– BONS NEGÓCIOS –
São sete horas da manhã. Vai chegando à “Fazenda Apuizeiro” o grande e novo barco denominado “Jutaicica”, que um tripulante imobiliza nos esteios da maromba onde o gado se espreme. Como o rio está sereno, sem ondas que sacolejem a embarcação veloz, pode-se permitir a manobra, sem ameaças de avarias no curral. Havendo interrompido os serviços de carpintaria que reiniciara dentro de casa, Antônio observa a cena, quase tão curioso quanto a família, uma vez que novidades assim animam o ambiente alagado, modorrento e sem graça da várzea.
Silenciando o motor de duzentos cavalos, desembarca um cavalheiro alto, espadaúdo, com uma pasta de couro na mão esquerda. Usa bermudas vermelhas, camiseta branca, de mangas, e sandálias de borracha. Um chapelão de palha, do artesanato santareno, cobre-lhe a cabeça. Mas uma calva se exibe ridicularmente quando, de longe, o desconhecido sujeito retira a proteção e, com toda a cortesia, saúda os moradores, apoiados na cercadura do alpendre: – Salve, salve, amigos! Um maravilhoso dia eu desejo ao distindo casal e aos seus simpáticos filhinhos!
– Bom dia, seu menino! – diz Maria Flor, largando no chão, a chorar, o pimpolho de que extraiu um purulento bicho-de-pé, usando espinho de limoeiro como instrumento cirúrgico, enquanto o sério marido mal sussurra a resposta ao espalhafatoso cumprimento.
Aproximando-se devagar, o bigodudo cidadão pergunta, distribuindo sorrisos: – Que tal? Como vão as coisas por aqui? Tudo bem, não é? – É, seu cuisinha, não pode tá mas melhor – admite Maria, irônica e já implicando com o sujeito. Entretanto, pondo a mão na boca, em forma de concha, resmunga, aborrecida com o desastrado ou cruel zombador: – Eu não sei onde eu tô que não mando logo esse cachurro pra baixa da égua. Aparece lá do inferno pra vim mangar da desinquietação da gente aleia.
Afinal, a se equilibrar como pode sobre a oscilante e bem estreita ponte de tábuas, o homem chega à escada, pede licença para “entrar no palacete” e, estendendo a mão onde cintila um graúdo brilhante em reforçado anel de ouro, apresenta-se: – Sou Raimundo da Silva, comprador da firma “Jesus dos Anjos Ltda”, de Santarém. Tenho enorme prazer em conhecê-los pessoalmente, pois já ouvira as mais elogiosas referências a esta bonita propriedade de vocês.
Maria Flor, que decididamente não simpatizou com a fachada feiosa e algo cínica do indivíduo, vai explodir quando Presidente se antecipa, evitando o terremoto: – Sente nesse tamburete aí. Descurpe que tá meio sujo de tabatinga. Que mar eu pergunte: o que é que o senhô quer da gente? – Bem – fala o forasteiro, acomodando-se sobre o enlameado banquinho e pondo a pasta em cima das pernas cabeludas. Eu vim ver o que se pode comprar por aqui. Minha firma é a mais nova e poderosa exportadora de juta desta região. Mantemos também um grande frigorífico na cidade, onde vendemos carne verde, frangos abatidos e peixes.
Joga a ponta do cigarro dentro d’água e prossegue, sob os olhares atentos de todos: – Gostaria, portanto, de saber que negócio nós podemos fazer. E garanto, de saída, empenhando nisto a minha palavra de homem honrado, que faz da honestidade a sua religião: ninguém – mas ninguém mesmo! – paga tão bem como nós em todo o Baixo Amazonas. Nossa fama anda correndo longe, porque sabemos valorizar esplendidamente a labuta desumana do varzeiro oprimido.
Coçando o sinal do rosto, Antônio Presidente sorri, sem entusiasmo. Gira o braço musculoso num círculo que abrange toda a fazenda e pondera ao discurseiro cidadão: – É, mas o senhô deve saber como as coisa tão. Esse marzão tomou de conta tudinho e é um tempo muito ruim pra gente negociar. – Compreendo perfeitamente, meu irmão – diz Raimundo. A calamidade é geral, não poupa ninguém, mas por isso mesmo é que eu estou aqui, como bom amigo. Quero, acima de tudo, evitar os prejuízos de vocês e de outros agricultores e pecuaristas que ainda visitarei nesta cruzada apostólica pelos pobres.
