- LADAINHA-DANÇANTE -
Na “Fazenda Apuizeiro” tudo é alvoroço neste colorido anoitecer de 15 de novembro de 1970. Chegou a tão ansiosamente esperada ladainha anual de Nossa Senhora de Nazaré. Os alegres caboclos das cercanias já vão aparecendo, dispostos a uma participação entusiástica no sensacional acontecimento. Tradicionalmente essa festança ocorre a 15 de agosto. Todavia, por causa de um incêndio que matou várias pessoas na véspera do grande evento, neste ano foi adiada por três meses a gostosa confraternização dos ribeirinhos. Seduzidos por um programa com tão irresistíveis atrativos – ardente ladainha seguida de esfogueante arrasta-pé – os moradores vizinhos, envergando os seus melhores (e geralmente únicos) trajes domingueiros, remam, às vezes, horas seguidas para atingir o local do encontro.
Curiosamente, na Amazônia, certas palavras perdem o sentido convencional, adquirindo novos e imprevistos significados. Vizinhos, por exemplo, nas várzeas sem fim, não são apenas os ocupantes de casas próximas, e sim as famílias e os amigos separados uns dos outros até por muitos quilômetros de rio e floresta. Ainda assim, essa gente humilde costuma provar que possui um espírito comunitário bem mais acentuado que o dos grã-finos nas metrópoles. Morando uns sobre os outros, os civilizados usuários dos mais modernos inventos tecnológicos, como o metrô, mal se conhecem de vista – e isso porque ocasionalmente se espremem nos elevadores dos arranha-céus onde vivem sobrepostos.
Começa a escurecer. A bela propriedade de Antônio Presidente e Maria Flor, situada à margem direita do rio Amazonas, abaixo do Paricatuba, no município de Santarém, Estado do Pará, apresenta-se com o porto atravancado por canoas, batelões e barcos motorizados. Rijos vaqueiros, alguns já tresandando a cachaça, ingerida pelo caminho, dengosas mulatinhas, berrantemente pintadas e deixando no ar um cheiro enjoativo que faz lembrar mistura de lança-perfume com óleo de mutamba; senhoras, inclusive gestantes, e crianças. Todo esse povaréu trança, buliçoso, por todos os cantos, compondo uma descontraída algazarra que denuncia interiores regozijos. Alguns convidados ainda vão chegando, a cavalo, das fazendas menos distantes e tudo se acha em ordem para o início das empolgantes atividades.
São bem racionados, em doze meses, os momentos especiais em que a população varzeira pode fugir, por algumas horas, à desigual peleja com a vida madrasta, que tão escassas tréguas lhe concede. Inimigo perverso e covarde, tirano e cínico, o Amazonas é uma espécie de esposa adúltera, adorada pelo traído companheiro. Quanto mais a sem-vergonha apunhala a alma do infeliz e desfibrado consorte, mais apaixonadamente ele a idolatra e menos admite abandoná-la. O varzeiro sabe dos caprichos, das tramas, das crueldades do formidável oceano sem sal. Mas, pelo fato de ele também lhe proporcionar, seja lá como for, os meios de subsistência, vale sempre a pena manter-se fiel a tão volúvel e neurastênico senhor.
O grande barracão de palha e o terreiro onde se reúne o povo foram condignamente ornamentados: piririmas, tajás de inúmeras aparências e bandeirinhas coloridas emprestam ao limpo arraial um risonho ar de feriado, que tanta euforia põe nos corações. Ali está, porém, a verdadeira dona da noitada, a vedete querida que faz os joelhos se dobrarem automaticamente: a Virgem Santíssima, de gesso, com um metro de altura, aprecia o movimento, a faiscar dentro de um novo manto. A roupagem foi tecida, em cintilante lamê azul, por Maricota Bordadeira, uma danada na máquina de costura, que sabe fazer batina de santo, vestido de baile, mortalha e calção de vaqueiro.
Respeitosamente, cada matuto que se aproxima pede a benção à Mãe do Céu e beija uma das muitas fitas que se confundem com as flores, engenhosamente arrumadas desde os cabelos até às sandálias da simpática Senhora de Nazaré. Os músicos terminam de afinar os instrumentos – acordeon, violão, pandeiro e reco-reco. Tudo pronto, vai começar a ladainha, primeira parte da programação.
