Por Célio Simões, Advogado e membro da Academia Paraense de Jornalismo.
Há alguns anos em nossa Capital,
chamada “Cidade das Mangueiras” pelos que a amam e “Terra do Já Teve”
pelos seus detratores, havia uma rede de açougues da SOCIPE, sigla da
Sociedade da Indústria Pecuária do Pará, também proprietária da
Cooperativa dos Fazendeiros.
Sobre essa Cooperativa, um pouco antes de seu falecimento, meu pai esclareceu que fora a mesma formada muitas décadas atrás; e com o escopo de aumentar inicialmente o número de cooperados, sua diretoria viajou pelo interior do Estado, no início dos anos 20, incentivando a aquisição de cotas pelos criadores de gado, das quais seu pai (e meu avô) Capitão João Anastácio de Souza, dono da Fazenda Nava, no Lago Grande da Franca, acabou adquirindo uma.
A loja da Cooperativa demorava-se à Rua Gaspar Viana, esquina com a Tv. Leão XIII e era uma verdadeira festa para os olhos. Tinha de tudo. Finas louças de porcelana, baixelas de prata, conjuntos inoxidáveis, convivendo harmoniosamente nas prateleiras com requintados tecidos, como tafetás, organdis e chamalotes, passando pelo popular morim e a lona vaqueira com que se tecem as velas das canoas, tão ao gosto da população ribeirinha. Também estavam expostos à venda os equipamentos agrícolas de uso nas fazendas. Enxadas, arames lisos e farpados, ferros de cavar, carrinhos de mão, cordas, machados, facões, selas de couro trabalhadas, tarrafas e redes de dormir, enfim, ali vicejava a harmonia dos contrastes, porque o ambiente era um só, com os produtos à espera dos compradores, a maioria deles vindos da Ilha do Marajó, naqueles idos, a grande responsável pelo abastecimento de carne da população belenense.
Nas incontáveis vezes em que lá estive, encontrava sempre um cão vira lata de olhar fixo no movimento dos açougueiros, de quem recebia entre um e outro atendimento, um rebotalho de carne que habilmente abocanhava no ar, mastigava com sofreguidão e voltava à postura inicial, esperando o próximo pedaço, assim saciando a fome. Dois detalhes diferenciavam aquele cachorro dos demais que rondavam o dito açougue. O primeiro era comportamental, eis que não interferia no movimento dos fregueses, era arredio, de índole pacífica. O segundo dizia respeito à sua extravagante anatomia. Pelagem crestada, porte médio pesando em torno de doze quilos, tinha sob o queixo uma tufo de exuberante pelos marrons que lhe valeu o apelido de “Barbicha”. Certa vez, conversando com os empregados, indaguei melhor sobre os hábitos daquele cão, cuja familiaridade com o estabelecimento o tinha transformado num sortudo ganhador de migalhas com que acalmava o estômago. Pensava eu tratar-se de um animal sem dono, entre as centenas que deambulam pelas grandes cidades revirando lixo. A surpresa foi maior quando a gerente Alda esclareceu que sua dona morava quase em frente, porém, em idade provecta e com a saúde abalada, apelara para a caridade dos açougueiros no sentido de alimentar seu bicho de estimação. Revelou também outro detalhe interessante. Ao atravessar a Conselheiro Furtado em busca de seu alimento diário, o Barbicha o fazia rigorosamente na faixa destinada aos pedestres, somente após o sinal de trânsito ficar vermelho, barrando a passagem dos veículos. Fiquei admirado, porém não contestei a revelação que a ser verídica, colocava aquele animal dito irracional em nível superior a muitos humanos que conheço. Parecia conversa de pescador, porém, munido dessas informações, passei a antecipar minha chegada ao açougue, e constatei que o cão realmente aprendera a respeitar as leis do trânsito. Antes do sinal luminoso fechar, ele ficava sentado na calçada, frente à faixa de pedestres, simplesmente esperando o momento oportuno para alcançar o outro lado.