Até então calada e muito séria, olhando sempre na cara daquele falante embarcadiço, Maria Flor dá um cascudo no menino que ainda choraminga e intervém, de mãos nas cadeiras: – Como então, seu menino? O senhô nem conhecia a gente e já tá murrendo de pena de nós... Essa é bua! Nós não tamo percisando disso, não.
Engolindo em seco, o loquaz viajante investe outra vez: – Ora, ora, não me leve a mal, distinta amiga. Minha empresa é especial, tem um fraco por pessoas carentes. Nossos diretores possuem corações muito maiores que as vis ganâncias dos lucros selvagens. Daí o prestígio que temos em toda parte, como verdadeiros e desinteressados amigos dos pobres ribeirinhos. Não esqueçam que o nosso nome comercial já diz tudo: “Jesus dos Anjos”. Procuramos ser bons como Cristo.
Preocupado com os serviços que o esperam, na ampliação da maromba doméstica, Presidente dá um jeito de abreviar o enjoativo diálogo. Receia também a potência trovejante da mulher, com explosivo sangue cearense a lhe esquentar as veias. Por isso, corta a verborragia do bigodudo: – Tá certo, seu moço, mas nós não temo muita coisa pra vender pro senhor. E pra não perder mais tempo conversando fiado, vamo dar uma ulhada na jutinha que eu tenho e, dispôs, no gado. Que mar pergunte: quanto é que o senhor tá pagando? – Bem, o boi, naturalmente, depende do estado geral. Isto a gente acerta na hora. Quanto à fibra, se for de primeira qualidade, não se preocupe: já lhes assegurei que os nossos excelentes preços matam de raiva a concorrência, sem condições de nos acompanhar – esclarece o “caridoso” homem que pisca um olho para o ressabiado caboclo e garante, rindo: – O senhor vai receber uma bolada de dinheiro de dar inveja à sua vizinhança, seu Antônio!
Saem. Maria Flor vai atrás. No meio da caminhada, Silva escorrega na estiva úmida e despenca, de cara, no lamaçal! Presidente ajuda-o a se levantar, mas a esposa e os garotos, vendo a figura do bonitão, disparam a debochativa gargalhada: – Quá!... Quá!... Quá!...
Vermelho, mais sujo que alma de terrorista, o sujeito tenta recompor-se fazendo gracinha: – Podem rir, porque a coisa foi mesmo divertida. Gente da cidade só vem fazer bobagem no interior.
Limpa-se como pode, esfrega o lenço no rosto, nos braços e se declara recuperado. Chegam ao barracão da ladainha, onde se armazena a juta salva da enchente. Correndo a vista sobre os fardos, o negociante apanha um pouco do produto, esfrega várias vezes os fiapos entre as palmas das mãos e diz, com cara de velório: – É uma pena, meu caro Antônio! O senhor perdeu praticamente toda a sua safra. A gente só vai levar isto para ajudá-los e porque é difícil se encontrar coisa menos ruim por aí, com essa água tão grande. Mas quase tudo é refugo.
A palavra final atingiu Maria Flor como uma bofetada. Com o sangue a lhe ruborizar o rosto, ela rosna, de dentes cerrados: – Refugo? O senhô tá maginando que nós vinhemo mexer com juta só este ano? Seje homem de vergonha ou nós não negoceia coisa arguma, de jeito nenhum, nem um pinto goguento o senhor tira daqui!
Tendo percebido, desde o início, que a malcriada cabocla seria um espinho em sua garganta, Raimundo da Silva reveste-se de toda a paciência. Só de pôr os olhos nos fardos, logo soube que a fibra, embora não seja excepcional, é de boa qualidade. Por isso, fingindo que não ouviu o insulto, dirige-se ao dono da casa, aparentemente mais fácil de ser iludido: – Eu levo todo o seu estoque, amigo Antônio, porque a redução da colheita, devido à enorme enchente, será considerável e a gente precisa aproveitar tudo. Quantos quilos o senhor tem aqui? – Quando nós pesemo a primeira vez, deu novecentus e dezuito – revela o varzeiro, com o chapéu encostado no peito. Mas com as quebra, deve ter diminuído arguma coisa.
