sexta-feira, 14 de março de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 2

- ENTRE COIVARAS E EMBIARAS -
Antônio dos Santos Benevides é tido, nestas redondezas, como um homem que se arrumou na vida. Mais alto que o comum dos nativos, forte e quase imberbe, possui um sinal marrom, do tamanho de uma pequena moeda, logo abaixo da orelha direita. Moreno claro, simpático, sua cabeleira pixaim denuncia presença de antigos escravos na árvore genealógica. Detalhe interessante: seus traços fisionômicos fazem lembrar o famoso rosto de Getúlio Vargas, fato que atraiu sobre si, na juventude, a lógica alcunha de “Presidente”. O apelido que, aliás, sempre o lisonjeou, pois fora getulista apaixonado, acabou se incorporando ao seu prenome e ele nunca mais deixou de ser o Antônio Presidente. Então, aos quarenta e cinco anos, o vistoso pecuarista e agricultor é um caboclo remediado. Nem rico, nem pobre, possui um patrimônio suficiente para manter a família em boas condições.

Antônio comprou a “Fazenda Apuizeiro” ainda nos tempos da primeira esposa, que morreu de tétano, após cinco anos de matrimônio, sem lhe deixar nenhum filho. Quase no meio do percurso entre as cidades paraenses de Santarém e Óbidos, a propriedade já chegou a acumular cerca de trezentas reses. Devido, no entanto, a certas circunstâncias, o criador teve de reduzir o plantel e, a esta altura, tem apenas cento e dez unidades no terreno.

A ampla casa residencial, de madeira caiada e coberta com telhas de barro, obedece ao figurino tradicional na região. Possui alpendre, varandas laterais, quatro quartos, sala de refeições e cozinha. Tarrafas, malhadeiras, selas, espingardas, cordas e remos estão pendurados por toda parte. Um fogão de barro e alguns móveis rústicos completam o cenário doméstico. No compartimento dianteiro da habitação funciona um pequeno comércio de gêneros essenciais. Uma plantação de juta fornece, em épocas normais, perto de quatro toneladas de excelente fibra. Não muito longe do prédio onde se agasalha a família, fica o roçado em que se cultivam, sobretudo, o milho, a macaxeira, a melancia e o jerimum. Já faz vários anos que não se quer saber de maniva (mandioca) na “Fazenda Apuizeiro”. O barracão da ladainha foi palco de incontáveis e suarentas farinhadas, até à hora em que Maria Flor, carregando um panacu de raízes às costas, caiu desastradamente, após uma escorregadela. Como estava com três meses de gestação, abortou, quase morre de hemorragia. Desgostoso, o marido resolveu vender os equipamentos – forno, tipiti e o resto –, passando a construção a servir de armazém e local de festas. Ele prefere, hoje, comprar farinha a fabricá-la, o que representa, afinal, um suplício a menos entre as torturas impostas pela várzea aos seus ocupantes.

Graças a Deus, desde a calamitosa enchente de 1953, em que Antônio perdeu quase tudo o que tinha, o rio vem se comportando de uma forma que não mais lhe trouxe consideráveis prejuízos. Ocorreram, nesse período, outras águas grandes. Todavia, defendendo-se a tempo, o pequeno criador conseguiu resistir bem à malvadeza do gigante imprevisível. E vai trabucando sempre, habituado a uma batalha constante contra adversários manhosos, potentes e cruéis, de que muito ainda se falará aqui.

Viajando, vez por outra, a Santarém, no bote acionado por um motor de popa com doze cavalos-de-força, lá, na importante cidade, Presidente se reabastece do necessário para tocar a vida. É esse o “remediado” típico do Baixo Amazonas: um homem que, em muitas civilizadas áreas do mundo, não seria jamais catalogado sequer na classe média. Com suas modestas posses, mal conseguiria adquirir uma casinha vagabunda num subúrbio distante para, ali, morrer a prestações, com os seus dependentes.

Maria Flor, filha de cearenses, mas nascida e criada na várzea, é uma benção no miúdo universo de Antônio. Um metro e meio, clara e bonitinha, já lhe deu seis filhos, mas há dois anos ficou estéril, em conseqüência da remoção cirúrgica de ambos os ovários, portadores de cistos. Despachada e trabalhadora, enfrenta, junto ao marido, qualquer espécie de serviço – do corte de juta à salga de peixe, da “broca” no campo à manutenção do gado na maromba. Com naturais qualidades de liderança, a dinâmica mulher é a alma de tudo na “Fazenda Apuizeiro”. Dando uma boa definição de si mesma, costuma dizer: “Antes de mandar fazer, eu percuro ensinar como é que a gente faz.”

A maior das crianças, já dentro dos doze anos, não freqüenta escola alguma, o que acontece com as outras cinco. Pondo os olhos gateados sobre a visita que veio de Santarém, explica a situação: – Sabe como é, Dona Catita. Nós não temo parente na cidade e a gente véve nessa peleja do diabo pra arrumar a macaxeira de cada dia. Pra sortar um curumim desses lá na casa de quarquer pessua, não dá. Os menino acaba aprendendo vício e vorta pra casa muito luxento, dizendo que não é pra fazer cocô no mato e outras bobage. – Dá uma cusparada no chão, enxota uma galinha e continua: – Até que andu puraqui uma prufessura querendo pôr uma escola aí no barracão da ladainha. Mas cumu ela só falava num tar de “salaro-mimo” – dinheiro pra cachurro, Dona catita! – o Antônio disse pra sirigaita que nós não somo o Banco do Brasir. – E concluiu, já esfregando vigorosamente uma panela tisnada: – Encurtando a conversa: nós somo burro e vamo vivendo bem. E eu nunca vi arguém deixar de ir pro inferno só porque dizque sabe ler esse tar de jornar.