Como recompensa pela escorreita conduta, toda vez que eu o encontrava na loja da SOCIPE mandava fornecer-lhe alguns gramas de carne “de segunda”, de valor irrisório, incluído na minha conta. Até que um dia ele desapareceu. Comentei o fato e obtive a informação que sua dona falecera, não sem antes rogar a todos os funcionários que não deixassem de alimentar o Barbicha. Mas ele nunca mais voltou. Descobriu-se que fora “adotado” pelo proprietário de uma baiúca de venda de caranguejo, situada na mesma Av. Conselheiro Furtado, porém próxima à Serzedelo Corrêa. Realmente foi lá que o vi, estarrado à entrada do minúsculo espaço, no interior do qual um rádio tocava maravilhas musicais dos anos setenta numa emissora local. Conversando com seu novo dono, contou-me o que eu já sabia. O Barbicha era um cão diferente. Não brigava na rua, não reinava com as pessoas, respeitava os sinais de trânsito, fazia duas refeições por dia e adorava música, ouvindo-as com ar de quem está dissecando cada nota lançada ao ar pelo aparelho de som. E realmente lá estava ele, indiferente ao entra e sai dos fregueses, o olhar perdido no muro do cemitério da Soledade, como se presente ali nem estivesse...
Sobre essa Cooperativa, um pouco antes de seu falecimento, meu pai esclareceu que fora a mesma formada muitas décadas atrás; e com o escopo de aumentar inicialmente o número de cooperados, sua diretoria viajou pelo interior do Estado, no início dos anos 20, incentivando a aquisição de cotas pelos criadores de gado, das quais seu pai (e meu avô) Capitão João Anastácio de Souza, dono da Fazenda Nava, no Lago Grande da Franca, acabou adquirindo uma.
A loja da Cooperativa demorava-se à Rua Gaspar Viana, esquina com a Tv. Leão XIII e era uma verdadeira festa para os olhos. Tinha de tudo. Finas louças de porcelana, baixelas de prata, conjuntos inoxidáveis, convivendo harmoniosamente nas prateleiras com requintados tecidos, como tafetás, organdis e chamalotes, passando pelo popular morim e a lona vaqueira com que se tecem as velas das canoas, tão ao gosto da população ribeirinha. Também estavam expostos à venda os equipamentos agrícolas de uso nas fazendas. Enxadas, arames lisos e farpados, ferros de cavar, carrinhos de mão, cordas, machados, facões, selas de couro trabalhadas, tarrafas e redes de dormir, enfim, ali vicejava a harmonia dos contrastes, porque o ambiente era um só, com os produtos à espera dos compradores, a maioria deles vindos da Ilha do Marajó, naqueles idos, a grande responsável pelo abastecimento de carne da população belenense.
Nas incontáveis vezes em que lá estive, encontrava sempre um cão vira lata de olhar fixo no movimento dos açougueiros, de quem recebia entre um e outro atendimento, um rebotalho de carne que habilmente abocanhava no ar, mastigava com sofreguidão e voltava à postura inicial, esperando o próximo pedaço, assim saciando a fome. Dois detalhes diferenciavam aquele cachorro dos demais que rondavam o dito açougue. O primeiro era comportamental, eis que não interferia no movimento dos fregueses, era arredio, de índole pacífica. O segundo dizia respeito à sua extravagante anatomia. Pelagem crestada, porte médio pesando em torno de doze quilos, tinha sob o queixo uma tufo de exuberante pelos marrons que lhe valeu o apelido de “Barbicha”. Certa vez, conversando com os empregados, indaguei melhor sobre os hábitos daquele cão, cuja familiaridade com o estabelecimento o tinha transformado num sortudo ganhador de migalhas com que acalmava o estômago. Pensava eu tratar-se de um animal sem dono, entre as centenas que deambulam pelas grandes cidades revirando lixo. A surpresa foi maior quando a gerente Alda esclareceu que sua dona morava quase em frente, porém, em idade provecta e com a saúde abalada, apelara para a caridade dos açougueiros no sentido de alimentar seu bicho de estimação. Revelou também outro detalhe interessante. Ao atravessar a Conselheiro Furtado em busca de seu alimento diário, o Barbicha o fazia rigorosamente na faixa destinada aos pedestres, somente após o sinal de trânsito ficar vermelho, barrando a passagem dos veículos. Fiquei admirado, porém não contestei a revelação que a ser verídica, colocava aquele animal dito irracional em nível superior a muitos humanos que conheço. Parecia conversa de pescador, porém, munido dessas informações, passei a antecipar minha chegada ao açougue, e constatei que o cão realmente aprendera a respeitar as leis do trânsito. Antes do sinal luminoso fechar, ele ficava sentado na calçada, frente à faixa de pedestres, simplesmente esperando o momento oportuno para alcançar o outro lado.
