sexta-feira, 27 de junho de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 17


– A BOIÚNA –
À sombra de uma vasta mangueira, a roda acaba de organizar-se, com oito componentes. Engolindo o derradeiro pedaço de lambuzante pé-de-moleque e limpando a mão melada na velha calça de mescla, Mingote Pica-pau, um caboclo atarracado e meio bicudo, inicia narrativa da aventura que alega ter vivido: um encontro com a formidável “Cobra Grande” ou “Boiúna”, mito que povoa e aterroriza tantas insônias amazônicas. Pigarreia e começa:

– Nós vinha, eu mais o Raimundo Cuiteua, no batelão “Tira teima”, cheinho de canarana e premembeca. Como vocês sabe, o capim tá cada vez mais escasso e a gente se atrasemo na viagem. O Sol já ia mergulhando ali pras banda do Roçado Alegre e nós atravessava aquela travessia do Marimarituba, com a vela marmente se tufando. O vento tinha quebrado muito e nós andava devagar.

Escarra, dá uma baita cusparada e vai adiante:

– Eu tava comendo na pá do remo umas fagulha de carauaçu muquiado. Aí o companheiro me cutucou e só fez amostrar com o dedo, mais branco que arma penada. Eu virei a cara pra ilharga e o coração velho quis sartar pela buca cheia de peixe e farinha: os faror da bichona faiscava na buca da nuite, como duas disconforme lanterna de carbureto!

– Vute! Então a coisa tava mesmo preta, Mingote! – comenta Catinga-de-mulata. Eu só quero ver como vocês se desembrulharam da desinquietação.

– Mais depressa que relampo, nós sentemo a mão no remo e toquemo pra beira! – continua o varzeiro.

– E a Boiúna tava muito longe? Indaga Antônio Presidente.

– Que nada, seu menino! Tava daqui praquela guiabeira! Nós só tinha começado a travessia e a valença foi essa, porque se a gente já tivesse mais pro meio do rio, eu não tava aqui contando esse causo.

– Égua! Eu me arrupeio tudinho! – confessa Zé Potoca.

– Mas espera aí, sacana, que tu inda não viu nada! Promete o empolgado narrador. – Nós puxemos o batelão até onde nós pôde e se enfinquemo no mato! Fiquemo ali trepado num galho de marizeiro, moroçoca como o diabo, mas a gente nem sentia as porquera, porque o medo era disconforme. Nessas hora não tem macho bom.

– Chega, nesse momento, João Bucheiro, com uma garrafa de cachaça. Mingote interrompe a história e pede: Me dá aí um trago dessa mardita! Deixa eu molhar o gogó pra acabar de contar.

Sorve uns goles no gargalo, enxuga a boca no ombro e retoma a palavra:

– O animarzão veio tomando chegada e fazia umas onda tão arta que jogaram o “Tira teima” lá em terra, como se fusse um barquinho mixuruca. A peste bufava como quinhentus buto junto e os zóio dela deixava dois clarão dentro d’água, iguarzinho como a Lua faz quando foca lá de cima.

Enxuga o suor da testa e revela: – Só de me alembrar, inda me dá tremedera, e toda essa varja velha sabe que eu nunca fui fruxo. Nem de visage eu não curro. Mas a gente pensar que pode ser engulido vivinho...Credo!

– Eu tô nessa idade e nunca, até o dia de huje, achei macho pra Cobra Grande – interrompe, solidário, Antão Aquiqui.

Mas Pica-pau ainda tem o que contar:

– A Lua tinha saído e nós enxergava direitinho as marmota da eguona da cobra. Quando ela mergulhava, fazia um funir iguarzinho de terra caída, num espumaceiro dos diabo! Mas o que nós achamo mais pior mesmo, de parar o coração, foi os esturro da mardita Boiúna dos inferno. Ela dava, de vez em quando, uns ronco tão medonho que o Cuiteua me disse, baixinho: – Mingote, se sangue é fedurento, eu tô muito ferido.

A turma, tensa, nem sequer consegue rir da pilhéria e o herói do Marimarituba explica:

– Coitado do parceiro! Inda mais fruxo do que eu pra essas arrumação que derruba quarquer caboco, ele não agüentou o tamanho do susto e sujou tudinho o carção. Pensava que era sangue...

– E como é que acabou o causo? – interrompe Zé Potoca, impaciente para contar a sua experiência.

– Bom. Nós fiquemo ali tremendo e rezando no tuco do pau e a desgraçada fincando o pé: mergulhava e buiava... Parecia que ela queria brincar de assombrar nós e não tinha pressa de ir de vorta pra casa. Passou umas três hora naquela sem-vergonhice, até que arresorveu ir passear. Com o fugo da Lua foi que nós vimo o monstro tudinho brilhando, de pupa à prua.

– Deu pra carcular o tamanho dela? – indaga Paulo Cascudo.

– Menino, o bichão foi saindo pra fora, como navio do Lóide que desatraca do porto da cidade. Deu um bordo e tomou o rumo do meio do rio. Pra ninguém dizer que eu tô mentindo, eu dou o tamanho da Boiúna por baixo: era uma cobra aí pruns trinta metro! Por Deus do Céu e Nossa Senhora!

– E vocês fizeram logo dispôs a travessia? – pergunta Antão.

– Que nada, mano! – replica o outro. – Nós fiquemo no marizeiro matando moroçoca e sofrendo frio até o dia butar a venta de fora. Aí nós atravessemo a travessia, ulhando pra tudo lado. Vute! Deve tá pra aparecer outra notícia de que a diabona butou outros cabuco pra correr por aí.

