quinta-feira, 24 de julho de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 21

– OS POLÍTICOS –
Amanhece. Quatro reses mortas... Incontáveis tronqueiras arrastadas pela infernal ventania noturna atravancam toda a fazenda... Há estragos na maromba do gado... São, esses, alguns dos efeitos perversos da tempestade, acrescidos de outro problema ainda mais inquietante: Niquita, a garota de cinco anos, está com febre alta e já por duas vezes expeliu um vômito escuro, quase negro.

– Essa cunhantã não tá bua, não. Passou a nuite muito desinquieta – diz Maria Flor ao marido.

– Não é nada – assegura Antônio, que resolveu mandar Zé Potoca sozinho, no barco motorizado, para o corte do capim. Quer esperar os políticos, pois o rádio repetiu a notícia de sua vinda, fornecendo o roteiro da viagem.

– Deve ser gripe braba, dessa que tá dando na varja. Perpara um chá forte de limão com alho, sem açucar, e dá pra ela com um melhorar infantir. É tiro e queda.

O caboclo já vai saindo, na montaria, para melhor apreciar a extensão dos desastres da noite, quando é convocado outra vez: – Vem cá, meu bem! A bichinha tá se acabando de vomitar! E vareia o tempo tudo, diz bestera, porque a febrona tá disconforme – anuncia a mãe, afobada e limpando a criança.

Antônio põe sobre as pernas a arquejante enferma, cujos olhos brilhantes giram em órbitas. Percebe que a situação é mesmo grave. Por isso, altera o diagnóstico anterior, garantindo, convicto:

– Essa porquera não é gripe, não. Ela istoporou com aqueles burrifo da chuvada e os gorpe de ar da trivuada. Vento de cima é coisa do cão. Inda tem “piúla contra” aí na lata dos remédio?

– Tem – responde Maria. E vamo dar logo duas pra ela, porque eu também já tava mardando que isso havera de ser mesmo istupor. A molequinha tava sajica e arriou de repente. Foi vento de cima.

Abrindo o vasilhame, o pai apanha dois comprimidos e, pondo água num caneco de alumínio, ajuda a mulher a fazer a doentinha engolir as milagrosas “pílulas contra” – tidas como infalíveis em casos de estupor. Entre espasmos e rebeldias, Niquita acaba deglutindo as bolotas e, com a prostração do esforço, agora sossega, ofegante, no fundo da úmida rede. Parece que dorme.

Presidente retoma a canoa e vai inspecionar a propriedade. Após um bom tempo de verificação, está ajeitando uns esteios na maromba quando ouve o barulho de uma “voadeira”. Olha e vê, rio abaixo, um pequeno barco branco a varar, velozmente, o Amazonas. Com as duas mãos em concha sobre a boca, grita: – Maria, paresque lá venham os homem! Ajeita logo o café!

Em menos de cinco minutos, a moderna lanchinha de fibra de vidro, acionada por um potente motor de cento e quinze cavalos, chega à “Fazenda Apuizeiro”. Conduz seis cidadãos, todos de bermudas e óculos com lentes verdes ou esfumadas. Dando caloroso e simultâneo “Bom dia!” , erguem-se para o desembarque. Da comitiva, os donos da casa reconhecem apenas o vereador Polidoro da Cunha, que providenciara, na cidade, o sepultamento de seu filho Bibito e livrara Zé Potoca da cadeia. O nobre representante do povo apresenta ao casal os ilustres visitantes:

– Aqui estão, Dona Maria Flor e seu Antônio, os emissários do governo estadual e da prefeitura de Santarém. Todos, eles e eu, viemos decididos a resolver de uma vez os problemas de nossos queridos irmãos varzeiros. Temos, inclusive, na caravana, um fotógrafo que documentará tudo para a grande imprensa de Belém.

Apertam-se as mãos, trocam sorrisos. Quando um deles indaga como é que se entra na residência, com o mesmo vestido vomitado e azedo, a patroa explica, apontando a “porta” do teto: – É pelo buraco acolá, seu menino. A gente enxota as galinha e passa, de bunda pra cima.

E os deputados Arcângelo Salvador, líder da augusta maioria na Assembléia Legislativa, Tibúrcio Bondoso, integrante da mesma bancada, dois funcionários municipais, o vereador e o fotógrafo, após fixarem sua embarcação junto à estreira abertura, ridiculamente, de veneráveis fundilhos expostos ao vento da várzea submersa, vão penetrando na habitação. Quando passou o último deles, olhando os companheiros, Arcângelo protesta, de dedo em riste:

– Mas isto é um despropósito intolerável! Não mais consentiremos que seres humanos, detentores de uma alma imortal, desçam a tamanha indignidade. O nosso operoso governador tem condições de resolver, para sempre, a tragédia das enchentes.

