- TERRA CAÍDA -
O verão é uma época de prodigiosa fartura nas várzeas, funcionando como a traiçoeira isca atirada pelo rio para que o homem se fixe à terra. Então, o monstro amarelo poderá torturá-lo até ao desespero nos meses da enchente. No período situado entre agosto e dezembro, quando a vazante é normal, a vida é uma festa. Parece que tudo contribui para injetar nas almas aquela entusiasmante felicidade a que se referiu Maria Flor, quando Antônio, seu marido, ponteava o violão.
Há frutos em assombrosa abundância numérica e qualitativa. Por toda parte encontram-se queijos, doces, tracajás, incontáveis produtos agrícolas e, sobretudo, peixes, muitos peixes à escolha. No lago que fica por trás da “Fazenda Apuizeiro”, Zé Potoca só tem o trabalho de esticar a malhadeira ou o espinhel para que tucunarés, curimatãs, tambaquis, pescadas, pirapitingas, surubins ou jatuaranas – todos pingando gordura! – abasteçam a mesa às refeições.
Ao longo do Amazonas, principalmente quando a Lua evolui do esperado quarto crescente para o plenilúnio, sucedem-se os cardumes de jaraquis, pacus, aracus, sardinhas e outras espécies, que sobem o rio para a complementação de seus ciclos vitais. E, de vez em quando, a família de Antônio atravessa o “Mar Doce” e vai fazer uma saborosa “piracaia” num alvinho areal, a meia hora de barco. Ali, sob a magia da noite enluarada, arma-se braseiro ou moquém e se come o peixe fresco (acari, por exemplo!) na praia. É uma das boas gostosuras da vida ribeirinha.
Neste sábado, ultimadas as tarefas rotineiras, Presidente resolve sair com o afilhado: quer ver se mata umas capivaras lá na ribanceira do outro lado do rio. Soube que elas andam pastando desde o Paraná do Calango até ao Igapó do Tiririca. Para a viagem reúnem, os dois, todo o material necessário, como cartucheiras, munição, facas e também equipamento de pescaria, porque ali é lugar de pirarucu. Anoitece quando eles partem, levando uma pequena canoa atravessada sobre o comprido bote azul, em cuja lataria, à proa, aparece o nome pintado em vistosas letras vermelhas pelo primo Turico: “Flô das onda.”
O tempo está uma beleza. Mergulhões atrasados para o repouso noturno voam a meio metro da água. Após uma hora de viagem, chegam ao destino e, amarrando a embarcação a uma árvore da margem, desembarcam a montaria e os apetrechos. Devem, agora, remar uns dez minutos, mata adentro, por estreitas veredas, bem visíveis sob o foco da lanterna de carbureto, colocada sobre um caixote.
Em certo ponto do percurso, Antônio acha conveniente estenderem logo a malhadeira maior, que examinarão mais tarde, ao retornar da caçada. Estão entretidos no trabalho quando um abafado, mas forte estrondo se faz ouvir. Benzendo-se e pondo na voz baixa todo o atávico espanto supersticioso dos amazônidas, diz Zé Potoca: – Vute! Paresque terra caída, meu padrinho! – Ao segundo ronco misterioso, grita Presidente, afobado: – Larga tudo aí e vamo embora, que a praga é lá pras banda do nosso bote! Pelo jeito, é terra caída mesmo! – E, como doidos, varam o matagal, na ânsia de salvar o barco, deixado às proximidades de um barranco talhado a prumo, com umas cinco braças de altura. Estão a cem metros do local quando um novo rugido aterrador lhes acelera os corações. Há uns segundos de silência agourento em que até os sapos, grilos, arapapás e demais seresteiros das campinas guardam os instrumentos e... o mundo vem abaixo! O pecuarista, desesperado, após ver a canoa em segurança na margem, cai de joelhos e suplica: – Minha Mãe do Céu, sarve o meu barquinho, pelo amor de Deus!...
Com arrepiante escarcéu, uma enorme fatia da ribanceira desaba! É, realmente, o perigoso e apavorante fenômeno amazônico da “terra caída”, que talvez só fique atrás da enchente no tamanho do medo que provoca nos caboclos.