Essa é a mentalidade generalizada nas várzeas amazônicas, ressalvados os casos excepcionais de caboclos que, mesmo analfabetos, tudo fazem para que seus filhos recebam a iluminação do ensino. O meio hostil, entretanto, sempre ofereceu tremendas resistências às tentativas de se clarificarem rudes espíritos até com as luzes mortiças das letras primárias. Dentre outros fatores adversos, as distâncias geográficas engolem eventuais doses de boa vontade, matando, às vezes no nascedouro, esperançosas iniciativas.

O mês de novembro é, no Baixo Amazonas, o tempo das “queimadas”. Praticando a devastadora agricultura itinerante, que herdou dos índios, o varzeiro aproveita o apogeu do verão tropical, preparando a terra para a semeadura dos começos do inverno, que chegará em dezembro. São, esses, dias de tanta fumaça no céu que, ao redor das cinco horas da tarde, o Sol geralmente se mostra como um balão amarelo-avermelhado. Sem risco para os olhos, nele se pode fixar a vista porque o fumaceiro, com vultosa carga de fuligem, atenua poderosamente a claridade ofuscante do astro-rei. Sabe-se, então, nas cidades regionais, que há inúmeras e imensas coivaras ardendo em toda a área, no mais rudimentar e revoltante de todos os métodos de se praticar a lavoura.

Depois de atear fogo ao terreno que escolheu, o caboclo faz a indispensável “broca” – o complemento da limpeza para o plantio. Organiza, finalmente, as coivaras – montes de troncos e galhos não consumidos pelo primeiro fogaréu. Concluído o segundo incêndio, passa a semear. A colheita inicial costuma ser abundante, porque a matéria orgânica incinerada se deposita no solo, aumentando-lhe a fertilidade. Mas tal vantagem é provisória, pois as pesadas chuvas removerão o húmus, fazendo com que a segunda safra seja bem menor que a anterior. A terceira, mal compensará o suor e, por isso, após dois ou três anos de utilização do terreno, o ribeirinho providencia outro roçado, queimando adiante. Há séculos tem sido assim.

Mesmo sendo uma lavoura tão destrutiva, ela tem suas originalidades. Emprega-se como adubo o rebaixamento anual das águas, os vorazes passarinhos substituem os inseticidas e o sistema irrigatório é confiado às chuvaradas incertas. Quando elas não aparecem na época tradicional, o desastre é inevitável. Além disso, essa agricultura primitiva ainda não tem nada a substituí-la, na região. É vital, inclusive, para os centros urbanos, que dela se abastecem.

São três horas da tarde. Em companhia do afilhado Zé Potoca, crioulo de vinte anos, filho do compadre Tomé Presepada, Presidente está arrumando uma vasta coivara. Forcejam, os dois, para pôr abaixo um jauarizeiro torrado pelo fogo, quando recuam, rápidos: ao desabar o que restava da espinhenta palmeira dos igapós, eles enxergam, lá na frente, uma cobra sucuriju de quatro metros, totalmente enrolada num dos mamotes! Por trás do enorme apuizeiro, que dá nome à fazenda, a serpente continua imóvel. Ela vai triturando o petisco em suas infernais engrenagens musculares para, mais tarde e sem pressa alguma, saboreá-lo.

Sem se afobar, por saber que o monstro não sairá dali tão cedo, Antônio ordena ao negro assustado: – Zé, pega o meu pau-de-fugo lá em casa.

Sucuriju com embiara... A temida cobra, enlaçando a presa com um certeiro bote, passa a comprimi-la cada vez mais com os seus terríveis anéis de aço. Quando está assim ocupada, somente um sério ferimento a fará afrouxar as potentíssimas espirais assassinas com que reduz a vítima a um mole feixe de carnes sangrentas e ossos esmigalhados!

Apanhando a cartucheira de cano duplo, calibre vinte, o fazendeiro desfere, com raiva, um par de tiros sobre o convidativo alvo. Atingida na cabeça, a serpente estertora um pouco e... nunca mais pegará embiara alguma.

Reunida a família alvoroçada, os dois homens seccionam o velho inimigo com afiados facões, mas têm o supersticioso cuidado de jogar bem longe dali a cabeça da bichona. Caso não se faça isso, a cobra, de qualquer espécie, ressuscitará porque o corpo se recompõe, juntando as partes separadas. É uma antiga crendice local.

Descourada a rês, salga-se a carne e, como já vai anoitecendo, recolhe-se o gado no curral que fica ao lado da residência. Hoje, no jantar, veremos filé fresquinho no cardápio. Não importa que tenha sido arrancado quase da boca de um dos mais odiados demônios das várzeas. Exatamente por isso, estará ainda mais saboroso.

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