sexta-feira, 22 de março de 2013

A sabedoria do Barbicha

 Por Célio Simões, Advogado e membro da Academia Paraense de Jornalismo.  
Há alguns anos em nossa Capital, chamada “Cidade das Mangueiras” pelos que a amam e “Terra do Já Teve” pelos seus detratores, havia uma rede de açougues da SOCIPE, sigla da Sociedade da Indústria Pecuária do Pará, também proprietária da Cooperativa dos Fazendeiros.

Sobre essa Cooperativa, um pouco antes de seu falecimento, meu pai esclareceu que fora a mesma formada muitas décadas atrás; e com o escopo de aumentar inicialmente o número de cooperados, sua diretoria viajou pelo interior do Estado, no início dos anos 20, incentivando a aquisição de cotas pelos criadores de gado, das quais seu pai (e meu avô) Capitão João Anastácio de Souza, dono da Fazenda Nava, no Lago Grande da Franca, acabou adquirindo uma.

A loja da Cooperativa demorava-se à Rua Gaspar Viana, esquina com a Tv. Leão XIII e era uma verdadeira festa para os olhos. Tinha de tudo. Finas louças de porcelana, baixelas de prata, conjuntos inoxidáveis, convivendo harmoniosamente nas prateleiras com requintados tecidos, como tafetás, organdis e chamalotes, passando pelo popular morim e a lona vaqueira com que se tecem as velas das canoas, tão ao gosto da população ribeirinha. Também estavam expostos à venda os equipamentos agrícolas de uso nas fazendas. Enxadas, arames lisos e farpados, ferros de cavar, carrinhos de mão, cordas, machados, facões, selas de couro trabalhadas, tarrafas e redes de dormir, enfim, ali vicejava a harmonia dos contrastes, porque o ambiente era um só, com os produtos à espera dos compradores, a maioria deles vindos da Ilha do Marajó, naqueles idos, a grande responsável pelo abastecimento de carne da população belenense.

Nas incontáveis vezes em que lá estive, encontrava sempre um cão vira lata de olhar fixo no movimento dos açougueiros, de quem recebia entre um e outro atendimento, um rebotalho de carne que habilmente abocanhava no ar, mastigava com sofreguidão e voltava à postura inicial, esperando o próximo pedaço, assim saciando a fome. Dois detalhes diferenciavam aquele cachorro dos demais que rondavam o dito açougue. O primeiro era comportamental, eis que não interferia no movimento dos fregueses, era arredio, de índole pacífica. O segundo dizia respeito à sua extravagante anatomia. Pelagem crestada, porte médio pesando em torno de doze quilos, tinha sob o queixo uma tufo de exuberante pelos marrons que lhe valeu o apelido de “Barbicha”. Certa vez, conversando com os empregados, indaguei melhor sobre os hábitos daquele cão, cuja familiaridade com o estabelecimento o tinha transformado num sortudo ganhador de migalhas com que acalmava o estômago. Pensava eu tratar-se de um animal sem dono, entre as centenas que deambulam pelas grandes cidades revirando lixo. A surpresa foi maior quando a gerente Alda esclareceu que sua dona morava quase em frente, porém, em idade provecta e com a saúde abalada, apelara para a caridade dos açougueiros no sentido de alimentar seu bicho de estimação. Revelou também outro detalhe interessante. Ao atravessar a Conselheiro Furtado em busca de seu alimento diário, o Barbicha o fazia rigorosamente na faixa destinada aos pedestres, somente após o sinal de trânsito ficar vermelho, barrando a passagem dos veículos. Fiquei admirado, porém não contestei a revelação que a ser verídica, colocava aquele animal dito irracional em nível superior a muitos humanos que conheço. Parecia conversa de pescador, porém, munido dessas informações, passei a antecipar minha chegada ao açougue, e constatei que o cão realmente aprendera a respeitar as leis do trânsito. Antes do sinal luminoso fechar, ele ficava sentado na calçada, frente à faixa de pedestres, simplesmente esperando o momento oportuno para alcançar o outro lado.