E por que tão grande assombro? Justifica-se a covarde reação dos varzeiros. Faz poucos anos que ali no Paricatuba, por exemplo, nove pessoas morreram, tragadas pelo potente redemoinho que se forma ao despencar, inteiro, dentro do rio, um imenso bloco do solo. É que, lentamente, as águas vão cavando, corroendo as bases dos barrancos, até que, um dia, a pertinaz erosão produz um catastrófico desabamento. Tudo o que fica às proximidades da área desmoronada é succionado violentamente para os peraus lodosos do Amazonas, enquanto vagalhões se erguem, convulsionando tudo ao redor!
O fenômeno costuma, curiosamente, denunciar-se por um ronco soturno que, emergindo das entranhas da terra, enche de terror as almas crédulas e assustadiças da gente ribeirinha. Deve ser esse o rugido que dizem sair dos vulcões prestes a entrar em erupção, ou dos epicentro de arrasadores terremotos. Enquanto se acomodam, nas profundezas, as camadas geológicas brincam de assombração, grunindo sinistramente como a porca da meia-noite...
Na Amazônia, entretanto, existe uma crendice que associa a desgraceira da “terra caída” a um mal ainda maior: a Cobra Grande. Morando nas funduras aquáticas, ao se aborrecer ou se espreguiçar lá pelos abismos, ela agita o corpanzil de quarenta metros e desmonta, sem esforço, um grande pedaço do barranco mais próximo. Então, o paralisante estrondo nada mais é do que o bramido mortal da bichona zangada. O tumulto das águas explica-se, à luz da secular superstição, nem tanto pelo volume de terras que nela se despeja, mas pelos colossais “esperneios” do monstro lá embaixo...
Serenado outra vez o ambiente, Zé e Antônio, reprimindo o medo e com extrema cautela, vão ver o que aconteceu ao precioso barco “Flô das onda”. De lanterna em punho, aproximam-se o bastante para, a uma só voz, proferir, desolados, a mesma palavra indesejável: – Sumiu!...
Tragado pelo turbilhão infernal, o barco está definitivamente perdido! Aí a correnteza é tão forte e tamanha a profundidade que, conhecendo tanto a região, seria estupidez de ambos tentar uma busca. Girando em semi-círculo o farolete de pilhas e já meio resignado com a desfeita da Mãe do Céu, Presidente mostra ao companheiro a dimensão do trecho que caiu: uns trinta metros de ribanceira! Fazem o que lhes compete nessas amargas circunstâncias. Vão recolher a malhadeira, onde encontram dois bonitos bodecos (filhotes de pirarucu), uma vasta arraia e um tambaqui. Não foi de todo inútil a desastrosa viagem para assassinar capivaras...
Dispondo tudo a bordo da pequena canoa, que fica apenas com o pavês fora d’água, tal o peso da carga, os dois remarão, a seguir, cerca de duas horas para atingir a “Fazenda Apuizeiro”. Mas, como não há vento, o retorno transcorre sem problemas e às dez da noite estão entrando em casa. Pouco falaram pelo caminho, trocando somente algumas idéias para se arrumar outra embarcação. Providencialmente, Antônio tem um amigo que anda querendo se desfazer de um bote motorizado, bem semelhante ao falecido “Flô das onda”.
Abrindo a garrafa térmica, Maria Flor põe o cheiroso café em dois canecos de alumínio e pergunta: – O motor deu prego? Eu não vi barulho. Cadê a capivara? – Em poucas palavras, o marido conta o que aconteceu, enquanto atira os peixes sobre a mesa da cozinha. E comenta: – Dizque tem gente tão azarada que vai passando embaixo duma casa e uma telha cai bem no cocuruto dela. Nós tivemo a uruca de resorver ir caçar logo nessa noite mardita e pusemo o bote num lugar que nem a Mãe do Céu sarvou ele. – Tomando um pouco de café, concluiu, sombrio: – Eu e o Zé rezemo mais do que velha coroca em cima de defunto. Mas não adiantou nada e eu já tô conformado. Tem o Diabo pra tirar e Deus pra dar. A gente arruma outro barco.
Ouvindo o esposo, em interessado silêncio, a mulher tem como única reação inicial o palavroso discurso de duas lágrimas, que logo ela enxuga na manga do vestido. Ao lavar os canecos, entretanto, exprime o que lhe passeia pelo coração e fala, emocionada: – É bestera. Porrada em cima de pobre só presta se for grande. Minha mãe dizia pra nós que desgraça só gosta de andar em procissão. É como um bando de andor que tem demônio em vez de santo. Se aparece uma consumição maior, pode perpará o corpo que vem outras cacetada. – Jogando no quintal a água suja, arrisca um palpite sinistro: – Eu já tô mardando que essa enchente inda vai fazer nós muito desinfeliz. Tisconjuro!
