– O PUXIRUM –
Quando o “Machão do Tapajós” ainda está um pouco distante, porém já reduziu a marcha, Maria Flor e as crianças ouvem um mugido. Estranhando o fato, a cabocla exclama de testa franzida: – Eras! Que marmota é essa? Tem boi vortando de vorta e meu coração bacureja que coisa bua não havera de acontecer nessa viagem.
Com uma lamparina, acompanhada pelos dois filhos maiores, dirigi-se à pequena ponte onde costuma lavar as roupas. Embora bastante fria, a noite ficou limpa e são quse nove horas. O barco já termina a atracação e ninguém, lá de bordo, se manifesta de alguma forma. Impaciente e algo nervosa, a senhora pergunta: – Que foi, gente?! Tá tudo murto aí? Tisconjuro! – Tu já vai saber! – fala, afinal, Antônio. Perpara a tua arma pra notícia mais pior que choque de poraquê.
Desembarcando, cabisbaixo, o marido informa, resumidamente, a esposa sobre o fatídico “pião”. Concluiu a conversa dizendo, resoluto, que vai sustentar perto de setenta animais em cima da maromba, dê no que der, custe o que custar.
A mulher sabe que Presidente é homem de lentas decisões, mas quando as toma e anuncia, elas são irreversíveis, desabe o mundo. Maria Flor é uma dessas criaturas rústicas, iletradas, porém com iluminações repentinas de profunda sensatez e sutileza psicológica. Tendo escutado o abatido companheiro em silêncio, com o rosto fracamente clareado pela oscilante chama da lamparina, ela percebe, num instante, toda a extensão do desastre. E põe de lado a tristeza, compreendendo que é obrigação sua encorajar o esposo arrasado. Por isso, fala com veemência: – Foi duro, sim, mas o mundo não acabou, não, homem! Nós inda tivemo mais sorte que o Noca Mucura que ontem perdeu todo o gado no meio do Amazona, quando o barco virou com aquele temporar danado que caiu. – Animada, dispara a determinação: – Nós vamo é fazer um baita puxirum pra sargar tuda essa carne. Manda o Zé Potoca no “Flô das onda II” avisar os vizinho, que vai aparecer um monte de cabuco pra ajudar a gente! Vamo, vamo, meu bem! Coisa mas pior a gente já passamo e não morremo!
Procurando olhar dentro do porão, Maria pergunta: – Vocês sangraram e tiraram o bucho de tudus? – Ante a resposta afirmativa, conclui, já andando para casa: – Nós temo muito sar aí na quitanda. Se a gente der duro mesmo, nós sargamo tudinha essa sobra do “pião”. Vumbora trabalhar!
Sim. Para tornar um pouco menor o pesado prejuízo, a única alternativa é essa de se atirarem, todos, à formidável faxina de salgar, noite a fora, madrugada adentro, nada menos de onze reses. Vencidos pelo entusiasmo da mulherzinha decidida, os três tripulantes do barco logo se prontificam a colaborar. Fornecendo uma prova imediata de sua boa disposição, reconduzam ao curral os treze animais remanescentes do desastre.
Dentro de uma hora e meia, já chegaram à “fazenda Apuizeiro” cerca de trinta pessoas. São homens e mulheres das cercanias que, tão logo souberam da desgraça ocorrida no Igarapé da Pitanga, largaram tudo e aqui estão, dispostos a fazer o que for necessário. Trouxeram facas, sal, candeeiros, café, farinha e também, naturalmente, umas garrafas de cachaça “Tenho fé”.
O espírito comunitário que vincula, nas alegrias ou nas amarguras, os simplórios e tão humanos caboclos, nesses instantes de angústia maior funciona em sua plenitude. Cada ribeirinho sabe muito bem que amanhã poderá ser a sua vez de pedir socorro aos irmãos, seja na broca do roçado, na farinhada, no corte da juta, no entaipamento do tapiri, na salga de bois mortos ou na armação da maromba. Ningué se recusa, nessas emergências dilacerantes, a dar tudo de si, a repartir o seu pouquinho, porque o estoque de selvagerias do rio é inesgotável e será impiedosamente dividido por todos. É por isso que são sempre concorridos os puxiruns ou mutirões regionais. Trata-se da soma de esforços coletivos em benefício de uma determinada família ou, em certos casos, da comunidade inteira quando se constrói, por exemplo, uma capela, um campo de futebol ou um barracão para festas.