Como recompensa pela escorreita conduta, toda vez que eu o encontrava na loja da SOCIPE mandava fornecer-lhe alguns gramas de carne “de segunda”, de valor irrisório, incluído na minha conta. Até que um dia ele desapareceu. Comentei o fato e obtive a informação que sua dona falecera, não sem antes rogar a todos os funcionários que não deixassem de alimentar o Barbicha. Mas ele nunca mais voltou. Descobriu-se que fora “adotado” pelo proprietário de uma baiúca de venda de caranguejo, situada na mesma Av. Conselheiro Furtado, porém próxima à Serzedelo Corrêa. Realmente foi lá que o vi, estarrado à entrada do minúsculo espaço, no interior do qual um rádio tocava maravilhas musicais dos anos setenta numa emissora local. Conversando com seu novo dono, contou-me o que eu já sabia. O Barbicha era um cão diferente. Não brigava na rua, não reinava com as pessoas, respeitava os sinais de trânsito, fazia duas refeições por dia e adorava música, ouvindo-as com ar de quem está dissecando cada nota lançada ao ar pelo aparelho de som. E realmente lá estava ele, indiferente ao entra e sai dos fregueses, o olhar perdido no muro do cemitério da Soledade, como se presente ali nem estivesse... 
 
O tempo passou. Em determinado sábado relutei em levantar da cama, ainda grogue de sono, porque ficara lendo um livro novo até quase três horas da manhã. Lembrei de vários compromissos adiados para o suposto dia de folga, quando na verdade trabalhamos bem mais, pois todas as pendências da semana tem as soluções reservadas para esse bendito dia. Fiz o desjejum, troquei a roupa e fui até a garagem apanhar o carro. Chave no contato, não consegui dar a partida. Ouvi aquele barulho característico de que a bateria está com infecção generalizada. Essa não! Logo agora! Porteiros e garagistas tentaram fazer pegar no tranco. Nada! Lembrei-me do Pedro, antigo parceiro de futebol e excelente mecânico, dono da “Ponta Grossa”, uma oficina que fica na Passagem Euclides da Cunha, ao lado do restaurante Dom Giuseppe próxima à Mundurucus. Mesmo aporrinhado, como é perto do meu prédio fui andando até lá para adiar o enfarte. Ao chegar, somente o ajudante estava presente, tentando trazer de volta à vida um Fusca que parecia atacado de leishmaniose.

- E o Pedro...?

- Só chega às 9 horas, doutor... Vai dar Remo ou Águia amanhã?

Fiz que nem ouvi.

- Nove horas? A bateria do meu carro pifou e precisa ser trocada.

- O senhor vai ter que esperar. Ele mora em Águas Lindas e vem de ônibus.

Por Deus que está no céu, mas tem dia que de noite é a mesma coisa... Até o vento sopra contra. Águas Lindas situa-se nos confins de Ananindeua, bairro que se formou de uma antiga invasão. De “linda” só tem o nome... E o cara ainda vem com esse papo de futebol! Porém não havia outro jeito senão esperar. O dito ajudante, prevendo a longa espera, ofereceu-me uma cadeira arruinada de tanta ferrugem, na qual me equilibrei receoso, e lá fiquei deixando o tempo escoar...

De repente, confronte à oficina, tomei reparo nas dezenas de pessoas elegantes, distintas na aparência e caprichosas nos trajes, com ares refinados desciam de carrões e entravam num imóvel de impecável arquitetura e florido jardim, no estilo dos que existem no sul dos Estados Unidos, propriedade das famílias endinheiradas. No frontispício, em destacadas letras podia ser lido “IGREJA CRISTÃ MARANATA”. Não sabia bem o que isso significava, porém o acesso de viventes daí a pouco cessou por completo, as portas se fecharam, tendo início um coro de orações e suaves melodias sacras, (tornando evidente tratar-se de um templo) lembrando os ritos dos monges beneditinos, tão sedutoras aos meus ouvidos ultrajados por buzinas de carros, que fiquei torcendo para o Pedro demorar a chegar...

