sexta-feira, 6 de junho de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 14


– A SUCURIJU –
A tarde já vai mostrando os sintomas iniciais do mal galopante que, dentro de uma hora, por entre desmaios e rubores, há de levá-la ao suspiro derradeiro. Maria Flor esfrega umas roupas das crianças nos degraus da escadinha dos fundos, quando um dos meninos grita: – Mamãe, a sucuriju pegou o patarrão! ...

A mulher corre, mas Antônio, que regressa da maromba onde estava cuidando das reses, dá vigorosas remadas na montaria e parte no rumo indicado pelo garoto, que disse ter visto a cobra fugir para as bandas do aningal próximo. Como, porém, o local já está parcialmente no fundo e é muito feio, o caboclo, depois de navegar um pedaço, reconhece que não adianta perseguir agora a temida serpente. Preocupado, pergunta ao filho: – Tu viu ela? De que tamanho era? – Eu não vi bem o tamanho. Mas paresque era grandona e assim da grossura de uma lata de leite “Ninho”.

Quieto, no pontalete da canoa, o varzeiro calcula que, se é correta a informação do guri, deve ser uma cobra para uns três ou quatro metros, no mínimo. É um desassossego a mais, neste fim de mundo, saber-se que passeia pelo quintal alagado uma traiçoeira e aterrorizante sucuri, a fera que mata se enroscando com tremenda força no corpo da embiara que lhe cai no bote – seja pato, boi ou gente.

Quarenta e oito horas mais tarde, o ramerrão de outro dia insuportavelmente igual aos anteriores e vindouros está quase encerrando. Terminou-se de inspecionar as quatro dezenas de animais restantes e foi preciso jogar, lá no meio do rio, uma esquelética novilha morta pela manhã. Só de olhar os esfomeados bichos em cima do estrado, Antônio sente um desespero a lhe pungir o coração. Contam-se as costelas de cada um e os pontiagudos ossos das ancas estão quase varando o couro, tal a magreza do gado. Se a vazante demorar, ele não tem dúvida de que os prejuízos serão totais.

Entardece. Cansado, o Sol se apóia sobre as copas da mataria azul, reunindo esforços e coragem para o mergulho no desconhecido, de onde boiará, de manhãzinha, consumando o milagre triunfal de um novo dia. Entretanto, ainda está bem claro e Antônio Presidente atira a primeira cuia com água sobre o corpo, num gostoso banho, quando reboa pelo ar o berro horrível: – Aaaiii!... Papaaaiii!...

– A sucuriju pegou o Tuninho! – denuncia, espavorida, a irmã de sete anos.

Como um raio, Maria Flor, que costurava, pula n’água, com a tesoura grande na mão.

– Deixa comigo! – brada, enérgico, o marido, correndo com o facão afiado. Dá uma trombada na menina, atirando-a longe e salta quase em cima do monstro que aperta a esperneante criança em suas roscas fatais!

Com indizível pavor nos olhos esbugalhados, lutando desesperadamente para se livrar da triturante pressão, ruge a inocência martirizada: – Aaaiii!... Papaaaiii!... Me sarve, papaizinho!... Meus osso tão quebrando!... Mamãezinha do meu coração! Aaaiii!...

Os quatro irmãos da vítima fazem tremendo alarido de medo e compaixão, enquanto se trava formidável combate aquático. Sua simples visão é suficiente para fulminar covardes ou cardíacos. Maria Flor conseguiu agarrar a cabeçorra da enorme cobra e tenta introduzir a tesoura em seus olhos, pondo, na briga desigual, toda a força que lhe dá a alma rasgada de dor e ódio. Escancarando a bocarra onde se agita a língua bífida, a serpente procura morder o rosto da valente mãe.

Louco de fúria, Presidente acerta a primeira terçada na fera, que logo começa a afrouxar o torniquete assassino, dando rabanadas violentas que fazem um escachoante tumulto na água suja. Repetindo, vezes sem conta, os violentos golpes, o alucinado pai termina matando a sucuriju. Mas, quando retira o menino daquele inferno de sangue e lama, compreende, com um profundo soluço, que tudo foi inútil: toda fraturada, a criança acaba de morrer, por asfixia! Recebera o bote fatídico da cobra quando brincava na escada do alpendre.

Antônio não chora há muitos anos e nem saberia dizer quando isso ocorreu pela última vez. Todavia, com o garoto morto nos braços, exausto da luta feroz, o pobre pai, agasalhando o cadáver sobre a mesa da cozinha, não consegue reter o pranto convulsivo. O rio acaba de lhe roubar o segundo filho em menos de três meses!

Entrando um pouco depois, Zé Potoca nem precisa perguntar nada: viu o monstro estraçalhado lá na porta e, de longe, escutara o berreiro pavoroso. Limita-se a curvar a cabeça sobre o peito nu, lagrimando em silêncio. Dos cinco meninos, esse era sempre o mais amigo do crioulo. Está, assim, outra vez enlutada e em tão dolorosas circunstâncias, a bela “Fazenda Apuizeiro”.