Na parte enxuta do terreiro, arma-se o ambiente para a noturna e suarenta azáfama. Um fogaréu é logo aceso para espantar as muriçocas e o frio, enquanto facas são estridentemente afiadas na pedra de amolar da cozinha. Maria Flor propõe: – Vamo dividir direitinho as faxina, que é pra uns não atrapalhar os outro. – E conversam, repartindo serviços. Alguns são incumbidos do descouramento das reses no próprio convés do “Machão do Tapajós”, que é bastante amplo e tem luz elétrica. A outros caberá conduzir os vários pedaços seccionados para o quintal. Diversos efetuarão a salga, enquanto há quem se ofereça para providenciar o café e, mais tarde, o moquém onde será assada a “merenda” do puxirum.
Após alguns goles de cachaça, já estão os varzeiros metidos até ao pescoço na estafante atividade. E vão saindo as piadas, os “causos” que alegram o ambiente, fazendo com que o próprio Antônio termine rindo e perca a aparência trombuda. Limpando no calcão o trinchante sujo de sangue, diz Mané Carrapato: – É isso aí, cabucada! Eu só conheço duas coisa que bota pobre pra frente. É tupada e pé na bunda! – revela o gaiato, em meio às gargalhadas da turma. Presidente dá também a sua contribuição: – Dizque pobre só alevanta a cabeça quando olha avião que passa avoando. No dia em que ele come peru, um dos dois está doente.
Não podendo ficar sem meter o bedelho, Zé Potoca entra na prosa, atirando em cima de umas tábuas o quarto dianteiro que trouxe do barco: – A vovó diz que pobre só fica gordo quando morre afugado e só come carne quando morde a língua. – Assim, o tempo vai correndo, o cafezinho circula constantemente e o serviço progride muito. Às duas da manhã, Antônio pede uma pausa para a refeição – suculentos nacos de carne moqueada, com farinha e aguardente. O convite é aceito com alegria, porque a fome apertou mesmo.
Suspensos os trabalhos, a conversa mole recrudesce em torno do fogo que estala: – Esse pião de ontem não foi nada – admite Antônio. O finado Totonho Suza, na enchente de 53, tava fazendo uma travessia de quase duzentos boi quando uma ronqueira pipocou, perto dos corno. – Eu me alembro bem disso – testemunha Chico Preto. – Foi um escangalho dos diabo. Morreu quase toda a buiada, deixando o velho maluco – termina o narrador.
A ossuda Rosa Malagueta, de setenta anos, acrescenta: – Eu ajudei naquela baita sarga. Nós era umas cem pessoa, num puxirum como nunca mais eu havera de ver. Mas, seus menino, a gente não demo conta nem da metade dos boi que pegaram. O desinfeliz do Totonho chorava feito curumim. Vute!
Terminada a ceia, recomeça a trabalheira. E quando já se desenham no céu os indecisos rascunhos avermelhados de um novo dia, a tarefa está concluída. Mesmo com a farta distribuição feita por Antônio e Maria Flor aos participantes da empreitada, ainda se teve de espalhar carne por toda parte. A casa inteira e o barracão da ladainha estão trançados de varais, pois não se pode deixar nada ao relento, desde que as chuvas são diárias.
O dono da “Fazenda Apuizeiro” paga ao comandante Marreca o frete da embarcação e, entregando-lhe um paneiro com duas galinhas, pede-lhe que as leve, como presente, ao prestativo Chico Tenório. – E o que o senhor vai fazer com essa carne toda, seu Presidente? – quer saber o embarcadiço. – Daqui pra amanhã eu vendo um bom bucado dela – explica-lhe Antônio. Tô esperando um regatão que sempre pára aqui e paga direitinho. – Olha os próprios pés e reconhece: Eu esquentei a cabeça e me afubei muito no pião. Bem que nós pudia ter pegado mais umas quatro daquelas porqueira afogada. Mas já não adianta a gente se queixar. Deus quis que eu tivesse esse prejuízo e pronto. Já tô conformado.
E agora? Partiram os colaboradores, mas não se pode nem pensar em dormir. É preciso, logo em seguida, deixar a maromba externa inteiramente pronta, pois o Amazonas encheu mais dez centímetros nas últimas vinte e quatro horas. Já está bem perto da residência e o calendário pendurado na parede da quitanda, faz qualquer caboclo da várzea sentir frio na espinha: hoje ainda é o dia 12 de fevereiro! O rio crescerá durante mais três meses, no mínimo.