No que olhei para o rumo do Dom Giuseppe, tive involuntário sobrosso. Civilizadamente andando pela calçada no rumo de onde eu estava, lá vinha o Barbicha, pêlo encardido e enxovalhado, causando-me no íntimo o sentimento paradoxal de tristeza pela fealdade de sua aparência e de satisfação que experimentamos ao encontrar um amigo dos velhos tempos. Com seus hábitos morigerados, sentou-se próximo ao portão da oficina e ali ficou ao meu lado em sua pose de asceta, indiferente a quantos passavam ou dele desviavam para não lhe pisar no rabo. Deu-me a impressão que daquela ordem religiosa ele era o mais novo oblato. Não revelei ao ajudante o que eu sabia sobre o cão. Apenas exacerbou minha surpresa sua informação de aos sábados aquele cachorro maltratado e barbudo aparecia por ali, ficava horas ouvindo as canções daquela igreja, absorto e contemplativo, como que inebriado pelos belos e mágicos acordes que inundavam o quarteirão. E ao término do culto simplesmente ia embora, como se nada demais houvesse acontecido.






terça-feira, 19 de março de 2013

CAPAF: Um caso sem precedentes

Por Madson Paz de Souza
Diante de todas as inconsistências presentes nos 53 da CAPAF, no dia 3/10/2011 veio a Intervenção. Naquele momento, emiti matéria neste blog dizendo que a medida ocorria com mais de 18 anos de atraso, porque desde 1993 a SPC/PREVIC já conhecia a situação falimentar da entidade, detalhada em relatório do seu Inspetor Boanerges Cunha, que, na oportunidade recomendava a intervenção como medida legal e indispensável para resguardar os interesses dos participantes da CAPAF.


Do mesmo modo, em 16/02/2012 a PREVIC instituiu Comissão de Inquérito para apurar as causas da intervenção na CAPAF e a responsabilidade dos gestores nessas causas. Mais uma vez me posicionei através de O Mocorongo, dizendo que:

“a PREVIC apenas avançava no processo de Intervenção instada com mais de 18 anos de atraso. Em 93 a Secretaria foi instada pelo seu próprio Inspetor a implantar a intervenção na CAPAF, mas preferiu instituir o Regime de Direção Fiscal, que se arrastou por sete anos, quando, tecnicamente, deveria se encerrar em torno de 90 dias.

Apesar de tudo, nesse longo período, a SPC produziu inúmeros relatórios, tanto do Diretor Fiscal quanto das Equipes de Fiscalização, registrando o que “agora” busca apurar apenas para cumprir as formalidades próprias do regime de Intervenção.”

E não deu outra. Em 8/02/2013, ofício da PREVIC, destinado aos ouvidos pela Comissão de Inquérito, dava conta do arquivamento do relatório final da citada comissão de vez que não havia culpa dos indiciados nas causas que levaram à insolvência do BD e ao déficit do Amazonvida. A decisão da PREVIC considerou, dentre outros, importantes elementos constantes do relatório da Comissão, como: “Os diversos documentos técnicos verificados, tais como relatórios de fiscalização da SPC, de auditores do patrocinador, pareceres de auditores independentes e demonstrações contábeis deixaram clara a antiguidade do déficit da CAPAF. Com base neles se depreende que as causas da intervenção estavam estabelecidas em tempos remotos, destacando-se:

a) Estabelecimento de benefícios e direitos incompatíveis com as bases contributivas para a formação das reservas desde a fundação da Caixa em 1060 ...” ;
b) A responsabilidade de pagamento dos benefícios pela CAPAF para aqueles que passassem à condição de assistidos a partir de 14 de agosto de 1981, estabelecida independentemente da existência de recursos ou estabelecimento de contribuições extraordinárias com vistas a formar as reservas necessárias ... “

Dos trechos citados, resta entendido o reconhecimento do BASA como o responsável pelo estado de calamidade a que chegou a CAPÀF. Afinal, foi o BASA quem instituiu, normatizou e quem, como patrocinador, administrou a CAPARF, ao longo do tempo, através dos seus prepostos designados para as diretorias da caixa de previdência. Mais relevante é que ao reconhecer a responsabilidade do Banco em atribuir à CAPAF a responsabilidade pelos pagamentos dos que viessem a se aposentar depois de 14/08/1981, a Comissão de Inquérito (e a PREVIC), por assim dizer, acabaram admitindo, tacitamente, que deveria o Banco ter se responsabilizado pelo pagamento de todos os que adentraram a CAPAF por força da Portaria 375/69 do responsável pela insuficiência dos recurso necessários ao cumprimento dos benefícios contratados, via BD, junto à CAPAF. Assim, a Comissão (e a PREVIC) chancelaram o entendimento que levou a Juíza Titular da 8ª Vara do TRT/PA a Sentenciar contra o BASA a obrigação de unificar os grupos de aposentados, pré e pós  14/08/1981 e de complementar os recursos faltantes, mês a mês, para que a CAPAF pague todos os benefícios previstos no BD aos seus assistidos.