Foguetões pipocam nas alturas e, como donos da casa, Antônio Presidente e família ficam defronte da imagem, pois lhes cabe o honroso encargo de puxar as simples e decoradas invocações. Entre duas jaculatórias e uma “Ave, Maria”, o conjunto musical ataca um piedoso hino, cantado fervorosamente pela multidão, cujo misticismo se atiça no expressivo estribilho: “Mãe do Céu, Amigona da gente,/ Pede a Deus que nos sarve da enchente!”.
Após meia hora de rezas e cânticos, a ronqueira estoura e garrafas da apreciada caninha “Tenho Fé” são abertas no botequim – um simples quadrado de madeira, no meio do arraial. Com o céu garantido pelas calorosas preces, a caboclada rebolará, a partir de agora, no forró mais quente do ano. Antes, porém, acontece algo muito importante no ritual. Pedindo silêncio para conter a algazarra crescente, Antônio, com o máximo respeito e tomando benção da Virgem, coloca a Santa de cara contra a parede. Completou-se a liturgia e já é permitido sambar, sem beliscantes escrúpulos: posta em sossego, a Advogada dos Aflitos ficou devidamente impedida de “serenar” o baile. Afinal, convenhamos: onde é que se viu alguém ter o atrevimento de dançar na presença da Mãe de Jesus?
Os baiões e carimbós vão fazendo a temperatura subir quase tão depressa como as generosas doses de cachaça que descem pelas gargantas. Até à meia-noite, se não fossem uns dois ou três inofensivos bate-bocas de bêbados, nada teria acontecido para perturbar a normalidade da animadíssima brincadeira. Mas, de repente, um grito suplanta o vozerio do salão: “Vai te apresentar com a tua mãe, cachurro pirento! – É Chiquinha Pipira, uma das mais disputadas morenas da várzea, que acaba de sapecar um tapa nas fuças de João Sucuriju. Sofrendo a desfeita humilhante, o musculoso e embriagado vaqueiro, carregando a jovem como se fosse um fardo de juta, vem lançá-la, porta a fora, em pleno quintal! E o tempo fecha, entre clamores, balbúrdia e palavras não muito civilizadas. Dois irmãos da machucada moça partem, como feras, sobre o cambaleante agressor.
Há, diga-se de passagem, uma característica peculiar à gente varzeira: nas brigas, sejam em festas ou campos de futebol, dificilmente se registra a presença de armas, brancas ou de fogo. Em geral, os caboclos acertam suas diferenças a murros, gravatas e coices, sendo raro conduzirem as temíveis peixeiras dos nordestinos.
À luz indecisa dos quatro candeeiros do barracão, os olhos de Sucuriju, enfrentando a dupla furiosa que o acua, faíscam como diamantes ao clarão da Lua cheia. A peso de seguro trampescos, ele, mesmo alcoolizado, já derrubou um e briga com o segundo quando Antônio Presidente salta pela janela, penetrando no quase deserto recinto. Com agilidade, planta certeiro pontapé no peito do valentão e, ato contínuo, lhe desfere um desses socos suficientes para atirar novilho no chão, pondo as tripas pela boca. Rápido, monta sobre o arruaceiro, pede cordas e, em poucos minutos, está o distinto João Sucuriju convenientemente amarrado. Conduzido ao batelão de Quincas Pereba, logo o sono começará a lhe curtir a bebedeira.
Parece que não há nenhum ferimento grave. Providencia-se emplastro de andiroba para um olho arroxeado. Maria Puxadeira repõe no lugar o dedo mindinho, desmentido, de Chiquinha Pipira, fazendo-lhe, depois, massagens nas costas machucadas com a violenta queda sofrida. E a festança prossegue, com maior entusiasmo, após o forçado intervalo. Em paz, até às seis da manhã. Em paz, sim, desde que só houve, ao terminar o primeiro sururu, mais duas trocas de tabefes e insultos. Isso, entretanto, para os padrões locais, não passa de suportável “enjôo de porre”...