Com uma lamparina, acompanhada pelos dois filhos maiores, dirigi-se à pequena ponte onde costuma lavar as roupas. Embora bastante fria, a noite ficou limpa e são quse nove horas. O barco já termina a atracação e ninguém, lá de bordo, se manifesta de alguma forma. Impaciente e algo nervosa, a senhora pergunta: – Que foi, gente?! Tá tudo murto aí? Tisconjuro! – Tu já vai saber! – fala, afinal, Antônio. Perpara a tua arma pra notícia mais pior que choque de poraquê.
Desembarcando, cabisbaixo, o marido informa, resumidamente, a esposa sobre o fatídico “pião”. Concluiu a conversa dizendo, resoluto, que vai sustentar perto de setenta animais em cima da maromba, dê no que der, custe o que custar.
A mulher sabe que Presidente é homem de lentas decisões, mas quando as toma e anuncia, elas são irreversíveis, desabe o mundo. Maria Flor é uma dessas criaturas rústicas, iletradas, porém com iluminações repentinas de profunda sensatez e sutileza psicológica. Tendo escutado o abatido companheiro em silêncio, com o rosto fracamente clareado pela oscilante chama da lamparina, ela percebe, num instante, toda a extensão do desastre. E põe de lado a tristeza, compreendendo que é obrigação sua encorajar o esposo arrasado. Por isso, fala com veemência: – Foi duro, sim, mas o mundo não acabou, não, homem! Nós inda tivemo mais sorte que o Noca Mucura que ontem perdeu todo o gado no meio do Amazona, quando o barco virou com aquele temporar danado que caiu. – Animada, dispara a determinação: – Nós vamo é fazer um baita puxirum pra sargar tuda essa carne. Manda o Zé Potoca no “Flô das onda II” avisar os vizinho, que vai aparecer um monte de cabuco pra ajudar a gente! Vamo, vamo, meu bem! Coisa mas pior a gente já passamo e não morremo!
Procurando olhar dentro do porão, Maria pergunta: – Vocês sangraram e tiraram o bucho de tudus? – Ante a resposta afirmativa, conclui, já andando para casa: – Nós temo muito sar aí na quitanda. Se a gente der duro mesmo, nós sargamo tudinha essa sobra do “pião”. Vumbora trabalhar!
Sim. Para tornar um pouco menor o pesado prejuízo, a única alternativa é essa de se atirarem, todos, à formidável faxina de salgar, noite a fora, madrugada adentro, nada menos de onze reses. Vencidos pelo entusiasmo da mulherzinha decidida, os três tripulantes do barco logo se prontificam a colaborar. Fornecendo uma prova imediata de sua boa disposição, reconduzam ao curral os treze animais remanescentes do desastre.
Dentro de uma hora e meia, já chegaram à “fazenda Apuizeiro” cerca de trinta pessoas. São homens e mulheres das cercanias que, tão logo souberam da desgraça ocorrida no Igarapé da Pitanga, largaram tudo e aqui estão, dispostos a fazer o que for necessário. Trouxeram facas, sal, candeeiros, café, farinha e também, naturalmente, umas garrafas de cachaça “Tenho fé”.
O espírito comunitário que vincula, nas alegrias ou nas amarguras, os simplórios e tão humanos caboclos, nesses instantes de angústia maior funciona em sua plenitude. Cada ribeirinho sabe muito bem que amanhã poderá ser a sua vez de pedir socorro aos irmãos, seja na broca do roçado, na farinhada, no corte da juta, no entaipamento do tapiri, na salga de bois mortos ou na armação da maromba. Ningué se recusa, nessas emergências dilacerantes, a dar tudo de si, a repartir o seu pouquinho, porque o estoque de selvagerias do rio é inesgotável e será impiedosamente dividido por todos. É por isso que são sempre concorridos os puxiruns ou mutirões regionais. Trata-se da soma de esforços coletivos em benefício de uma determinada família ou, em certos casos, da comunidade inteira quando se constrói, por exemplo, uma capela, um campo de futebol ou um barracão para festas.