Enfim, além de afirmar as responsabilidades do BASA na questão CAPAF, a decisão da PREVIC é também uma surda confissão de culpa (por omissão no agir tempestivamente em defesa dos participantes da CAPAF) e, certamente isso terá grande repercussão no julgamento do Recurso de Revista que o BASA encaminhou ao TST na tentativa de reformar a Sentença de Mérito do TRT/PA que hoje garante o pagamento dos benefícios do BD aos aposentados e pensionistas da CAPAF. Basta que o TST tome conhecimento das especificidades da CAPAF e, no caso, do inteiro teor dessa decisão da PREVIC. Cabe à AABA, por seu patrono na causa, o Escritório Castagna Maia, fazer chegar àquele TST esse importante material.

domingo, 17 de março de 2013

A travessia

Por Ademar Ayres do Amaral - jornal Uruatapera
O tempo é um poderoso braço da natureza e uma das coisas mais penosas na vida do ser humano. Pensei muito sobre esse inevitável ente divino que rege todos nós, num dia do verão passado, enquanto curtia um fim de semana com a família no balneário de Alter do Chão. A dura prova que me fez refletir a esse respeito, aconteceu no segundo dia, quando resolvi, por pura babaquice, atravessar a nado o pequeno braço do Tapajós que divide a vila famosa da ponta de areia onde montam as barracas. Quem já passou em Alter do Chão sabe do que eu estou falando. Quem não passou, azar.

Pra dizer a verdade, nada que eu não conhecesse com a palma de todos os meus instintos, em tempos passados. Ribeirinho criado nas barrancas do Paraná da Dona Rosa, eu já nadava como um peixe quando cheguei a Santarém, em 1958, onde passei seis privilegiados anos, estudando e me preparando para a vida no respeitado Colégio Dom Amando. Sem dúvida foi o melhor período da minha adolescência, dos 10 aos 15 anos, a flor da idade e da molecagem irresponsável. Não demorei a me acostumar e me tornar íntimo daquelas águas cristalinas do rio Tapajós, de seus estirões infindáveis de belas praias encantadas, de labirintos e atalhos que não tinham mais segredo.

Todo dia era dia de banho no rio. Eu e meus primos nadávamos naquelas paragens, como se diz, de braçada. Um deles, o Jorge, de tanto nunca sair d´água, ficou marcado pela alcunha de Jorge Peixe, que ele continua carregando com sucesso pela vida afora. Portanto, nossa ligação com aquele Tapajós era uma coisa muito forte, fosse em passeios dominicais pelas praias(a Maria José era nossa preferida) ou nos banhos no antigo trapichinho do Bar Mascote, que deixou de existir quando aterraram a praia da frente para construir aquela praça. Sem deixar de lembrar o tradicional banho vespertino de rio cheio, no minúsculo cais de pedra, o caiszinho, que passava rente à porta do velho Vidal Bemerguy. Lá, numa algazarra animada pela brincadeira do homem rã, todas as tardes nós nos juntávamos às pessoas que apareciam munidas de puçás para garantir lugar na fila para a captura do aviú. Parte dessas doces lembranças já foram contadas em Catalinas e Casarões, uma das minhas aventuras literárias.

Pois bem. Em nosso primeiro dia de Alter do Chão, meu genro, um jovem oficial do exército na plenitude da sua condição física, ao invés de entrar na catraia para atravessar o estreito, resolveu vencer aquele braço de rio a nado, o que fez com tamanha facilidade que me deixou quase morto de inveja. Pensando no menino que eu fui naquelas águas, ainda ameacei segui-lo, mas minha filha e médica de todas as horas, me impediu a travessura.

- Pai, vê se não inventa moda!