– Para não desperdiçarmos tempo, vamos, então, fechar o negócio: eu lhe dou setecentos cruzeiros por tudo, sem pesar novamente, pois me basta a sua palavra, honrada como a minha. Sei que a firma perde dinheiro com esta transação, mas eu estou decidido a não sair daqui sem ajudar meus irmãos que me recebem com tanta fidalguia. – Eu não quero nem saber da sua figadia, mas vá ajudar os desinfeliz assim no inferno! – dispara Maria Flor. Pois olhe, seu cara: nós não lhe entrega essa juta por menos de mir e quinhentus cruzeiro, viu? E tamo com muita pressa, porque o Antônio tem que pelejar na maromba da casa.
– É, seu Raimundo – concorda o marido, meio encabulado com a brabeza da companheira. Nós tamo ruim de vida, eu tenho que pagar umas conta na cidade e comprar madeira, mas o preço do senhô tá muito vagabundo. Assim não dá.
Com a estratégia inteiramente pronta, o escorregadio comprador oferece: – Dou, então, novecentos paus pelo produto. É muito, meu irmãozinho, pois a juta não presta.
– Pois se tá pudre, não presta, deixe ela aí e vá simbora! – metralha a madame. Ninguém convidou o senhô pra butar defeito nas coisa aleia. Inda mas essa! Como nós percisa de dinheiro, vamo acabar logo com essa chatice que tá me enjuando: pague mir e duzentus cruzeiro e mande embarcar essa porquera. Vute! Que peste de homem!
Sorrindo para a zangada senhora, Silva fala-lhe em tom amistoso: – Está fechado o negócio! Mas a minha comadre é fogo mesmo, hein? Deus ainda há de mostrar a vocês como fui generoso. É a primeira vez que “Jesus dos Anjos” paga uma fortuna por juta de inferior gabarito. Mas nunca me arrependi de haver agido com amor cristão.
Já tendo desabafado uma parte de sua raiva e achando, intimamente, que a venda foi boa, Maria vai saindo, calada. Na maromba do gado, outra novela de “puxa-encolhe” se desenrola. Após mais alguns desaforos engolidos, o manhoso comerciante consegue adquirir seis reses, “a olho”, sem levá-las à balança. Ele sabe que o peso fará ultrapassar bastante a importância que, evangelicamente, se dispôs a pagar: seiscentos cruzeiros por cabeça.
Embarcada toda a mercadoria, distribuindo bombons às crianças e abençoando-as, uma a uma, Raimundo da Silva aperta efusivamente as mãos do “formidável casal de arejados pecuaristas” e o garboso barco “Jutaicica” deixa a “Fazenda Apuizeiro”.
Alegres, agora, com a dinheirama em tempos tão bicudos, Presidente, a esposa e os meninos ficam, por alguns minutos, comentando as ocorrências. Riem muito da queda, que consideram merecida, de "seu Mundico", e das "poucas e boas" que ele ouviu de Maria Flor. Depois, voltam à trabalheira normal.
À tardinha, regressando da faina do capim, Zé Potoca diz aos padrinhos que, tendo levado o rádio para se distrair, ouviu a notícia de que já estão pagando, em Santarém, até dois cruzeiros pelo quilo da escassa juta e que a carne aumentou para seis cruzeiros. Na hora das mensagens para o interior, a “Rádio Rural”, de fato, confirma tudo o que o vaqueiro disse: novos preços mínimos entraram em vigor...
Não há nada que se possa fazer ante o esbulho sofrido. Os caboclos foram assaltados dentro de casa. No cocuruto do apuizeiro, um passarinho grita, como se vaiasse: – Bem-te... Bem-te... Bem-te-vi! Bem-te-vi!...
