quinta-feira, 27 de março de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 4

- O CÍRIO -
No município de Santarém há uma tradicional devoção coletiva. Ela prevalece poderosamente sobre as ladainhas particulares aos santos venerados nas inúmeras comunidades varzeiras. Nossa Senhora da Conceição, excelsa protetora de todo o povo, é a querida padroeira que tem sua festa anual a 8 de dezembro. A precedê-la, quase uma quinzena de comemorações litúrgicas e profanas.

Não importa que os Santos Inácio, Benedito, Antônio, Teresinha ou Ana sejam cultuados com fervor, por aí a fora. No último sábado de novembro a região inteira se alvoroça e a chamada “Capital do Estado do Tapajós” fervilha, ao ser tomada de assalto por alegres e pacíficas caravanas de romeiros. Nessa noite se iniciará a quadra festiva, com a “Transladação” – o transporte da imagem de uma igreja para outra, em procissão iluminada por milhares de velas acesas. Na manhã seguinte, o itinerário será inverso, no imponente e concorridíssimo “Círio”, o maior cortejo religioso do interior do Pará.

Como tem acontecido sempre, desde que se casaram há quinze anos, Presidente e Maria Flor estão com a família preparada: permanecerão durante quase dois dias na cidade. Tudo já foi providenciado. Deixarão na fazenda o vaqueiro Zezinho Tiningu, gente de confiança que, por ter levado uma estrepada de jauari num dos pés, não poderá acompanhar a procissão. Em Santarém, a mãe e as crianças ficarão na casa de Babá Sapateiro, um dos amigos que possuem. Antônio e Zé Potoca se arrumarão mesmo no “Flô das onda” – o bote próprio que os leva acima e abaixo, quando é preciso.

O grupo viajou no sábado, após o almoço. À tardinha, desembarcou na praia em frente ao Mercado Municipal, onde se aglomeram, disputando uma vaga, mais de cem barcos motorizados e canoas dos mais diversos tipos e dimensões.

À noite, havendo participado, sem contratempos da Missa e da Transladação, o fazendeiro convida a turma: – Vumbora, gente boa! Vumbora dar umas vorta no arraiar e tomar um cardo de cana. – Potoca, no entanto, sugere: – Meu padrinho, este ano tem um tar de carrosser elétrico, ali junto das baiúca do mingau. Nós nunca andemo nesse coirão e era legar a gente dar umas rodada nele. Dizque é baratinho e pai-d’égua de bom! – A gurizada vibra: – Vumborá, papai! Vumbora no carrosser! – Então, é melhor nós fazer logo as duas coisa – pondera Maria Flor. Nós toma cardo de cana com paster na garapeira e dispôs a gente vamo rodar no carrosser. – Alegremente, a proposta é aprovada.

Na “Garapeira Ipiranga”, após conseguirem vagas em meio à sedenta freguesia, todos se empanturram de pastéis, broas, refresco e garapa, até que não caiba mais nada nos estômagos. Deslumbrando-se com as luzes coloridas e pisca-piscantes da igreja e do imenso arraial, eles seguem para o ponto onde rodopia o carrossel, entrando numa comprida fila. Antônio compra os ingressos e avisa: – Cuidado! Nós tamo de bucho cheio e dizque essa pitomba dá tontura e engulho quando a gente não tem costume. – Acomodam-se, nervosos, nas estreitas cadeiras. O barulhento mecanismo é acionado e, já na terceira volta, Maria Flor e três meninos estão expulsando a alma pela boca... Entre dois espasmos que lhe esbugalham os olhos, a cabocla se esgoela, enquanto acode uma criança que chora, apavorada: – Pára!... Pára essa porqueira!... Bem que o Antônio avisou a gente! – Mas o brinquedo gira, mais rápido ainda. Agora, só Presidente e o afilhado vão conseguindo reter nas entranhas, a muito custo, a merenda que engoliram. E quando, finalmente, a engenhoca se detém, o espetáculo é de provocar sacolejantes gargalhadas em hipopótamo: a mãe e os seis filhos, inteiramente sujos, pingam vômito até das pálpebras! Os menores berram, meio sufocados, o pai faz o que pode para socorrê-los, mas Zé Potoca não resiste à cômica situação: – Quá! Quá! Quá! – sacode-se, a rir incontrolavelmente. Gargalha tanto que, de súbito, expele a refeição adocicada quase na cara da descabelada madrinha, que mal tem um reflexo para se desviar do jato repugnante e esconjurar, furiosa, o crioulo debochador: – Agüenta, cachurro mardito! Vai fazer pouco da tua mãe e bota também os bofe pra fora, seu sem-vergonha! – Limpa mais um guri com a parte menos imunda de um calção que retirou do outro e se lamenta, afobada: – Mas, que consumição!... A gente viemo pra se divertir e eu inda vou ter que lavar essas roupa agora, senão nós não acompanha o Círio amanhã. Tisconjuro! Vute! Nem na cidade eu não descanso.