Obedeci, porém, no dia seguinte, teimoso como um moleque mimado, deixei de lado os apelos da filha e da mulher e resolvi encarar o desafio. Entrei na água e fui indo, mas com menos de um terço da viagem, comecei a sentir um estranho peso nas pernas que me puxava pro fundo. Era a perversa câimbra. Junto, se apoderou de mim uma dose de horror que ia me fazendo quase perder o controle, não fosse ter encontrado na minha frente uma longa e bendita estaca de amarrar canoa, na qual segurei firme para ganhar forças antes de voltar humilhado ao ponto de origem.

Foi um alívio sentir meu pé tocando na areia do fundo e assim continuei andando até chegar no seco. Na beirada tinha um velho catraieiro que limpava sua canoa de sobrevivência, e ao me ver ainda ofegante, logo percebeu todo o pavor que tinha me atingido.

- Cansou?

- Nem tanto, foi só uma câimbra – menti.

- Fez bem de voltar, não parece aqui da beira, mas aí no meio tem uma correnteza que puxa a gente pro fundo.

- É, acho que o senhor tem razão.

- Mas o pior mesmo é essa tal de câimbra. Semana passada um homem tentou atravessar aqui e sumiu lá no perau. O corpo só boiou uns três dias depois – ele disse.

Por fim, me deu um sábio conselho:

- Chefe, câimbra dá em qualquer idade, é melhor o senhor não tirar o pé da areia...

E foi o que eu fiz até o dia do retorno. Pé sempre na areia e umas costelas de tambaqui para celebrar a vida.

sábado, 9 de março de 2013

Discurso de Ercio Bemerguy, na Sessão da Saudade promovida pela Alas


Confesso que me sinto honrosamente distinguido para prestar, nesta Sessão da Saudade, em nome desta Academia e de meus ilustres confrades, uma homenagem póstuma ao nosso saudoso companheiro Emir Bemerguy, meu querido irmão.

Os seus familiares e certamente as pessoas que tiveram a felicidade de conhecê-lo, sentem muito a falta de Emir, pelo exemplo que deixou de fidelidade aos amigos, de renúncia, de humildade, de simplicidade, de dignidade e determinação em tudo que fez.

Como diz a canção: “dor tão sentida e a saudade dele está batendo em nós”. Mas, somente o tempo será capaz de ir, pouco a pouco, transformando a grande dor da sua ausência em doce e suave saudade.

Quem teve, como Emir, uma vida digna, amando intensamente Santarém e o seu povo, seus familiares e amigos, viverá eternamente em nossa memória, em nossos corações.

Emir foi dentista. Mas exerceu a profissão por 30 anos, apenas para sobreviver, para garantir o sustento de sua família, sendo também necessário, para aumentar um pouquinho mais a sua renda, atuar como professor nos Colégios Dom Amando, Santa Clara e na FIT. Mas, o que lhe dava prazer na vida eram as letras. Era escrever, compor, poetar, versejar...

Deixou, de sua vasta produção intelectual, centenas de poesias, crônicas, 20 livros prontos para serem publicados, enfim, um grande acervo que está sendo guardado e, tenho certeza, será preservado com muito zelo e carinho por sua esposa e seus filhos. Além disso, o meu sobrinho Emirzinho, criou, e está disponível na internet, o blog “ Saudade Perfumada”, para divulgar poemas, crônicas, frases, fotos, textos de livros ainda inéditos, enfim, parte do legado cultural de seu pai. Com o mesmo objetivo, criei, no meu blog “O Mocorongo”, o “Cantinho do Emir”. Estamos, portanto, eu e Emirzinho, satisfazendo um desejo de Emir, relacionado à divulgação de sua obra. Ele escreveu:

“Sei que as criações literárias e artísticas, desde que emergem das fundas abismais de almas torturadas ou alegres, não mais pertencem ao escafandrista de misérias ou quimeras que logrou garimpá-las: incorporam-se ao patrimônio cultural coletivo, por desvaliosas ou geniais que se afigurem aos múltiplos e conflitantes critérios de julgamento. Afinal, em meio aos diamantes esplêndidos há sempre uns vidrilhos ordinários que acabam, entretanto, proporcionando pequenas alegrias a pessoas cujas ambições não ultrapassam modestos limites.

