quinta-feira, 20 de março de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 3

- O REPIQUETE -
Garoto ainda, Zé Potoca – José Serrão Repolho – veio da “Fazenda Vento Fresco” para morar com os padrinhos. Sendo o sexto filho de uma tribo com nada menos de catorze componentes, os pais enfrentam tremendos obstáculos na manutenção da assustadora prole. Por isso, distribuíram quatro rebentos entre os compadres mais chegados, como se faz com os vira-latas.

Espadaúdo e ativo, o comunicativo negro recebeu o apelido por ser especialmente ligado aos “causos” extravagantes. Basta engolir duas doses de cachaça para que a fantasia entre em órbita e a língua se lhe solte numa roda de caboclos. E tem início uma procissão de histórias engraçadas ou arrepiantes, em que podem sair coisas assim:

– Visagem? Ora, pitomba! Eu sou preto deste jeito de tanto ver alma penada. Mas eu juro que até hoje nunca achei lobisomi que me botasse pra correr. – Da um murro no próprio peito robusto e garante: – Um macho como eu não sabe o que é essa tar de fruxura. Não faz dois mês que eu dei uma parmada na bunda duma mula sem cabeça, que esprementou me assustar ali na capoeira da Raimunda Goiaba. – Crédulos, alguns matutos escutam, sérios, a façanha, enquanto outros insultam, entre gargalhadas, o farofeiro narrador: – Larga de ser mentiroso, nego sem-vergonha! Se tu desse mesmo de cara com um filhotinho de mula sem cabeça, tú saía doido, pondo fumaça pela pupa, que nem ferro de engomar, desses de carvão. – Zé Potoca, no entanto, não se ofende e... conta mais uma.

O linguajar dessa gente – esclareça-se – é assinalado por certos vícios que se prestam a impiedosas gozações, sendo clássica certa anedota que corre o Baixo Amazonas.

Conta-se que, aludindo às curiosas permutas de letras, sobre as quais ouvira referências antes de chegar à Pérola do Tapajós, como é conhecida a bela cidade de Santarém, um visitante pergunta a um humilde transeunte: – É verdade que o povo desta região costuma trocar o L pelo R, o O pelo U e, às vezes, também o U pelo O ? – Fechando a carranca, o caboclo, responde: – Isso é mardade. É um aboso. Nem tudo o puvo fala assim, mas só argumas pessuas.

Está atrasado o repiquete neste ano. A sonora palavra refere-se ao primeiro sinal de que o rio vai encher ou vazar novamente. A grande maré que prenuncia a inundação coincide, tradicionalmente, com o Dia de Finados. Parece uma espécie de sinistro lembrete das mortais desgraças que se poderão abater sobre as várzeas, com o descomunal inchaço das águas.

Com o repiquete de novembro, o Amazonas fornece a advertência inicial, o aviso prévio de que já está providenciando a engorda de si mesmo. Previne os interessados que vem tomando as competentes vitaminas e reúne energias para não falhar no furioso nocaute com que planeja pôr no chão, em miserável estado, a atrevida gentinha que ousa desafiá-lo, invadindo os seus domínios. Todavia, como a exceção que legitima as regras, a escrita não funcionou até agora, coisa que raramente acontece. Já amanheceu o dia dezessete de novembro e...nada! A alma cabocla sempre se alegra com o retardamento, que pode constituir um animador indício de enchente pequena. Ainda assim, na história das calamidades regionais, existem negros precedentes aconselhando moderação na euforia.

Entretanto, ao voltar da beira do rio, à tardinha, conduzindo uma lata com água para o consumo doméstico, Zé Potoca anuncia, espalhafatoso: – Meu padrinho! Minha madrinha! Molecada! Taí o repiquete e chegou com força! – Vivendo e morrendo em função do Amazonas, a família se alvoroça ante a decisiva notícia. Todos – de Antônio ao cachorro “Desacato”– saem correndo para a margem do rio, a quase oitenta metros da residência. E comprovam que cinco palmos lineares de terra foram inundados pela maré da Lua cheia.

A partir do repiquete, ninguém sabe o que o bichão Amazonas irá fazer. Ele poderá vazar ainda um pouco, permanecer quieto por alguns dias ou logo prosseguir tufando como baiacu cheio de vento. Seja qual for a imprevisível alternativa, os espíritos se preparam, com grande confiança na Mãe do Céu. Contudo, mesmo crendo e rezando, por medida de segurança eles esperam o pior: uma baita inundação. É que quando a gente aguarda a infelicidade, ela dói menos.