Sem respeitar o supersticioso silêncio que emudeceu o grupo, Zé Potoca abre logo o bico grosso. Embalado por alguns aperitivos, está tinindo de eloquência:

– Dizque eu sou potoqueiro. Mas dessa vez tá aqui na minha ilharga o meu padrinho, que tem mais raiva de mentira do que de trairambóia. Eu e ele vimo esse causo de pertinho.

– Mas, então, conta direito! – adverte, sério, Antônio. Não vai enfeitar o periquito.

– Não se avexe, meu padrinho – pede o crioulo. – Nas hora das coisa séria esse nego aqui não brinca, não.

E começa:

– Nós tava fazendo um puxirum, lá no Paraná de Baixo, na fazenda do seu Vivico Maracanã. Faz uns seis ano.

Atira um punhado de paçoca na bocarra, engole rapidamente e prossegue:

– Nós era uns vinte macho e fazia broca pra uma baita prantação de maniva. Pudia ser umas nove hora da manhã quando a gente ouvimo o primeiro ronco. Foi um negócio feio: “Uuuuuuú!”... Como não tinha barranco no lugar, não dava pra nós mardar que aquilo era terra caída. Os caboco todo, descunfiado, pararam de derrubar o pau e arrumar cuivara.

– O Vivico era mais ruim que mamona em jejum – lembra Antônio. Ruim e pão duro. Quando ele dava uma cibalena prum curumim, ele amarrava uma linha de costura na píula. Assim que passava a dur do dente, o miserave puxava o fio e guardava o remédio pra utra vez...

– A caipirada ri e o preto retoma a narrativa:

– É. O bandidão era tão suvino que a gente só trabalhava se ele pagasse tudo adiantado. Quando ele já vinha dar bronca em nós porque nós tava parado, ouvimo outro esturro, mais perto e mais feio:

“Uuuuuuú!”...

O negro abre inteiramente a boca, amarra a cara e arregala os olhos graúdos, tentando uma cômica imitação do aterrador e soturno rugido. Depois, readquire embalagem:

– Foi aí que o seu Vivico sentiu que aquela peste era mesmo a tar de Cobra Grande atravessando o mato. Disse pra gente largar depressa as foice e os machado, pra pegar os pau-de-fugo que ele guardava no barracão da farinhada. Nós fumo lá e arrumemo quatro cartuchera, dois rifle 22 e muita munição. Meu padrinho puxou logo o revorvi dele, um baita dum 38 que ele comprou dum gringo.

– Agora que se arrupeia su eu – confessa Catinga-de-mulata. Eu sempre tive medo pai-d’égua de Boiúna.

Prestigiado pelo aparte, Potoca vai adiante, entusiasmando-se a cada frase:

– Quando nós escutemo o terceiro esturro, a bichona já vinha saindo do matagar, pois ela tava querendo passar dum lago pru rio. E era aquele escangalho de pau quebrando e bicho correndo pra tudo canto!

Emocionado à simples lembrança do assombroso episódio e vendo que o rapaz não exagera ao relatá-lo, apesar das biritas ingeridas, Presidente mete-se na conversa:

– Eu nunca mais quero ver coisa iguar nessa minha vida, seus menino! Foi um tiroteio medonho, com bala e cartucho pipocando pra tudo lado! Os caboco armado era bom de pontaria e acertaram logo na baita cabeça do monstro.

Mesmo tendo respeitado a intervenção sem licença, Potoca não suporta mais a agonia de ficar em silêncio e acrescenta:

– O diabão dava cada besta pinote que botou um jauarizeiro embaixo e urrava como tudos os cão junto!

– Quando a gente vimo que ela tava quase morta – arremata Antônio – os cabra mas macho chegaram perto dela e retalharam a peste com machado e facão. Era uma bichona de trinta e quatro metro bem medido, da grossura de um camburão de carbureto. As presa deu três parmo de tamanho!

– E quando acabou a confusão, nós demo com um caboco estendido no chão – recorda-se Zé. Corremo pra lá e vimo que era o Quixito Coroca, mortinho da sirva! O fruxo morreu de medo, botando o esprito pela bunda, porque tava cheinho de bosta! No outro dia um vaqueiro achu no mato um cocô seco da Boiúna: era da grossura duma panela de cozinhar peixe! Também uma cobrona daquela tinha que ser disconforme em tudo, até na bosta. Olha lá!

O caboclo faz a circunferência das fezes com as mãos, quando o padrinho resolve corrigi-lo, sorrindo: – Tu não havera de esquecer ao menos uma potoca, Zé. A merda do bicho era assim como uma lata de leite em pó, dessa que a gente compramo na cidade.

– Só, meu padrinho?!

– E tu inda acha puco, pira! – rebate o pecuarista, entre as gargalhadas da turma.

– É, eu soube desse causo e... – começa a dizer João Bucheiro, mas é interrompido por uma senhora que chega com quatro meninos. Trata-se de Maria Flor, que convida: – Vumbora, Antônio? Já é mais de meio-dia. Vamo comer a merenda que nós trouxemo, pra não chegar muito tarde lá em casa.

– Levantando-se Presidente, a espanar as calças com as mãos, a roda logo se desfaz: – Até outra vez! – vão dizendo os matutos uns aos outros.

Depois de almoçarem e fazerem uma visita à sepultura de Toninho, os peregrinos reembarcam no “Flô das onda II”. Escurece quando amarram o bote no beiral da residência, na “Fazenda Apuizeiro”, descansados e num estado de espírito traduzido por Maria: – Um dia alegre e feliz como esse paga tudas as desinquietação daqui da varja. Obrigado, Mãezinha do Céu!

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