Meus versos, minhas crônicas, meus livros, são esses vidrilhos sem valor, mas que podem, aqui e ali, projetar um raiozinho de luz em alguma vida escura, como o foi a minha, antes do encontro definitivo com o Cristo de todas as claridades.”

Emir encontrou, no seio da Igreja Católica, a fonte límpida para o seu pensamento cristão e a inexaurível inspiração para o seu critério de valores. Fiel ao Evangelho sem tergiversações, tornou-se arauto e mensageiro da doutrina de Cristo, pregando o amor, a paz e a justiça. Ele foi, em vida, a mais pura encarnação da humildade, da bondade e da fé.

Santarém – terra privilegiada na sua maternidade de talentos e virtudes de seus filhos, foi uma das fontes de inspiração dos versos que Emir compunha, sempre louvando, enaltecendo, enfim, externando seu amor e sua paixão pelas belezas da nossa querida Pérola do Tapajós.

Emir não nasceu em Santarém, e sim, em Fordlândia, região do Tapajós, em 04 de março de 1933. Mas, amava, era apaixonado por Santarém, onde viveu durante mais de meio século.

Fruto desse seu amor, dessa sua paixão, nasciam versos como estes:
“Ó minha Santarém, tu me apaixonas
Que maravilha fico eu vendo a sós
O beijo amorenado do Amazonas
Na face verde-azul do Tapajós”
=
Santarém eu te namoro
Tenho imenso amor por ti!
E pergunto por que Deus
Não me fez nascer aqui.
==
Vim de longe, mas agora
Mocorongo sou também!
Quem quiser brigar comigo
Fale mal de Santarém.
=====
==
E é preciso lembrar, citar aqui, uma das mais famosas frases de Emir : “Não permito, senhores, que ninguém goste mais do que eu de Santarém”.
 
Emir aprendeu, desde criança, a procurar a felicidade limitando os desejos em vez de tentar satisfazê-los. E isto ele disse em versos:

“Eu não ligo pra dinheiro,
Nem pro luxo da cidade.
Vivo em paz o tempo inteiro
Com minha felicidade.
==
Não tenho carro, ando a pé,
E digo muito à vontade,
Que de meu só tenho a fé
E a minha felicidade.
==
Vivo bem, sem empecilhos,
Sem riqueza, sem vaidade.
A mulher e os sete filhos
São minha felicidade.

Eu disse, antes, que uma das fontes de inspiração para os poemas de Emir, era Santarém. Mas, é preciso que eu diga, também, e com muita ênfase, que a principal delas, foi a sua esposa Berenice que, pra ele, durante os 58 anos de feliz união conjugal, “não foi propriamente uma mulher, mas uma flor, uma jóia rara, preciosa. Uma gigante que nem chega a ter 1 metro e 60 de altura, mas carrega sentimentos e uma pureza d’alma de dimensões indescritíveis”, como bem a caracterizou o jornalista Paulo Bemerguy, nosso sobrinho.

Não são poucos os poemas que Emir dedicou à Berenice, sua musa inspiradora. Um deles, foi este, denominado Luz que não se apaga:


Tens o costume de indagar, brincando,
Para quem são os versos que componho...
Mas transparece, disfarçado e brando,
Certo ciúme em teu olhar tristonho.
==
Por isso mesmo é que, de vez em quando,
Toda a minh’alma num soneto eu ponho
Para provar que ainda está brilhando
A velha estrela do meu lindo sonho.
==
Se procurares, acharás, dispersos,
Pedacinhos de ti em tantos versos,
Detalhes do teu porte singular.
==

Se for preciso repetir, repito,
E até a Lua escutará meu grito:
Hei de morrer, amor, a te adorar!
==

Mas, ninguém pense que Emir expressava o seu amor, a sua paixão pela Berenice, apenas versejando. Não! Ele também, dedilhando o seu violão, cantava para a sua amada, belas canções. Vamos escutá-lo... (foi reproduzida pelo sistema de som, a voz de Emir, gravada em uma fita K7, cantando a música “Eu sei que vou te amar”)

Lúcio Ercio, um dos filhos do mano Emir, aqui presente, escreveu uma bela crônica sobre a vida e a obra de seu pai e, em um dos trechos, disse:

“O que mais caracterizou a vida de meu pai, é muito grandioso. Estava no coração! Não foi poesia ou pescaria. Não, não foi isso não. Agora, lhes digo então: era ser pai de família, ser honesto e cristão. Ser instrumento de Deus, operário da evangelização. Fez isso todos os dias diante da nossa visão, com o auxílio da Virgem Maria, a Senhora da Conceição!”