– Seu menino, esse seu gumverno dá pau pra maromba? – indaga Maria Flor, de mão no queixo. É só de pau que a gente tamo percisando.

Bem – responde o parlamentar. Nós estamos aqui exatamente para recolher as prioritárias reivindicações de vocês, oprimidos ribeirinhos, mas na véspera de se libertarem eternamente deste inferno. Não se preocupe, madame: a senhora vai receber pelo menos dez dúzias de excelentes tábuas. Também terá medicamentos, hospital, alimentação farta e barata, escolas para os filhinhos, ração balanceada para o gado e... uuuummm!...

O nobre deputado estava pegando ameaçadora embalagem verbal quando se calou subitamente, pôs a mão no ventre e fez uma careta. Após duas massagens no abdome, chama o vereador à parte e lhe cochicha um segredo. Encabulado. Polidoro pergunta ao silencioso Antônio: – Que se faz, seu Presidente? O doutor está com fortes cólicas intestinais e precisa ir logo ao sanitário.

– Xu, galinha! Raimundinho! – chama a cabocla, que logo percebera a enrascada. Leva já, já o seu menino na montaria ali no tuco do pau. Anda que o homem tá avexado pra fazer cocô!

Antes que o pálido líder da maioria se recupere do susto, a prestimosa anfitriã desembrulha rapidamente duas barras de sabão e entrega ao hóspede o grosseiro papel: – Tome pro senhô se alimpar. É só o que nós tem.

Vermelho, visivelmente constrangido, mas puxando a barriga de baixo pra cima, tentando aliviar as dores, Salvador não se pode dar ao luxo de uma negativa: embarca na canoa, escapa de cair e lá se vai para também dar a sua “cusparada” na cara do rio... Outra indignidade incompatível com a sublime transcendência dos seres humanos...

Quando retorna, a pequena enferma convulsiona o sombrio ambiente e Tibúrcio, que é médico, sentencia, depois de examiná-la: – a criança está nas últimas. Contraiu uma enfermidade ainda não diagnosticada, que vem fazendo estragos no Baixo Amazonas. Estranhamente, só atinge uma ou duas pessoas em cada casa. Infelizmente, eu só tenho analgésicos e anti-disentéricos. Vamos ver, porém, se ela toma estas gotas, que aliviam dores e diminuem a febre.

Ao tentarem, no entanto, fazer com que o líquido desça pela garganta da menina, ela se agita com violência e logo após fica imóvel, sem um gesto, sem um arquejo. Auscultando-lhe o coração, fala o doutor, compungido: – O anjinho deixou de sofrer. Meus pêsames.

Não há berreiros escandalosos, mas apenas um pranto discreto. Assim como o trabalho duro enrijece a pele das mãos, as repetidas provações engrossam, calejam, insensibilizam as almas. A mãe chora, baixinho, debruçada sobre o miúdo corpo inanimado. Poucas lágrimas brotam dos olhos de Antônio e se percebe um enorme espanto nos rostos dos três irmãozinhos, incapazes de entender a procissão de desgraças fatais: cobras mataram dois deles e o vômito negro acaba de roubar mais uma das escassas alegrias da “Fazenda Apuizeiro”! E quem é que há de compreender, pobres crianças?

Sem condições sequer para disparar novas promessas, os recém-chegados, aturdidos pela estúpida realidade que os envolveu subitamente, passam a colaborar nas providências para o sepultamento de Niquita lá no Paricatuba. Descerão o rio, mas se comprometem a voltar após o almoço. A lancha “Governador do Povo” ficará, então, ao inteiro dispor da enlutada família.

São dezessete horas quando saem da voadeira, já regressando de mais um enterro, Maria Flor e Presidente. Os políticos vão dormir na cidade para, no outro dia, reiniciarem o histórico e decisivo périclo redentor pela várzea encharcada.

Deus escreve mesmo corretamente pelos mais tortuosos caminhos: foi providencial essa morte cruel sob as vistas estupefatas dos figurões. Esse infernal 1971 entrará na história amazônica sob o estrondoso coro das terríveis maldições que acompanham ao túmulo os grandes malfeitores. Contudo, há de emergir, também, ante a posteridade agradecida, como o último ano em que os ribeirinhos padeceram os martírios de uma inundação. A caravana assegurou, sob palavra de honra, que urgentes, drásticas, revolucionárias e geniais medidas serão tomadas para que nunca mais, nunca mais mesmo uma só lágrima escorra pelo rosto de um caboclo, em decorrência de dores ou privações. Eles todos ainda hão de chorar brevemente, sim, muito brevemente: mas de alegria descontrolada, de comovido agradecimento ao governo, de total felicidade! Quem viver, verá!

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