– O PADRE E O CATEQUISTA –
No jantar, os deliciosos quitutes do gordo peixe-boi ajustaram-se a todos os paladares, pois Maria Flor é cozinheira muito competente. A refeição está quase terminando e, após limpar os lábios com a mão, ela participa a novidade: – O Frei Arnardo teve aqui huje. Chegu na vuadeira dele e veio convidar nós pra Missa, dumingo que vem, lá na capela do Paricatuba. Fazia três mês que ele não podia viajar pra cá, porque anda muito avexado com a enchente.
Lutando para engolir uma reforçada porção de alimento, Antônio toma uns goles de água e concorda: – Tá bom. Nós vamo arrumar um jeito de ir. A gente tá rezando pouco. Só essa ladainha de Nossa Senhora e uns quatro curto dominicar por ano não dá, não.
Maria sempre foi mais piedosa – ou menos relaxada – que o ignorante esposo. Animando-se com sua imediata adesão, ela acrescenta sábios argumentos: – É isso aí. O cristão percisa mesmo ter mais hora de reza do que urubu tem de vôo. Já faz uns uito mês que a gente não sabemo o que é Missa e eu nem me alembro quando nós teve no úrtimo curto dominicar. Vute!
Tosse, expelindo um transviado caroço de farinha e encerra o pequeno sermão: – É por isso que tanta consumição tem pressiguido nós. Se a gente véve de bunda virada pra Deus, Ele também fica de costas pros caboco. – Eu faço minhas reza tuda noite – assegura Zé Potoca, enquanto limpa os dentes com a ponta do garfo. Duvido que esse preto durma sem fazer na testa o sinar da cruz. Portege a gente do cão, de arma penada e de mau ulhado!
– Bem – interfere novamente o dono da casa. Farta nós acertar o jeito de subir lá pro Paricatuba. Que parpite tu dá, Zé?
Antes, porém, que o pensativo afilhado sugira uma alternativa qualquer, Maria Flor propõe: – O seu Romuardo Bicudo, lá do Garapé do Matupiri, tem quatro filho homem. Se nós mandar um recado pra ele, nós arruma dois pra trabalhar dumingo no corte do capim. A gente pagamo eles com peixe-bui sargado e duas garrafa de cachaça, eu sei que eles aceita. São protestante, não querem saber de Missa nem de padre. Mas a religião deles deixa beber cana.
–Mas a senhora é danada mesmo, minha madrinha! – exclama, encantado, o negro Zé Potoca. Eu tava maginando outras bestera, mas nunca ia mardar uma coisa dessa.
Concluindo as confabulações, o patrão elabora o esquema para que se ponha em prática a idéia da engenhosa esposa. Hoje é sexta-feira. Quando voltarem, no sábado, da colheita da forragem, passarão pela fazenda de Romualdo Bicudo.
Não surgem obstáculos. O vizinho (a três quilômetros de distância...) logo se prontifica a ceder os robustos rapazes e também uma filha para vigiar a residência dos amigos. Só não aceita a cachaça, porque mudaram de seita: agora são Testemunhas de Jeová e “os meninos não tenham quarquer viço, além de mulher”. Em lugar da aguardente, Antônio lhes fornecerá um pouco de querosene.
É assim que, às sete da manhã do ensolarado e bendito domingo, o último de maio, a família toda, inclusive o cachorro “Desacato”, sobe o Amazonas no “Flô das onda II”, em direção ao Paricatuba. Um alegre vento geral balança mansamente o barco, pondo risonhos contentamentos nesses corações com várias feridas em início de cicatrização. Ao menos durante um dia, eles estarão livres da desgastante briga com o rio.
Já se concentram umas cem pessoas no grande barracão que funciona como capela de toda a redondeza. Frei Arnaldo Smith, o sacerdote estadunidense, e o catequista Miracildo Coelho serão as estrelas da liturgia. O padre ouve confissões e o caboclo arruma com esmero a mesa onde se há de celebrar a Missa.
Ficando um pouco para trás, Antônio Presidente diz à Zé Potoca, apontando com um bico formado pelos lábios: – Vigia só quem vai ali...
– Eu já vi aquela vaca, meu padrinho – responde, sério, o rapaz.
Trata-se de Mundinha, filha de Mário Catinga-de-mulata, ex-quase-futura noiva do bom crioulo. Dengosa, derreia-se no braço de um matuto com cara de porco-espinho e calça arregaçada de um lado...
Entram no templo. Como já são mais de nove horas, a Eucaristia começará com atraso, pois na fila do improvisado confessionário – uma cadeira anexada a um caixote, que é o genuflexório – esperam diversas pessoas. Para prender as atenções da caboclada inquieta, o catequista passa a ensaiar alguns hinos, puxando os cânticos com uma voz de taboca rachada, porém de irrepreensível afinação.
É impressionante a participação dessa maltratada gente: quase todos, a plenos pulmões, louvam a Deus e à Virgem Maria através das letras singelas e expressivas, adaptadas à sua mentalidade. Isto, no entanto, tem uma explicação: a diocese de Santarém concentra uma das mais notáveis obras catequéticas do mundo católico. Cerca de três mil homens e mulheres, cuidadosamente preparados em cursos regulares, na cidade, substituem os poucos sacerdotes disponíveis, dirigindo o chamado “Culto dominical” de todas as semanas. É uma liturgia em que praticamente só falta a consagração das hóstias. Como a maioria dos varzeiros participa assiduamente dessa assembléias comunitárias, os ribeirinhos sabem de cor as piedosas canções.
Pouco antes das dez horas o padre inicia, finalmente, a celebração. Embora esteja na Amazônia há uma década, o franciscano originário do Texas maneja precariamente o idioma brasileiro. Mas sempre se faz entender pelos simplórios ouvintes das comunidades interioranas que visita, em intermináveis e penosos rodízios apostólicos.
Após a leitura do milagre da multiplicação dos pães, o sacerdote profere uma homilia alusiva às agruras da grande enchente. Diz, em certo instante de entusiasmo: – A cheia é ruim, meus queridos irmãos, não pela vontade de Deus, mas por causa da má vontade dos homens. Se os graúdos quisessem, se fossem eles que sofressem aqui como vocês, logo endireitariam esse rio, dando um jeito de corrigir o seu curso. Vocês teriam mais assistência e esses promesseiros não iriam aparecer na várzea só em véspera de eleições ou quando as desgraças são maiores, como agora, para depois dizerem no rádio e no jornal, que são os salvadores da pátria.
Lá no fundo, uma irreverente intervenção é ouvida por todos: – Tome cuidado, seu padre! O senhô é gringo e cumeça aí a fazer cumício contra o gumverno. Os sordado da polícia acaba encanando o senhô..
Estabelecendo-se um princípio de revoltada algazarra na platéia, Miracildo, o catequista, brada, com voz firme: – Respeita a Casa de Deus, seu bêbado!
Contudo, uns quatro fiéis já vão levando para fora o atrevido aparteante. Trata-se de Bené Gambira, lá do Atumã. Tomou umas antes da Missa e, metido a comunistóide, resolveu ameaçar o franciscano em pleno sermão. Até ao fim do ato litúrgico não ocorre mais nenhum incidente.
Encerrada a celebração, o povo espalha-se pelo imenso terreiro, onde se amontoam bancas de venda de café com bolos, mingaus e “rala-rala”, com gelo trazido na véspera da cidade, e conservado em caixotes com serragem de madeira. Até moleques com tabuleiros de pirulito e paçoca trançam pelo meio dos grupos que já se formam. Aos gritos, eles tentam vender os pobres atrativos.
Não só os meninos, mas, sobretudo, os castigados adultos sempre consideram essas raras e gostosas interrupções de uma rotina aniquiladora, um ameno deleite, que precisa ser devidamente saboreado. E se reúnem a rir, a conversar, comentando a inundação, dividindo esperanças, fazendo as tristezas ficarem menores ao reparti-las em fatias distribuídas entre os irmãos de calvário.
– O Divino Esprito Santo esse ano caiu muito tarde no calendaro – ensina Mário Catinga-de-mulata. É por isso que a gente tamo com essa água disconforme. Mas ontem eu arreparei, não sei se vocês viram: a Lua tava virada pra banda da cidade. É sinar seguro de vazante.
Assentindo com a cabeça, Mingote Pica-pau torce ligeiramente o assunto, embora permanecendo na mesma linha... fluvial: – Transantontem eu e o Raimundo Cuiteua corremo da bichona. – Conta, conta como foi! – pede Zé Potoca, sempre doido por um “causo”. Conta, que dispôs eu sorto a minha.