E lá vão os varzeiros: dois garotos estão nus, outros sem camisa e com as sandalinhas na mão. Todos azedos e tontos, agora dormirão em paz, sem muriçocas e sonhando com as maravilhas do arraial.

No dia seguinte, o grandioso Círio. Dezenas de milhares de pessoas, entre foguetório, banda de música e vibrantes cânticos, glorificam a Virgem da Conceição, que é levada em passeio triunfal pelas ruas da cidade. O longo trajeto, que exige cerca de três horas para ser percorrido, constitui uma colorida apoteose, agradável aos olhos e ao coração.

O tributo comunitário à Mãe Celestial, a par com a religiosidade esclarecida, apresenta fortes conotações folclóricas, sobretudo pelas extravagantes promessas que muitos devotos cumprem publicamente, agradecendo benefícios recebidos. Carregam-se pedras e potes na cabeça, envergam-se mortalhas ou se rebocam chorosas crianças, comicamente fantasiadas de anjos. Do meio para o fim, todavia, os pequeninos assessores artificias de Deus não sabem sequer por onde andam suas asas: caíram por aí, na confusão dos apertos...

Os divertimentos do arraial atraem fortemente a caboclada interiorana. Ultimados os atos religiosos, essa humilde gente espraia-se pela apinhada Praça da Matriz, participando, a rir, do alegre burburinho. Os corações sentem cócegas quando a competente “Banda Municipal”, instalada no coreto, ataca vibrantes dobrados e rebolativos sambas. E o dinheirinho dos varzeiros vai encolhendo, na “pescaria”, nas bancas de açaí, “rala-rala”, mingau ou tacacá e na compra de mil bugigangas dos persuasivos e muitos marreteiros.

A família de Antônio Presidente está muito alegre e feliz, muito se distrai, trançando pernas acima e abaixo. Cada menino, todo lambuzado de picolé ou pé-de-moleque, tem um balão com o irritante apito e não deixa por menos: sopra-o com vigor, acrescentando novos ruídos aos berros histéricos dos alto-falantes e a tantas outras estridências. Quem for podre, que se quebre e tome nos ouvidos: – Piiii!... Piiii! Fooom! Fiuuu!

Estão os peregrinos ouvindo o discurso de um cidadão que anuncia as maravilhas de certa pomada, que cura desde espinhela caída até disenteria e dor-de-cotovelo, quando alguém dá o alarme: – Roubaram o meu dinheiro!... E foi este preto aqui! – assegura, apontando Zé Potoca, a seu lado.

Insultado estupidamente no meio da rua, sem culpa alguma, o vaqueiro acerta um violento murro na cara do afoito acusador – um tipo empoado, bem vestido, de cabelos caindo sobre os ombros. O homem cospe um dente, há gritos e correrias. Aparecem dois policiais, apuram tudo, rapidamente, e o cabo decide, com voz grossa: – Teje preso, nego safado! – Mas eu não fiz nada, seu sordado! – garante o rapaz. Esse corno aí me chamou de ladrão e eu sapequei um tabefe nele. – Vumbora e não conversa fiado! – grita o guarda, já empurrando o caboclo. – Antônio quer interferir, mas é inibido pelo invencível pavor que a gente do interior tem da polícia. Logo ocorre, porém, à madrinha de Zé Potoca, já detido, uma boa idéia: – Vumbora, já, já, percurar o vereador Polidoro, que ele sorta o Zé!

Apanham um táxi, deixam as crianças na casa de Babá Sapateiro e localizam o político. Sem dificuldade, ele consegue liberar o prisioneiro. E já vão saindo da delegacia quando chega a informação de que o esmurrado sujeito achara a sua bolsa. Havia pago, entretanto, a calúnia com um dente extraído sem anestesia...

São ainda treze horas. Todavia, por causa da medonha encrenca, os moradores da ‘Fazenda Apuizeiro” decidem antecipar o regresso para a madrugada seguinte. Zé Potoca agrediu um desconhecido e há sempre o risco de uma vingança, de um novo sururu, com soldados pelo meio. E, afinal, convenhamos: eles já se divertiram tanto que estão saturados da cidade barulhenta. Tudo o que é demais, enjoa.

Lá vai o “Flô das onda”, amazonas acima!

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