E lá se vão, em cortejos pitorescos, de volta aos lares e às agonias da vida, os exaustos participantes da maravilhosa noitada! No fundo de cada coração, tornando ainda mais amarga a ressaca, desperta, carrancuda e ameaçadora, a brutal certeza: quanto, quanto se terá de trabalhar e sofrer até à outra ladainha-dançante!... Uma eternidade: só em agosto do ano que vem!
Curiosamente, na Amazônia, certas palavras perdem o sentido convencional, adquirindo novos e imprevistos significados. Vizinhos, por exemplo, nas várzeas sem fim, não são apenas os ocupantes de casas próximas, e sim as famílias e os amigos separados uns dos outros até por muitos quilômetros de rio e floresta. Ainda assim, essa gente humilde costuma provar que possui um espírito comunitário bem mais acentuado que o dos grã-finos nas metrópoles. Morando uns sobre os outros, os civilizados usuários dos mais modernos inventos tecnológicos, como o metrô, mal se conhecem de vista – e isso porque ocasionalmente se espremem nos elevadores dos arranha-céus onde vivem sobrepostos.
Começa a escurecer. A bela propriedade de Antônio Presidente e Maria Flor, situada à margem direita do rio Amazonas, abaixo do Paricatuba, no município de Santarém, Estado do Pará, apresenta-se com o porto atravancado por canoas, batelões e barcos motorizados. Rijos vaqueiros, alguns já tresandando a cachaça, ingerida pelo caminho, dengosas mulatinhas, berrantemente pintadas e deixando no ar um cheiro enjoativo que faz lembrar mistura de lança-perfume com óleo de mutamba; senhoras, inclusive gestantes, e crianças. Todo esse povaréu trança, buliçoso, por todos os cantos, compondo uma descontraída algazarra que denuncia interiores regozijos. Alguns convidados ainda vão chegando, a cavalo, das fazendas menos distantes e tudo se acha em ordem para o início das empolgantes atividades.
São bem racionados, em doze meses, os momentos especiais em que a população varzeira pode fugir, por algumas horas, à desigual peleja com a vida madrasta, que tão escassas tréguas lhe concede. Inimigo perverso e covarde, tirano e cínico, o Amazonas é uma espécie de esposa adúltera, adorada pelo traído companheiro. Quanto mais a sem-vergonha apunhala a alma do infeliz e desfibrado consorte, mais apaixonadamente ele a idolatra e menos admite abandoná-la. O varzeiro sabe dos caprichos, das tramas, das crueldades do formidável oceano sem sal. Mas, pelo fato de ele também lhe proporcionar, seja lá como for, os meios de subsistência, vale sempre a pena manter-se fiel a tão volúvel e neurastênico senhor.
O grande barracão de palha e o terreiro onde se reúne o povo foram condignamente ornamentados: piririmas, tajás de inúmeras aparências e bandeirinhas coloridas emprestam ao limpo arraial um risonho ar de feriado, que tanta euforia põe nos corações. Ali está, porém, a verdadeira dona da noitada, a vedete querida que faz os joelhos se dobrarem automaticamente: a Virgem Santíssima, de gesso, com um metro de altura, aprecia o movimento, a faiscar dentro de um novo manto. A roupagem foi tecida, em cintilante lamê azul, por Maricota Bordadeira, uma danada na máquina de costura, que sabe fazer batina de santo, vestido de baile, mortalha e calção de vaqueiro.
Respeitosamente, cada matuto que se aproxima pede a benção à Mãe do Céu e beija uma das muitas fitas que se confundem com as flores, engenhosamente arrumadas desde os cabelos até às sandálias da simpática Senhora de Nazaré. Os músicos terminam de afinar os instrumentos – acordeon, violão, pandeiro e reco-reco. Tudo pronto, vai começar a ladainha, primeira parte da programação.
Foguetões pipocam nas alturas e, como donos da casa, Antônio Presidente e família ficam defronte da imagem, pois lhes cabe o honroso encargo de puxar as simples e decoradas invocações. Entre duas jaculatórias e uma “Ave, Maria”, o conjunto musical ataca um piedoso hino, cantado fervorosamente pela multidão, cujo misticismo se atiça no expressivo estribilho: “Mãe do Céu, Amigona da gente,/ Pede a Deus que nos sarve da enchente!”.