Senhores e Senhoras, é tarefa difícil, tentar, como o faço agora, resumir, encurtar as palavras para falar sobre a vida e a obra do nosso homenageado. Neste meu modesto pronunciamento, procurei seguir a recomendação de Fernando Pessoa, ou seja, “Põe o que és no mínimo que fazes”. Falei pouco, talvez, mas, acreditem: esforcei-me ao máximo, procurei falar bem.

Muito obrigado!

sexta-feira, 8 de março de 2013

Discurso de Ercio Bemerguy, na ALAS

Permitam-me iniciar este meu pronunciamento, expressando o meu sincero sentimento de gratidão ao ilustre confrade Hélcio Amaral de Souza, que, com gentis palavras, dirigiu-me generosos elogios, decorrentes, talvez, da nossa sólida e antiga amizade iniciada em sala de aula do nosso querido Colégio Dom Amando.

Prezados confrades, queridas confreiras, senhores e senhoras: Todos aspiramos à imortalidade, senão do corpo, mas da alma. Pelo menos da alma. Nem todos externam esse anseio abertamente, porque é impossível, inalcançável, estranho à condição humana.

Mas vivemos para ter o impossível, para conquistar o inalcançável, para fazer das estranhezas eventos comuns. Tão comuns que poderão até se tornar banais.

A aventura humana tem sido assim: a busca eterna, a ousadia permanente de afrontar situações aparentemente imodificáveis, que ora podem servir apenas para nossos luxos e confortos, ora podem representar a melhoria substancial das condições de vida.

Nós, acadêmicos, não somos imortais. Imortal é o que legamos, é o que deixamos. Nós morremos. Ficam nossas obras.

Nossas vidas murcham e fenecem. Permanecem, em grande parte, os frutos daquilo que semeamos.

Perduram os sonhos que poderão ser edificados, em benefício das gerações que virão no curso de tempos intangíveis.

Esta respeitável, honorável Academia de Letras e Artes de Santarém, à qual agora tenho o orgulho de pertencer, expressa perfeitamente os limites entre a imortalidade e os sonhos.

Aqui, nesta augusta Academia – Suprema Corte da cultura e da inteligência santarenas, nossas referências são homens e mulheres que já se foram, que já nos deixaram.

Nossas referências imortais, que hoje velam por nós na Eternidade, eram mortais. Por isso nos deixaram. Por isso, transformaram-se em saudades.

Seus sonhos, suas obras, as sementes que plantaram, os edificantes exemplos de conduta que nos legaram, esses permanecem e permanecerão. Para todo o sempre.

Lembro, nesse sentido, de Dom Tiago Ryan, Bispo de Santarém e Patrono da cadeira 38, que agora passo a ocupar e que teve como primeiro ocupante Dom Lino Vombommel, também bispo desta Diocese.

Como tantos aqui entre nós, convivi intensamente com Dom Tiago. Tive a ventura de conhecer-lhe os méritos não apenas no que dizia, mas no que fazia.

Dom Tiago fez por Santarém o que muitos santarenos ainda não fizeram por esta Cidade. Amou Santarém como sua terra. E tanto é assim que está sepultado em nosso chão, como se estivesse a regá-lo nas entranhas, com as santas emanações de um espírito límpido e de uma alma elevada como a dele.

Dom Tiago é sonho vivo, é obra perene. Está vivo para sempre.

Lembro, também, de meu irmão Emir Hermes da Cunha Bemerguy, cuja morte pranteamos há pouco mais de três meses.

Eu jamais poderia imaginar que iria sucedê-lo nesta Academia. Jamais poderia imaginar que me sentaria na cadeira que um poeta, um escritor e um cidadão da sua estirpe ocupou.