Na parte enxuta do terreiro, arma-se o ambiente para a noturna e suarenta azáfama. Um fogaréu é logo aceso para espantar as muriçocas e o frio, enquanto facas são estridentemente afiadas na pedra de amolar da cozinha. Maria Flor propõe: – Vamo dividir direitinho as faxina, que é pra uns não atrapalhar os outro. – E conversam, repartindo serviços. Alguns são incumbidos do descouramento das reses no próprio convés do “Machão do Tapajós”, que é bastante amplo e tem luz elétrica. A outros caberá conduzir os vários pedaços seccionados para o quintal. Diversos efetuarão a salga, enquanto há quem se ofereça para providenciar o café e, mais tarde, o moquém onde será assada a “merenda” do puxirum.
Após alguns goles de cachaça, já estão os varzeiros metidos até ao pescoço na estafante atividade. E vão saindo as piadas, os “causos” que alegram o ambiente, fazendo com que o próprio Antônio termine rindo e perca a aparência trombuda. Limpando no calcão o trinchante sujo de sangue, diz Mané Carrapato: – É isso aí, cabucada! Eu só conheço duas coisa que bota pobre pra frente. É tupada e pé na bunda! – revela o gaiato, em meio às gargalhadas da turma. Presidente dá também a sua contribuição: – Dizque pobre só alevanta a cabeça quando olha avião que passa avoando. No dia em que ele come peru, um dos dois está doente.
Não podendo ficar sem meter o bedelho, Zé Potoca entra na prosa, atirando em cima de umas tábuas o quarto dianteiro que trouxe do barco: – A vovó diz que pobre só fica gordo quando morre afugado e só come carne quando morde a língua. – Assim, o tempo vai correndo, o cafezinho circula constantemente e o serviço progride muito. Às duas da manhã, Antônio pede uma pausa para a refeição – suculentos nacos de carne moqueada, com farinha e aguardente. O convite é aceito com alegria, porque a fome apertou mesmo.
Suspensos os trabalhos, a conversa mole recrudesce em torno do fogo que estala: – Esse pião de ontem não foi nada – admite Antônio. O finado Totonho Suza, na enchente de 53, tava fazendo uma travessia de quase duzentos boi quando uma ronqueira pipocou, perto dos corno. – Eu me alembro bem disso – testemunha Chico Preto. – Foi um escangalho dos diabo. Morreu quase toda a buiada, deixando o velho maluco – termina o narrador.
A ossuda Rosa Malagueta, de setenta anos, acrescenta: – Eu ajudei naquela baita sarga. Nós era umas cem pessoa, num puxirum como nunca mais eu havera de ver. Mas, seus menino, a gente não demo conta nem da metade dos boi que pegaram. O desinfeliz do Totonho chorava feito curumim. Vute!
Terminada a ceia, recomeça a trabalheira. E quando já se desenham no céu os indecisos rascunhos avermelhados de um novo dia, a tarefa está concluída. Mesmo com a farta distribuição feita por Antônio e Maria Flor aos participantes da empreitada, ainda se teve de espalhar carne por toda parte. A casa inteira e o barracão da ladainha estão trançados de varais, pois não se pode deixar nada ao relento, desde que as chuvas são diárias.
O dono da “Fazenda Apuizeiro” paga ao comandante Marreca o frete da embarcação e, entregando-lhe um paneiro com duas galinhas, pede-lhe que as leve, como presente, ao prestativo Chico Tenório. – E o que o senhor vai fazer com essa carne toda, seu Presidente? – quer saber o embarcadiço. – Daqui pra amanhã eu vendo um bom bucado dela – explica-lhe Antônio. Tô esperando um regatão que sempre pára aqui e paga direitinho. – Olha os próprios pés e reconhece: Eu esquentei a cabeça e me afubei muito no pião. Bem que nós pudia ter pegado mais umas quatro daquelas porqueira afogada. Mas já não adianta a gente se queixar. Deus quis que eu tivesse esse prejuízo e pronto. Já tô conformado.
E agora? Partiram os colaboradores, mas não se pode nem pensar em dormir. É preciso, logo em seguida, deixar a maromba externa inteiramente pronta, pois o Amazonas encheu mais dez centímetros nas últimas vinte e quatro horas. Já está bem perto da residência e o calendário pendurado na parede da quitanda, faz qualquer caboclo da várzea sentir frio na espinha: hoje ainda é o dia 12 de fevereiro! O rio crescerá durante mais três meses, no mínimo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário