esfacela, se desmilingue, implode. Quer ver que isso é verdade? Quando vamos ao artigo 60, sobre cláusulas pétreas, no parágrafo quarto, inciso 3º, a cláusula pétrea é a separação dos Poderes, e não a harmonia.
Agora, a segunda ordem, tão lógica quanto cronológica: Legislativo, Executivo e Judiciário. Ou seja, tudo começa com o Legislativo. Por quê? Porque a Constituição diz, no artigo 5º: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. E quem produz a lei é o Legislativo, que vem em primeiro lugar na ordem do artigo 2º. Imediatamente vem o Poder Executivo, que é assim chamado porque executa as leis, com imediaticidade. O Executivo baixa decretos e regulamentos, diz a Constituição, para fiel execução da lei. Então, o Legislativo é um gravitar em torno da lei com imediaticidade. Eis que vem o fecho maravilhoso, lógico: o Judiciário. Porque tudo afunila para o Judiciário, que é o Poder que vai dizer que o Legislativo legislou de acordo com a Constituição e que o Executivo baixou decretos e regulamentos para fiel execução da lei. Então, tudo afunila para o Judiciário, e a maioria não entendeu assim [no caso Aécio]. Mandou afunilar para o Legislativo, e não para o Judiciário. Ao meu juízo, partiu-se dessa base de inspiração, que eu tenho como equivocada, de que no limite da confrontação entre harmonia e independência prevalece o princípio da harmonia.
O STF converteu em pagamento de multa e prestação de serviços comunitários a condenação de prisão em regime semiaberto imposta ao senador Ivo Cassol (PP-RO). Ou seja, ele não foi absolvido. A propósito disso, a Constituição diz, em seu artigo 55, que “perderá o mandato o deputado ou senador [...] que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado”, e que a Casa correspondente deve votar a perda do mandato em plenário (parágrafo 2º daquele dispositivo). Não só Cassol, como o deputado Celso Jacob (PMDB-MG) e, mais recentemente, Paulo Maluf (PP-SP) ainda detêm os mandatos.
Esta é uma questão que chamamos de tormentosa. O artigo 15 da Constituição tem tudo a ver com o artigo 55, parágrafo segundo. O artigo 15, redação originária, diz assim: “É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de…”. Aí vem um dos casos: condenação criminal transitada em julgado. O artigo optou por uma lógica de incidência, e não de eficácia automática – condenada criminalmente, a pessoa tem seus direitos políticos ou cassados ou suspensos, o juiz é que decide. E isso é incompatível com o exercício do mandato. Mas a Constituição também diz o seguinte, no parágrafo 3º do artigo 14: “São condições de elegibilidade, na forma da lei [...] o pleno exercício dos direitos políticos”. Veja a lógica. Se você não estiver na plenitude dos direitos políticos, não pode ser eleito, certo? Aí vem o artigo 15, portanto subsequente ao 14, dizendo que a condenação criminal transitada em julgado acarreta ou a cassação dos direitos políticos ou a suspensão, o que é incompatível com o exercício do mandato. Mas acontece que, na Assembleia Nacional Constituinte, houve abstrações. Paradoxalmente, o artigo 55, fingindo ignorar tudo isso, traz o parágrafo 2º, que diz o seguinte: “Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal [...]“. Olhe que impasse! Por isso digo que a questão é tormentosa. Então, a meu juízo, há que se conciliar as interpretações, porque a Constituição originária não pode conter contradição, tem que eliminar a contradição. O Direito não pode conter antinomia, porque se não perde sua característica de ordem lógica das questões humanas. Então, como conciliar essas questões? Vamos ao atigo 15, que fala de perda ou suspensão dos direitos políticos, e interpreta assim: se o juiz suspender ou cassar os direitos políticos, deixa de operar aquele parágrafo 2º do artigo 55. Se o juiz não suspender e nem cassar, aí sim… Olha como isso é tormentoso. Então, eu respondo que se trata de uma questão tipicamente, classicamente tormentosa, em face da redação de todos os dispositivos aqui mencionados. Todos eles.
Ou seja, um grande conflito de conteúdo sobre o mesmo assunto.
Há um conflito de conteúdo. Estamos à espera de que o Supremo Tribunal Federal resolva, de uma vez por todas, essa questão interpretativa tormentosa. Os direitos políticos fazem parte dos direitos e garantias fundamentais da Constituição, segundo o Título nº II, de que o artigo 15 faz parte. Ao passo em que aquele artigo 55, parágrafo 2º, não faz parte dos direitos e garantias fundamentais. O que quero dizer com isso? É que há uma preferência interpretativa mais favorável, mais elástica, para os direitos e garantias fundamentais. Então, quem for interpretar o parágrafo 2º do artigo 55 há de fazê-lo de modo deferente para com o artigo 15. Se eu estivesse lá no Supremo, eu faria isso, como fiz tantas vezes – por exemplo, nas questões da homoafetividade, das células-tronco embrionárias, da liberdade de imprensa, da proibição do nepotismo. Entre o certo e o certo, eu vou homenagear [o preceito dos] direitos e garantias fundamentais, porque fundamenta, cimenta a personalidade humana, a personalidade coletiva.
O senhor participou da concepção do Conselho Nacional de Justiça, por ocasião da mais recente “reforma do Judiciário”, e já presidiu o colegiado. Como vê as críticas de que o CNJ não tem exercido um controle consistente da magistratura e ainda não estabeleceu, efetivamente, uma orientação de punição a juízes flagrados em malfeitos?
O CNJ é uma instituição do Judiciário absolutamente necessária. Faz parte do Judiciário, segundo o artigo 92, mas não tem função propriamente jurisdicional. Das competências do CNJ, duas são fundamentais, sobrelevam. Uma, porque é anticorporativa; compete ao CNJ o controle das atividades administrativas e financeiras do Poder Judiciário. A outra, porque compete ao CNJ zelar tanto pela autonomia do Poder Judiciário quanto pelo cumprimento dos deveres dos magistrados. A Constituição fez dele [CNJ] um necessário antídoto institucional para livrar o Judiciário de si mesmo naquele sentido do cometimento de, digamos, eventuais desvios de poder. Porque vejamos: não se pode impedir a imprensa de falar primeiro sobre as coisas, nos termos da Constituição, nem o Judiciário de falar por último, não é isso? Ora, quem fala primeiro sobre as coisas é superempoderado. Quem fala por último também é muito empoderado. Cito [o filósofo francês] Montesquieu: como quem detém o poder tende a abusar dele, é preciso criar antídotos contra esse abusos. E o CNJ é um antídoto institucional necessário. O desafio do CNJ é ser rigorosamente independente, imparcial, e não cair na tentação do corporativismo. Eu fui um defensor, quando estava no Supremo, da proposta de emenda constitucional instituidora do CNJ. Fui presidente do CNJ e o conheço de perto. Acho que ele é fundamental para essa qualificação democrática, ética, qualificação de desempenho, também de planejamento da função jurisdicional.
Para finalizar, que nota o senhor daria ao cenário institucional do Estado brasileiro no ano que se encerra em dois dias?
A nota eu não gosto de dar porque é juízo de valor. E eu só gosto do juízo técnico. O juízo técnico, científico, é objetivo – você vai lá e diz: “Olha, aqui na Constituição é assim, assim e assim”. E quando se vai dar uma opinião, eu não gosto, pois é juízo de valor, e não juízo técnico, objetivo. Juízo de valor é juízo subjetivo. E não gosto pelo seguinte. Se eu vou dar uma nota às instituições… Por exemplo, a Polícia Federal, cinco; ao Ministério Público, cinco; ao Poder Judiciário, seis… Digamos assim que eu termino projetando a imagem ruim daquelas menos ranqueadas. E eu acho que estamos em uma fase da vida nacional em que é preciso entender – e o grande público já começa a entender, e a imprensa tem informado muito, consciente ou inconscientemente, volto a dizer – que [o dramaturgo alemão Bertold] Brecht tinha razão quando disse: “Triste de um povo que precisa de heróis”. Que precisa de líderes, de chefes. O povo precisa é de instituições, porque elas são o reino da impessoalidade, o reino da sustentabilidade, da permanência. E [o jurista e diplomata brasileiro] Ruy Barbosa, melhor do que Brecht, disse o seguinte, uma frase pouquíssimo conhecida – a de Brecht é conhecida: ”Salvação, sim; salvadores, não”. Que maravilha, não? Frase fantástica, maravilhosa. Então, eu, você e todos, que gostamos do Brasil, nosso grande amigo – não é fulano, beltrano e sicrano, mas o Brasil que é nosso grande amigo, institucionalmente falando –, nós queremos o fortalecimento das instituições. Queremos desfulanizar a vida brasileira, livrá-la deste compadrio, deste chiclete psicológico, deste grude entre fulano, beltrano e sicrano. Você veja: o Cunha, por exemplo [deputado cassado, preso e condenado Eduardo Cunha, do PMDB fluminense], elegeu 170 deputados, para termos uma ideia. Uma coisa horrorosa.
E hospedou muitos deles em um hotel de luxo em Brasília, em plena campanha para se eleger presidente da Câmara…
Então, o que eu poderia lhe responder, em uma tentativa de pensar grande – e pensar grande pensar institucionalmente –, é o seguinte: há dois blocos de instituições criadas pela Constituição. Há o bloco das instituições que governam, concentradas no Parlamento e no Executivo; e há um segundo bloco, de instituições que não governam, mas que impedem o desgoverno. Querendo e tendo a coragem de agir com independência, elas impedem o desgoverno. Aí eu coloco o Ministério Público, a polícia, o Judiciário e o sistema tribunais de contas. São instituições concebidas para, no limite, impedir o desgoverno. Então eu lhe responderia que as instituições concebidas para impedir o desgoverno, no ano de 2017, funcionaram melhor do que o outro bloco. [O terceiro presidente norte-americano] Thomas Jefferson cunhou duas frases que parecem responder pelo momento brasileiro nos últimos dois, três anos. Primeira frase: “O preço da liberdade é a eterna vigilância”. Por isso lhe disse que a cidadania nunca esteve tão ativada, a imprensa nunca foi tão livre e o Poder Judiciário, a despeito de tudo, nunca foi tão independente. Diga-se o mesmo do Ministério Público, da Polícia Federal. Há recuos, há tropeços, aqui e ali. Mas, no conjunto da obra, sob intensa vigília popular e da imprensa, sob intensa vigília da cidadania, as instituições brasileira avançaram, notadamente as impeditivas do desgoverno.
Segundo pensamento de Thomas Jefferson: “A arte de governar consiste, exclusivamente, na arte de ser honesto”. Por isso que, no Brasil de hoje, consciente ou inconscientemente, a sociedade civil já vitaliza essa ideia de que a corrupção… Os três conteúdos do patrimonialismo, que é aquela indistinção entre o público e o privado para prevalecer o privado; é confundir “tomar posse no cargo” com “tomar posse do cargo”. Eu disse isso em um voto lá no Supremo, quando votei contra o nepotismo e emplaquei meu voto. A sociedade brasileira já entendeu que os três conteúdos do patrimonialismo – corrupção sistêmica, corporativismo e irresponsabilidade com o bem público –, terríficos, deletérios, são uma declaração de guerra ao nosso Estado de civilização, à nossa ânsia de alcançar um patamar civilizatório de vida coletiva. Se combatermos esses três conteúdos, faremos um ajuste fiscal tão heterodoxo quanto eficaz. O ajuste fiscal começa por aí, e vai sobrar dinheiro. Claro que os economistas vão dizer que isso não tem nada a ver com ajuste fiscal, mas tem tudo a ver. Sabe por quê? Porque são esses três conteúdos que exaurem a capacidade estatal de financiar saúde, educação, segurança, serviços públicos, infraestrutura… Se fecharmos as três torneiras do patrimonialismo – desperdício de dinheiro público, corporativismo e corrupção sistêmica –, vai sobrar dinheiro.