Falar de Emir Bemerguy, descrevê-lo, mencionar suas obras, dar enlevo aos seus versos e suas prosas, tudo isso, enfim, é muito pouco diante do que ele representou para a cultura santarena e do Estado do Pará.

Emir Bemerguy é aquele que enfrentou espantosas agruras na vida, muitas delas descritas em detalhes no seu livro "Diário de um Convertido". Mas nunca se deixou conspurcar por fraquezas d'alma e por vícios de caráter.

Emir Bemerguy é aquele que pescava ao luar. Ou mesmo às escuras. Pescando, fisgava do fundo dos rios os sonhos que os levaram a transportar-se para poesias que nos fizeram cantar, embalar nossas ilusões. Poesias que, não raro, nos fizeram chorar.

Emir Bemerguy, meu irmão e mestre. Meu amigo, meu ídolo, e um de meus grandes exemplos. Eu nunca haverei de te substituir. Nunca haverei de ser como tu foste. Mas prometo, pelo menos, ocupar com dignidade a cadeira que ultimamente foi tua.

Como Dom Tiago, Emir Bemerguy também é sonho vivo, é obra perene.

Senhoras e Senhores, mais do que nos permitir a sensação de imortalidade, ingressar nesta Academia de Letras e Artes de Santarém nos inspira a convicção de que amar Santarém, mesmo não tendo nascido aqui, como foi o caso de Emir e dom Tiago, é contribuir para firmar esta cidade e esta região como polos irradiadores de cultura.

De minha parte estou certo de que busquei, na medida de minha capacidade, dos meus esforços e dos meios de que dispunha, promover a cultura santarena da melhor forma possível.

Como locutor da Rádio Rural de Santarém e tendo ainda atuado na Televisão Tapajós, apresentei programas que revelaram muitos talentos artísticos, entre cantores, cantoras, músicos, poetas e compositores.

O Programa E-29 Show, que por tantos anos comandei na Casa Cristo Rei, com a participação valiosa de meu parceiro e amigo-irmão Edinaldo Mota, não apenas se tornou um sucesso de público e de audiência enquanto durou, como se consolidou como um canal para dar divulgação aos valores desta terra.

A felicidade de ter contribuído concretamente para elevar a cultura santarena é um sentimento que, devo confessar, me gratifica enormemente. Sei, todavia, que minha missão não está encerrada.

Mesmo afastado do rádio há muitos anos, agora na convivência indescritivelmente prazerosa de minha mulher Albanira, filhos, genros, noras e netos, sinto que posso, ainda, contribuir grandemente, junto com meus colegas acadêmicos, para engrandecer a cultura desta terra tão querida.

É isso, aliás, o que tem sido feito elogiavelmente por esta ALAS, que merece as nossas mais ternas homenagens, os nossos mais sinceros respeitos e o nosso mais decidido apoio por tudo o que tem realizado nestes seus 9 anos de funcionamento.

Senhor Presidente, Senhoras e Senhores, cumpre-me, por justiça, fazer um sincero agradecimento aos acadêmicos que me escolheram para ocupar a vaga decorrente da partida de Emir Bemerguy. De modo especial, agradeço ao confrade Odilson Matos que, generosamente, fez a indicação do meu nome.

A Odilson não me ligam somente laços de amizade, mas de fraternidade. O colega de Banco da Amazônia tornou-se, no curso dos anos, um irmão que junto comigo partilhou a notável experiência de promover valores e talentos por este Tapajós a fora.

Odilson, como eu, também sabe que trabalhar pela dignificação de valores culturais que nos identifiquem com nossa terra, com nossa gente, não é missão fácil, porque nos impõe desafios. Mas é para superar desafios que precisamos viver.

Não fosse assim, não acalentaríamos sonhos, não nos deixaríamos inebriar pela sensação de imortalidade, não lutaríamos para impedir que feneçam as boas obras e para evitar que murchem os imorredouros exemplos.

Que eu possa, com a ajuda, com o entusiasmo, e o apoio  de meus colegas acadêmicos, buscar sempre a construção de sonhos. Até mesmo dos sonhos impossíveis.

É isso que sinceramente almejo. É isso que desejo de coração. É o que peço a Deus e a Nossa Senhora da Conceição, nossa Santa Padroeira.
Muito obrigado.