De muito longe, cavalgando o vento terral e prostituindo o silêncio da noite serena, chega aos ouvidos o espalhafatoso berreiro de guaribas que sofrem de insônia.
Há frutos em assombrosa abundância numérica e qualitativa. Por toda parte encontram-se queijos, doces, tracajás, incontáveis produtos agrícolas e, sobretudo, peixes, muitos peixes à escolha. No lago que fica por trás da “Fazenda Apuizeiro”, Zé Potoca só tem o trabalho de esticar a malhadeira ou o espinhel para que tucunarés, curimatãs, tambaquis, pescadas, pirapitingas, surubins ou jatuaranas – todos pingando gordura! – abasteçam a mesa às refeições.
Ao longo do Amazonas, principalmente quando a Lua evolui do esperado quarto crescente para o plenilúnio, sucedem-se os cardumes de jaraquis, pacus, aracus, sardinhas e outras espécies, que sobem o rio para a complementação de seus ciclos vitais. E, de vez em quando, a família de Antônio atravessa o “Mar Doce” e vai fazer uma saborosa “piracaia” num alvinho areal, a meia hora de barco. Ali, sob a magia da noite enluarada, arma-se braseiro ou moquém e se come o peixe fresco (acari, por exemplo!) na praia. É uma das boas gostosuras da vida ribeirinha.
Neste sábado, ultimadas as tarefas rotineiras, Presidente resolve sair com o afilhado: quer ver se mata umas capivaras lá na ribanceira do outro lado do rio. Soube que elas andam pastando desde o Paraná do Calango até ao Igapó do Tiririca. Para a viagem reúnem, os dois, todo o material necessário, como cartucheiras, munição, facas e também equipamento de pescaria, porque ali é lugar de pirarucu. Anoitece quando eles partem, levando uma pequena canoa atravessada sobre o comprido bote azul, em cuja lataria, à proa, aparece o nome pintado em vistosas letras vermelhas pelo primo Turico: “Flô das onda.”
O tempo está uma beleza. Mergulhões atrasados para o repouso noturno voam a meio metro da água. Após uma hora de viagem, chegam ao destino e, amarrando a embarcação a uma árvore da margem, desembarcam a montaria e os apetrechos. Devem, agora, remar uns dez minutos, mata adentro, por estreitas veredas, bem visíveis sob o foco da lanterna de carbureto, colocada sobre um caixote.
Em certo ponto do percurso, Antônio acha conveniente estenderem logo a malhadeira maior, que examinarão mais tarde, ao retornar da caçada. Estão entretidos no trabalho quando um abafado, mas forte estrondo se faz ouvir. Benzendo-se e pondo na voz baixa todo o atávico espanto supersticioso dos amazônidas, diz Zé Potoca: – Vute! Paresque terra caída, meu padrinho! – Ao segundo ronco misterioso, grita Presidente, afobado: – Larga tudo aí e vamo embora, que a praga é lá pras banda do nosso bote! Pelo jeito, é terra caída mesmo! – E, como doidos, varam o matagal, na ânsia de salvar o barco, deixado às proximidades de um barranco talhado a prumo, com umas cinco braças de altura. Estão a cem metros do local quando um novo rugido aterrador lhes acelera os corações. Há uns segundos de silência agourento em que até os sapos, grilos, arapapás e demais seresteiros das campinas guardam os instrumentos e... o mundo vem abaixo! O pecuarista, desesperado, após ver a canoa em segurança na margem, cai de joelhos e suplica: – Minha Mãe do Céu, sarve o meu barquinho, pelo amor de Deus!...
Com arrepiante escarcéu, uma enorme fatia da ribanceira desaba! É, realmente, o perigoso e apavorante fenômeno amazônico da “terra caída”, que talvez só fique atrás da enchente no tamanho do medo que provoca nos caboclos.
E por que tão grande assombro? Justifica-se a covarde reação dos varzeiros. Faz poucos anos que ali no Paricatuba, por exemplo, nove pessoas morreram, tragadas pelo potente redemoinho que se forma ao despencar, inteiro, dentro do rio, um imenso bloco do solo. É que, lentamente, as águas vão cavando, corroendo as bases dos barrancos, até que, um dia, a pertinaz erosão produz um catastrófico desabamento. Tudo o que fica às proximidades da área desmoronada é succionado violentamente para os peraus lodosos do Amazonas, enquanto vagalhões se erguem, convulsionando tudo ao redor!