Como recompensa pela escorreita conduta, toda vez que eu o encontrava na loja da SOCIPE mandava fornecer-lhe alguns gramas de carne “de segunda”, de valor irrisório, incluído na minha conta. Até que um dia ele desapareceu. Comentei o fato e obtive a informação que sua dona falecera, não sem antes rogar a todos os funcionários que não deixassem de alimentar o Barbicha. Mas ele nunca mais voltou. Descobriu-se que fora “adotado” pelo proprietário de uma baiúca de venda de caranguejo, situada na mesma Av. Conselheiro Furtado, porém próxima à Serzedelo Corrêa. Realmente foi lá que o vi, estarrado à entrada do minúsculo espaço, no interior do qual um rádio tocava maravilhas musicais dos anos setenta numa emissora local. Conversando com seu novo dono, contou-me o que eu já sabia. O Barbicha era um cão diferente. Não brigava na rua, não reinava com as pessoas, respeitava os sinais de trânsito, fazia duas refeições por dia e adorava música, ouvindo-as com ar de quem está dissecando cada nota lançada ao ar pelo aparelho de som. E realmente lá estava ele, indiferente ao entra e sai dos fregueses, o olhar perdido no muro do cemitério da Soledade, como se presente ali nem estivesse...
O
tempo passou. Em determinado sábado relutei em levantar da cama, ainda
grogue de sono, porque ficara lendo um livro novo até quase três horas
da manhã. Lembrei de vários compromissos adiados para o suposto dia de
folga, quando na verdade trabalhamos bem mais, pois todas as pendências
da semana tem as soluções reservadas para esse bendito dia. Fiz o
desjejum, troquei a roupa e fui até a garagem apanhar o carro. Chave no
contato, não consegui dar a partida. Ouvi aquele barulho característico
de que a bateria está com infecção generalizada. Essa não! Logo agora!
Porteiros e garagistas tentaram fazer pegar no tranco. Nada! Lembrei-me
do Pedro, antigo parceiro de futebol e excelente mecânico, dono da
“Ponta Grossa”, uma oficina que fica na Passagem Euclides da Cunha, ao
lado do restaurante Dom Giuseppe próxima à Mundurucus. Mesmo
aporrinhado, como é perto do meu prédio fui andando até lá para adiar o
enfarte. Ao chegar, somente o ajudante estava presente, tentando trazer
de volta à vida um Fusca que parecia atacado de leishmaniose.
- E o Pedro...?
- Só chega às 9 horas, doutor... Vai dar Remo ou Águia amanhã?
Fiz que nem ouvi.
- Nove horas? A bateria do meu carro pifou e precisa ser trocada.
- O senhor vai ter que esperar. Ele mora em Águas Lindas e vem de ônibus.
Por Deus que está no céu, mas tem dia que de noite é a mesma coisa... Até o vento sopra contra. Águas Lindas situa-se nos confins de Ananindeua, bairro que se formou de uma antiga invasão. De “linda” só tem o nome... E o cara ainda vem com esse papo de futebol! Porém não havia outro jeito senão esperar. O dito ajudante, prevendo a longa espera, ofereceu-me uma cadeira arruinada de tanta ferrugem, na qual me equilibrei receoso, e lá fiquei deixando o tempo escoar...
De repente, confronte à oficina, tomei reparo nas dezenas de pessoas elegantes, distintas na aparência e caprichosas nos trajes, com ares refinados desciam de carrões e entravam num imóvel de impecável arquitetura e florido jardim, no estilo dos que existem no sul dos Estados Unidos, propriedade das famílias endinheiradas. No frontispício, em destacadas letras podia ser lido “IGREJA CRISTÃ MARANATA”. Não sabia bem o que isso significava, porém o acesso de viventes daí a pouco cessou por completo, as portas se fecharam, tendo início um coro de orações e suaves melodias sacras, (tornando evidente tratar-se de um templo) lembrando os ritos dos monges beneditinos, tão sedutoras aos meus ouvidos ultrajados por buzinas de carros, que fiquei torcendo para o Pedro demorar a chegar...