Aplacada a tempestuosa crise emocional que agitava Maria Flor e postos em calma os chorosos maninhos do falecido, passa-se a fazer o que a vida (ou a morte?) exige: mandar avisos à vizinhança através do prestativo afilhado e preparar o velório do pequeno defunto, para, no dia seguinte, conduzi-lo ao cemitério de Paricatuba. No entanto, fazendo das tripas coração, Antônio ainda vai substituir o vaqueiro no fornecimento do capim para a pequena boiada. É que, na várzea, até o sofrimento, às vezes, se torna um luxo proibido.

Antônio e Maria não dormem um minuto sequer nessa noite, arrastada e interminável como soro pingando em veia de doente. Além da mágoa dilacerante de um filho a menos, o caboclo tem seu martírio ampliado por uma amarga sensação de culpa: acha que deveria Ter morto a sucuriju de qualquer maneira, quando ela pegou o pato. A esposa, porém, já lhe disse, com o apoio de todos os amigos presentes: – Tira isso da cabeça! Era o dia dele. Se tu havera de matar essa marvada, o cão mandava logo outra mais grande do que ela. Foi a vontade de Deus.

É impossível acreditar, contudo, por mais fatalista que se consiga ser, que o Senhor de todas as misericórdias tenha desejado mesmo que uma criança morresse tão pavorosamente assim.

Às duas horas da fria madrugada, com os caboclos jogando baralho, na cozinha, para espantar o sono, começam os dois cônjuges a conversar, a prestações e em voz baixa, debruçados no parapeito do alpendre: – Essa nossa vida, Maria, tá mesmo um causo sério – principia, hesitante, o marido.

Ele nunca mais fumara. Contudo, para acalmar os nervos esfrangalhados, pita um cigarro que enrolou durante dez minutos, já sem a prática antiga. Contra os seus hábitos de tagarelice, a mulher continua muda, a olhar, de mãos no queixo, um ponto invisível na cara da noite escura. Mais alguns momentos transcorrem. Como quem pensa alto, Presidente fala, de novo: – Nem que nós havera de se acabar tudinho em boca de cobra ou jacaré, eu juro que não arredo pé daqui pra canto argum. Para onde, então, a gente podia se mudar? Pra murrer de fome na cidade, é mais melhor penar na varja. Pelo meno no verão a gente não véve desinfeliz.

Suspirando fundo, Maria Flor concorda, embora com alguma grosseria: – Não fica pensando bestera, homem. Eu só ia de vez morar na cidade se fosse presa por sordado e levada para o xilindró. Aqui a gente pega bote e dentada de cobra, ferrada de caba, arraia e lacrau. Lá é carro que mata, é bandido que assarta, é ruindade de patrão e ortoridade que só quer os pobre como inleitor, engraxate e lavadeira. Tisconjuro!

Por toda a redondeza, sapos seresteiro e insones continuam a ensaiar, em conjunto, a mesma interminável e áspera sinfonia e o fazem como quem raspa fundo de cuia com caco de vidro: – Crrrrôooo!... Crrrrôooo!... Crrrrôooo!...

Como contraponto ao monótono coral, uma rês faminta, ou agonizante, faz a segunda voz lá na maromba: – Muuuuuú!...

Dando um tapa no próprio rosto, como autoflagelação, mas, em verdade, esfarelando um carapanã impertinente, Antônio confidencia, enquanto atira a bagana do cigarro dentro do rio: – Eu tô com muita vergonha de ti e dos pirralho, Maria.

Abaixa a cabeça, mas, erguendo-lhe o queixo com as mãos e fitando meigamente os seus olhos, indaga a esposa, com ternura na voz: – Mas por que então, meu bem?

Usada com pouca freqüência, a expressão carinhosa surge no instante psicológico exato. A esperta criatura intuiu rapidamente a razão determinante do incomum desabafo e se sente na feminina obrigação de confortar o seu humilhado e másculo companheiro.

Com a dificuldade visível de quem se esforça querendo vomitar coisa intragável, ele comprime a mão da esposa de encontro ao próprio coração e diz, num sussurro: – Eu churei na ilharga de vocês. E churei como criança. Macho não chora, Maria. Só lagrima.

Lutando para não dar continuidade ao teimoso pranto que já lhe ensopa os olhos amarelados, Maria Flor aperta-lhe fortemente a mão calosa. Não pode dizer nada, ainda. Mas assim que consegue engolir o nó da garganta, segreda-lhe ao ouvido: – Não pensa mais nisso, meu amurzinho. Vergonha é robar e ser marvado. Tú só fez churar a morte tão triste do nosso Tuninho. – Detém-se, engasgada. Mas logo completa, num só fôlego: – Eu inda te quero mais bem dispôs dessa desgraça. Sei que tu é macho pra cachurro, mas tu não deixou de ter um coração bom e amuroso dentro do peito.

E, de rostos unidos, os dois emocionados caboclos ali ficam, durante longos minutos. Na cozinha, o jogo de baralho prossegue, animado, a até uns palavrões já saíram por lá. É preciso, porém, interromper o doce colóquio para servir mais uma rodada de café quentinho aos participantes do velório. Como foi uma criança que morreu, não se bebe cachaça. Só em vigília de adulto os varzeiros gostam de tomar umas duas ou três.

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