O fenômeno costuma, curiosamente, denunciar-se por um ronco soturno que, emergindo das entranhas da terra, enche de terror as almas crédulas e assustadiças da gente ribeirinha. Deve ser esse o rugido que dizem sair dos vulcões prestes a entrar em erupção, ou dos epicentro de arrasadores terremotos. Enquanto se acomodam, nas profundezas, as camadas geológicas brincam de assombração, grunindo sinistramente como a porca da meia-noite...
Na Amazônia, entretanto, existe uma crendice que associa a desgraceira da “terra caída” a um mal ainda maior: a Cobra Grande. Morando nas funduras aquáticas, ao se aborrecer ou se espreguiçar lá pelos abismos, ela agita o corpanzil de quarenta metros e desmonta, sem esforço, um grande pedaço do barranco mais próximo. Então, o paralisante estrondo nada mais é do que o bramido mortal da bichona zangada. O tumulto das águas explica-se, à luz da secular superstição, nem tanto pelo volume de terras que nela se despeja, mas pelos colossais “esperneios” do monstro lá embaixo...
Serenado outra vez o ambiente, Zé e Antônio, reprimindo o medo e com extrema cautela, vão ver o que aconteceu ao precioso barco “Flô das onda”. De lanterna em punho, aproximam-se o bastante para, a uma só voz, proferir, desolados, a mesma palavra indesejável: – Sumiu!...
Tragado pelo turbilhão infernal, o barco está definitivamente perdido! Aí a correnteza é tão forte e tamanha a profundidade que, conhecendo tanto a região, seria estupidez de ambos tentar uma busca. Girando em semi-círculo o farolete de pilhas e já meio resignado com a desfeita da Mãe do Céu, Presidente mostra ao companheiro a dimensão do trecho que caiu: uns trinta metros de ribanceira! Fazem o que lhes compete nessas amargas circunstâncias. Vão recolher a malhadeira, onde encontram dois bonitos bodecos (filhotes de pirarucu), uma vasta arraia e um tambaqui. Não foi de todo inútil a desastrosa viagem para assassinar capivaras...
Dispondo tudo a bordo da pequena canoa, que fica apenas com o pavês fora d’água, tal o peso da carga, os dois remarão, a seguir, cerca de duas horas para atingir a “Fazenda Apuizeiro”. Mas, como não há vento, o retorno transcorre sem problemas e às dez da noite estão entrando em casa. Pouco falaram pelo caminho, trocando somente algumas idéias para se arrumar outra embarcação. Providencialmente, Antônio tem um amigo que anda querendo se desfazer de um bote motorizado, bem semelhante ao falecido “Flô das onda”.
Abrindo a garrafa térmica, Maria Flor põe o cheiroso café em dois canecos de alumínio e pergunta: – O motor deu prego? Eu não vi barulho. Cadê a capivara? – Em poucas palavras, o marido conta o que aconteceu, enquanto atira os peixes sobre a mesa da cozinha. E comenta: – Dizque tem gente tão azarada que vai passando embaixo duma casa e uma telha cai bem no cocuruto dela. Nós tivemo a uruca de resorver ir caçar logo nessa noite mardita e pusemo o bote num lugar que nem a Mãe do Céu sarvou ele. – Tomando um pouco de café, concluiu, sombrio: – Eu e o Zé rezemo mais do que velha coroca em cima de defunto. Mas não adiantou nada e eu já tô conformado. Tem o Diabo pra tirar e Deus pra dar. A gente arruma outro barco.
Ouvindo o esposo, em interessado silêncio, a mulher tem como única reação inicial o palavroso discurso de duas lágrimas, que logo ela enxuga na manga do vestido. Ao lavar os canecos, entretanto, exprime o que lhe passeia pelo coração e fala, emocionada: – É bestera. Porrada em cima de pobre só presta se for grande. Minha mãe dizia pra nós que desgraça só gosta de andar em procissão. É como um bando de andor que tem demônio em vez de santo. Se aparece uma consumição maior, pode perpará o corpo que vem outras cacetada. – Jogando no quintal a água suja, arrisca um palpite sinistro: – Eu já tô mardando que essa enchente inda vai fazer nós muito desinfeliz. Tisconjuro!
De muito longe, cavalgando o vento terral e prostituindo o silêncio da noite serena, chega aos ouvidos o espalhafatoso berreiro de guaribas que sofrem de insônia.
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