Após meia hora de rezas e cânticos, a ronqueira estoura e garrafas da apreciada caninha “Tenho Fé” são abertas no botequim – um simples quadrado de madeira, no meio do arraial. Com o céu garantido pelas calorosas preces, a caboclada rebolará, a partir de agora, no forró mais quente do ano. Antes, porém, acontece algo muito importante no ritual. Pedindo silêncio para conter a algazarra crescente, Antônio, com o máximo respeito e tomando benção da Virgem, coloca a Santa de cara contra a parede. Completou-se a liturgia e já é permitido sambar, sem beliscantes escrúpulos: posta em sossego, a Advogada dos Aflitos ficou devidamente impedida de “serenar” o baile. Afinal, convenhamos: onde é que se viu alguém ter o atrevimento de dançar na presença da Mãe de Jesus?
Os baiões e carimbós vão fazendo a temperatura subir quase tão depressa como as generosas doses de cachaça que descem pelas gargantas. Até à meia-noite, se não fossem uns dois ou três inofensivos bate-bocas de bêbados, nada teria acontecido para perturbar a normalidade da animadíssima brincadeira. Mas, de repente, um grito suplanta o vozerio do salão: “Vai te apresentar com a tua mãe, cachurro pirento! – É Chiquinha Pipira, uma das mais disputadas morenas da várzea, que acaba de sapecar um tapa nas fuças de João Sucuriju. Sofrendo a desfeita humilhante, o musculoso e embriagado vaqueiro, carregando a jovem como se fosse um fardo de juta, vem lançá-la, porta a fora, em pleno quintal! E o tempo fecha, entre clamores, balbúrdia e palavras não muito civilizadas. Dois irmãos da machucada moça partem, como feras, sobre o cambaleante agressor.
Há, diga-se de passagem, uma característica peculiar à gente varzeira: nas brigas, sejam em festas ou campos de futebol, dificilmente se registra a presença de armas, brancas ou de fogo. Em geral, os caboclos acertam suas diferenças a murros, gravatas e coices, sendo raro conduzirem as temíveis peixeiras dos nordestinos.
À luz indecisa dos quatro candeeiros do barracão, os olhos de Sucuriju, enfrentando a dupla furiosa que o acua, faíscam como diamantes ao clarão da Lua cheia. A peso de seguro trampescos, ele, mesmo alcoolizado, já derrubou um e briga com o segundo quando Antônio Presidente salta pela janela, penetrando no quase deserto recinto. Com agilidade, planta certeiro pontapé no peito do valentão e, ato contínuo, lhe desfere um desses socos suficientes para atirar novilho no chão, pondo as tripas pela boca. Rápido, monta sobre o arruaceiro, pede cordas e, em poucos minutos, está o distinto João Sucuriju convenientemente amarrado. Conduzido ao batelão de Quincas Pereba, logo o sono começará a lhe curtir a bebedeira.
Parece que não há nenhum ferimento grave. Providencia-se emplastro de andiroba para um olho arroxeado. Maria Puxadeira repõe no lugar o dedo mindinho, desmentido, de Chiquinha Pipira, fazendo-lhe, depois, massagens nas costas machucadas com a violenta queda sofrida. E a festança prossegue, com maior entusiasmo, após o forçado intervalo. Em paz, até às seis da manhã. Em paz, sim, desde que só houve, ao terminar o primeiro sururu, mais duas trocas de tabefes e insultos. Isso, entretanto, para os padrões locais, não passa de suportável “enjôo de porre”...
E lá se vão, em cortejos pitorescos, de volta aos lares e às agonias da vida, os exaustos participantes da maravilhosa noitada! No fundo de cada coração, tornando ainda mais amarga a ressaca, desperta, carrancuda e ameaçadora, a brutal certeza: quanto, quanto se terá de trabalhar e sofrer até à outra ladainha-dançante!... Uma eternidade: só em agosto do ano que vem!
Muito gostoso ler essas linhas que nos levam ao saudoso baixo amazonas
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