No que olhei para o rumo do Dom Giuseppe, tive involuntário sobrosso. Civilizadamente andando pela calçada no rumo de onde eu estava, lá vinha o Barbicha, pêlo encardido e enxovalhado, causando-me no íntimo o sentimento paradoxal de tristeza pela fealdade de sua aparência e de satisfação que experimentamos ao encontrar um amigo dos velhos tempos. Com seus hábitos morigerados, sentou-se próximo ao portão da oficina e ali ficou ao meu lado em sua pose de asceta, indiferente a quantos passavam ou dele desviavam para não lhe pisar no rabo. Deu-me a impressão que daquela ordem religiosa ele era o mais novo oblato. Não revelei ao ajudante o que eu sabia sobre o cão. Apenas exacerbou minha surpresa sua informação de aos sábados aquele cachorro maltratado e barbudo aparecia por ali, ficava horas ouvindo as canções daquela igreja, absorto e contemplativo, como que inebriado pelos belos e mágicos acordes que inundavam o quarteirão. E ao término do culto simplesmente ia embora, como se nada demais houvesse acontecido.
- E o Pedro...?
- Só chega às 9 horas, doutor... Vai dar Remo ou Águia amanhã?
Fiz que nem ouvi.
- Nove horas? A bateria do meu carro pifou e precisa ser trocada.
- O senhor vai ter que esperar. Ele mora em Águas Lindas e vem de ônibus.
Por Deus que está no céu, mas tem dia que de noite é a mesma coisa... Até o vento sopra contra. Águas Lindas situa-se nos confins de Ananindeua, bairro que se formou de uma antiga invasão. De “linda” só tem o nome... E o cara ainda vem com esse papo de futebol! Porém não havia outro jeito senão esperar. O dito ajudante, prevendo a longa espera, ofereceu-me uma cadeira arruinada de tanta ferrugem, na qual me equilibrei receoso, e lá fiquei deixando o tempo escoar...
De repente, confronte à oficina, tomei reparo nas dezenas de pessoas elegantes, distintas na aparência e caprichosas nos trajes, com ares refinados desciam de carrões e entravam num imóvel de impecável arquitetura e florido jardim, no estilo dos que existem no sul dos Estados Unidos, propriedade das famílias endinheiradas. No frontispício, em destacadas letras podia ser lido “IGREJA CRISTÃ MARANATA”. Não sabia bem o que isso significava, porém o acesso de viventes daí a pouco cessou por completo, as portas se fecharam, tendo início um coro de orações e suaves melodias sacras, (tornando evidente tratar-se de um templo) lembrando os ritos dos monges beneditinos, tão sedutoras aos meus ouvidos ultrajados por buzinas de carros, que fiquei torcendo para o Pedro demorar a chegar...
No que olhei para o rumo do Dom Giuseppe, tive involuntário sobrosso. Civilizadamente andando pela calçada no rumo de onde eu estava, lá vinha o Barbicha, pêlo encardido e enxovalhado, causando-me no íntimo o sentimento paradoxal de tristeza pela fealdade de sua aparência e de satisfação que experimentamos ao encontrar um amigo dos velhos tempos. Com seus hábitos morigerados, sentou-se próximo ao portão da oficina e ali ficou ao meu lado em sua pose de asceta, indiferente a quantos passavam ou dele desviavam para não lhe pisar no rabo. Deu-me a impressão que daquela ordem religiosa ele era o mais novo oblato. Não revelei ao ajudante o que eu sabia sobre o cão. Apenas exacerbou minha surpresa sua informação de aos sábados aquele cachorro maltratado e barbudo aparecia por ali, ficava horas ouvindo as canções daquela igreja, absorto e contemplativo, como que inebriado pelos belos e mágicos acordes que inundavam o quarteirão. E ao término do culto simplesmente ia embora, como se nada demais houvesse acontecido.