– Conta, conta, Mingote! – insistem todos, ajeitando-se confortavelmente no chão varrido.
Vão sair as últimas da cobra grande...
Lutando para engolir uma reforçada porção de alimento, Antônio toma uns goles de água e concorda: – Tá bom. Nós vamo arrumar um jeito de ir. A gente tá rezando pouco. Só essa ladainha de Nossa Senhora e uns quatro curto dominicar por ano não dá, não.
Maria sempre foi mais piedosa – ou menos relaxada – que o ignorante esposo. Animando-se com sua imediata adesão, ela acrescenta sábios argumentos: – É isso aí. O cristão percisa mesmo ter mais hora de reza do que urubu tem de vôo. Já faz uns uito mês que a gente não sabemo o que é Missa e eu nem me alembro quando nós teve no úrtimo curto dominicar. Vute!
Tosse, expelindo um transviado caroço de farinha e encerra o pequeno sermão: – É por isso que tanta consumição tem pressiguido nós. Se a gente véve de bunda virada pra Deus, Ele também fica de costas pros caboco. – Eu faço minhas reza tuda noite – assegura Zé Potoca, enquanto limpa os dentes com a ponta do garfo. Duvido que esse preto durma sem fazer na testa o sinar da cruz. Portege a gente do cão, de arma penada e de mau ulhado!
– Bem – interfere novamente o dono da casa. Farta nós acertar o jeito de subir lá pro Paricatuba. Que parpite tu dá, Zé?
Antes, porém, que o pensativo afilhado sugira uma alternativa qualquer, Maria Flor propõe: – O seu Romuardo Bicudo, lá do Garapé do Matupiri, tem quatro filho homem. Se nós mandar um recado pra ele, nós arruma dois pra trabalhar dumingo no corte do capim. A gente pagamo eles com peixe-bui sargado e duas garrafa de cachaça, eu sei que eles aceita. São protestante, não querem saber de Missa nem de padre. Mas a religião deles deixa beber cana.
–Mas a senhora é danada mesmo, minha madrinha! – exclama, encantado, o negro Zé Potoca. Eu tava maginando outras bestera, mas nunca ia mardar uma coisa dessa.
Concluindo as confabulações, o patrão elabora o esquema para que se ponha em prática a idéia da engenhosa esposa. Hoje é sexta-feira. Quando voltarem, no sábado, da colheita da forragem, passarão pela fazenda de Romualdo Bicudo.
Não surgem obstáculos. O vizinho (a três quilômetros de distância...) logo se prontifica a ceder os robustos rapazes e também uma filha para vigiar a residência dos amigos. Só não aceita a cachaça, porque mudaram de seita: agora são Testemunhas de Jeová e “os meninos não tenham quarquer viço, além de mulher”. Em lugar da aguardente, Antônio lhes fornecerá um pouco de querosene.
É assim que, às sete da manhã do ensolarado e bendito domingo, o último de maio, a família toda, inclusive o cachorro “Desacato”, sobe o Amazonas no “Flô das onda II”, em direção ao Paricatuba. Um alegre vento geral balança mansamente o barco, pondo risonhos contentamentos nesses corações com várias feridas em início de cicatrização. Ao menos durante um dia, eles estarão livres da desgastante briga com o rio.
Já se concentram umas cem pessoas no grande barracão que funciona como capela de toda a redondeza. Frei Arnaldo Smith, o sacerdote estadunidense, e o catequista Miracildo Coelho serão as estrelas da liturgia. O padre ouve confissões e o caboclo arruma com esmero a mesa onde se há de celebrar a Missa.
Ficando um pouco para trás, Antônio Presidente diz à Zé Potoca, apontando com um bico formado pelos lábios: – Vigia só quem vai ali...
– Eu já vi aquela vaca, meu padrinho – responde, sério, o rapaz.
Trata-se de Mundinha, filha de Mário Catinga-de-mulata, ex-quase-futura noiva do bom crioulo. Dengosa, derreia-se no braço de um matuto com cara de porco-espinho e calça arregaçada de um lado...
Entram no templo. Como já são mais de nove horas, a Eucaristia começará com atraso, pois na fila do improvisado confessionário – uma cadeira anexada a um caixote, que é o genuflexório – esperam diversas pessoas. Para prender as atenções da caboclada inquieta, o catequista passa a ensaiar alguns hinos, puxando os cânticos com uma voz de taboca rachada, porém de irrepreensível afinação.
É impressionante a participação dessa maltratada gente: quase todos, a plenos pulmões, louvam a Deus e à Virgem Maria através das letras singelas e expressivas, adaptadas à sua mentalidade. Isto, no entanto, tem uma explicação: a diocese de Santarém concentra uma das mais notáveis obras catequéticas do mundo católico. Cerca de três mil homens e mulheres, cuidadosamente preparados em cursos regulares, na cidade, substituem os poucos sacerdotes disponíveis, dirigindo o chamado “Culto dominical” de todas as semanas. É uma liturgia em que praticamente só falta a consagração das hóstias. Como a maioria dos varzeiros participa assiduamente dessa assembléias comunitárias, os ribeirinhos sabem de cor as piedosas canções.
Pouco antes das dez horas o padre inicia, finalmente, a celebração. Embora esteja na Amazônia há uma década, o franciscano originário do Texas maneja precariamente o idioma brasileiro. Mas sempre se faz entender pelos simplórios ouvintes das comunidades interioranas que visita, em intermináveis e penosos rodízios apostólicos.
Após a leitura do milagre da multiplicação dos pães, o sacerdote profere uma homilia alusiva às agruras da grande enchente. Diz, em certo instante de entusiasmo: – A cheia é ruim, meus queridos irmãos, não pela vontade de Deus, mas por causa da má vontade dos homens. Se os graúdos quisessem, se fossem eles que sofressem aqui como vocês, logo endireitariam esse rio, dando um jeito de corrigir o seu curso. Vocês teriam mais assistência e esses promesseiros não iriam aparecer na várzea só em véspera de eleições ou quando as desgraças são maiores, como agora, para depois dizerem no rádio e no jornal, que são os salvadores da pátria.
Lá no fundo, uma irreverente intervenção é ouvida por todos: – Tome cuidado, seu padre! O senhô é gringo e cumeça aí a fazer cumício contra o gumverno. Os sordado da polícia acaba encanando o senhô..
Estabelecendo-se um princípio de revoltada algazarra na platéia, Miracildo, o catequista, brada, com voz firme: – Respeita a Casa de Deus, seu bêbado!
Contudo, uns quatro fiéis já vão levando para fora o atrevido aparteante. Trata-se de Bené Gambira, lá do Atumã. Tomou umas antes da Missa e, metido a comunistóide, resolveu ameaçar o franciscano em pleno sermão. Até ao fim do ato litúrgico não ocorre mais nenhum incidente.
Encerrada a celebração, o povo espalha-se pelo imenso terreiro, onde se amontoam bancas de venda de café com bolos, mingaus e “rala-rala”, com gelo trazido na véspera da cidade, e conservado em caixotes com serragem de madeira. Até moleques com tabuleiros de pirulito e paçoca trançam pelo meio dos grupos que já se formam. Aos gritos, eles tentam vender os pobres atrativos.
Não só os meninos, mas, sobretudo, os castigados adultos sempre consideram essas raras e gostosas interrupções de uma rotina aniquiladora, um ameno deleite, que precisa ser devidamente saboreado. E se reúnem a rir, a conversar, comentando a inundação, dividindo esperanças, fazendo as tristezas ficarem menores ao reparti-las em fatias distribuídas entre os irmãos de calvário.
– O Divino Esprito Santo esse ano caiu muito tarde no calendaro – ensina Mário Catinga-de-mulata. É por isso que a gente tamo com essa água disconforme. Mas ontem eu arreparei, não sei se vocês viram: a Lua tava virada pra banda da cidade. É sinar seguro de vazante.
Assentindo com a cabeça, Mingote Pica-pau torce ligeiramente o assunto, embora permanecendo na mesma linha... fluvial: – Transantontem eu e o Raimundo Cuiteua corremo da bichona. – Conta, conta como foi! – pede Zé Potoca, sempre doido por um “causo”. Conta, que dispôs eu sorto a minha.
– Conta, conta, Mingote! – insistem todos, ajeitando-se confortavelmente no chão varrido.
Vão sair as últimas da cobra grande...
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