A comentar a ocorrência tão importante e temerosa para todos, a família retorna ao lar. Como a tarde já vai morrendo de puro cansaço, providencia-se o recolhimento do gado. Já se entoa o divinal prelúdio que inaugura uma lindíssima noite de verão tropical. Os primeiros carapanãs afinam as maviosas rabecas para a infalível sinfonia noturna de uma nota só.

Raros momentos podem fazer tanto bem à alma exausta, como um crepúsculo estival numa fazenda amazônica. Há um acúmulo tão harmonioso de lindezas no céu, e cá embaixo, no campo, é que se percebe, invisível, mas presente, a mão do Mágico Artista a tanger multicores passarinhos para ocultos refúgios no coração do matagal. Cigarras parecem espremer-se, na vesperal cantiga vagabunda: – Tché!...Tché!...Tché!...

Centenas de garças branquejam o jatobazeiro, a disputar, trocando picadas, os melhores galhos para a travessia da noite. Esquadrilhas de periquitos tagarelas, bandos de ariscas marrecas e grupos de mimosos tangarás – vermelhos como gotas de sangue borrifadas contra o céu suavemente azul – buscam abrigo, floresta adentro... E, acrescentando uma pitada de melancolia mansa ao encanto celestial dessa hora de prece, uma juruti solitária apunhala o peito saudoso de quem escuta a sua queixa triste de amor viúvo...

As sombras envolvem lentamente o mundo e aquele tresmalhado socó-boi repete o monótono refrão – o único que o Supremo Programador lhe ensinou, nas manhãs iniciais do Gênesis: – Bum!...Bum!...

Mas, prostituindo o silêncio que desce sobre a paisagem à medida em que as aves emudecem, reboa pela vastidão verdejante o prosaico aboio de Zé Potoca, estimulando reses retardatárias: – Ecú!...Ecú!... Malicioso e escondido na selva, o eco repete, qual moleque traquinas, só a última sílaba do grito, como se fizesse questão de chamar à suja realidade os líricos sonhadores...

Tão insuportavelmente magnífica está a Lua cheia, nesta noite de repiquete, que o próprio Antônio Presidente, concluído o jantar e agasalhadas as crianças, resolve fazer algo incomum, que acontece apenas em instantes muito especiais como este, em que a vida está em paz e o repiquete chegou com quinze dias de atraso.

Sentado no alpendre, com Maria Flor e o afilhado, o pecuarista apanha o violão, que hoje raramente sai da parede. Espana a poeira, começa a afinar o instrumento e previne: – Eu sabia pontear até a “Gota de lágrima” e arranhava uns pedaço do “Hino Nacionar”. Esqueci tudo. Agora só me alembro duns pequeno acorde daquela varsa do Orlando Sirva. – Dá algumas notas e começa a cantar, baixinho: – A sofrer de um punhar/ Foi teu adeus pra mim...

Pendendo ternamente a cabeça no ombro do rude seresteiro e fitando, de olhos brilhantes, a Lua encantadora, diz Maria Flor, quase num sussurro: – Nesse mundo não pode existir felicidade mais maior do que esta nossa. Os curumins tão sadio, o gado gordo, o jutar bonito... – Pára um instante, ouvindo umas notas do pinho e termina: – A única dificurdade que a gente temo agora é aqueles dois bico de galinha que tão com gugo. Mas Nossa Senhora vai botar elas boazinha!

Reverente e emocionado, Antônio silencia o violão, dá um beijo no rosto da esposa, puxando-a para mais pertinho. Deitado de costas no assoalho, Zé Potoca intervém, de olhar fixo no céu: – Meu padrinho! – Hum? – A “Rádio Rurar”, de Santarém, disse que uns cara foram lá na Lua e vortaram de vorta com um saco cheinho de pedra. É certo? – Dizque é. Mas eu não acredito nessas bobage. – responde Presidente, querendo cortar a conversa. – Eu também não, meu padrinho – replica o crioulo. – Mas não é muito longe não, porque eu já tenho arreparado que quando a Lua bóia do chão ela sai logo ali detras da Ilha do Japiim. – E conclui, espetando o dedo no rumo do esplendido astro: – Mas mardando que se os caboco chegasse mesmo lá, São Jorge arrebentava eles de porrada! Minha avó jura que o santo é vigia da bichona e até dragão ele mata com uma baita zagaia. – Como de hábito, Zé Potoca havia quebrado o fascínio envolvente de uma romântica noite. Sabendo que a tagarelice, uma vez iniciada, não teria hora para acabar, Antônio preferiu propor à mulher e ao xerimbabo que se recolhessem. Afinal, tinham um bom chamariz (ou espantalho?) para o sono: o repiquete que chegara.

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