– Vai mangar da tua mãe, cachurro! – berra a dona da casa, tirando o bucho de uma piranha-caju. Porrada em cima de pobre só presta se for grande! Tisconjuro! –
Silenciando o motor de duzentos cavalos, desembarca um cavalheiro alto, espadaúdo, com uma pasta de couro na mão esquerda. Usa bermudas vermelhas, camiseta branca, de mangas, e sandálias de borracha. Um chapelão de palha, do artesanato santareno, cobre-lhe a cabeça. Mas uma calva se exibe ridicularmente quando, de longe, o desconhecido sujeito retira a proteção e, com toda a cortesia, saúda os moradores, apoiados na cercadura do alpendre: – Salve, salve, amigos! Um maravilhoso dia eu desejo ao distindo casal e aos seus simpáticos filhinhos!
– Bom dia, seu menino! – diz Maria Flor, largando no chão, a chorar, o pimpolho de que extraiu um purulento bicho-de-pé, usando espinho de limoeiro como instrumento cirúrgico, enquanto o sério marido mal sussurra a resposta ao espalhafatoso cumprimento.
Aproximando-se devagar, o bigodudo cidadão pergunta, distribuindo sorrisos: – Que tal? Como vão as coisas por aqui? Tudo bem, não é? – É, seu cuisinha, não pode tá mas melhor – admite Maria, irônica e já implicando com o sujeito. Entretanto, pondo a mão na boca, em forma de concha, resmunga, aborrecida com o desastrado ou cruel zombador: – Eu não sei onde eu tô que não mando logo esse cachurro pra baixa da égua. Aparece lá do inferno pra vim mangar da desinquietação da gente aleia.
Afinal, a se equilibrar como pode sobre a oscilante e bem estreita ponte de tábuas, o homem chega à escada, pede licença para “entrar no palacete” e, estendendo a mão onde cintila um graúdo brilhante em reforçado anel de ouro, apresenta-se: – Sou Raimundo da Silva, comprador da firma “Jesus dos Anjos Ltda”, de Santarém. Tenho enorme prazer em conhecê-los pessoalmente, pois já ouvira as mais elogiosas referências a esta bonita propriedade de vocês.
Maria Flor, que decididamente não simpatizou com a fachada feiosa e algo cínica do indivíduo, vai explodir quando Presidente se antecipa, evitando o terremoto: – Sente nesse tamburete aí. Descurpe que tá meio sujo de tabatinga. Que mar eu pergunte: o que é que o senhô quer da gente? – Bem – fala o forasteiro, acomodando-se sobre o enlameado banquinho e pondo a pasta em cima das pernas cabeludas. Eu vim ver o que se pode comprar por aqui. Minha firma é a mais nova e poderosa exportadora de juta desta região. Mantemos também um grande frigorífico na cidade, onde vendemos carne verde, frangos abatidos e peixes.
Joga a ponta do cigarro dentro d’água e prossegue, sob os olhares atentos de todos: – Gostaria, portanto, de saber que negócio nós podemos fazer. E garanto, de saída, empenhando nisto a minha palavra de homem honrado, que faz da honestidade a sua religião: ninguém – mas ninguém mesmo! – paga tão bem como nós em todo o Baixo Amazonas. Nossa fama anda correndo longe, porque sabemos valorizar esplendidamente a labuta desumana do varzeiro oprimido.
Coçando o sinal do rosto, Antônio Presidente sorri, sem entusiasmo. Gira o braço musculoso num círculo que abrange toda a fazenda e pondera ao discurseiro cidadão: – É, mas o senhô deve saber como as coisa tão. Esse marzão tomou de conta tudinho e é um tempo muito ruim pra gente negociar. – Compreendo perfeitamente, meu irmão – diz Raimundo. A calamidade é geral, não poupa ninguém, mas por isso mesmo é que eu estou aqui, como bom amigo. Quero, acima de tudo, evitar os prejuízos de vocês e de outros agricultores e pecuaristas que ainda visitarei nesta cruzada apostólica pelos pobres.
Até então calada e muito séria, olhando sempre na cara daquele falante embarcadiço, Maria Flor dá um cascudo no menino que ainda choraminga e intervém, de mãos nas cadeiras: – Como então, seu menino? O senhô nem conhecia a gente e já tá murrendo de pena de nós... Essa é bua! Nós não tamo percisando disso, não.
Engolindo em seco, o loquaz viajante investe outra vez: – Ora, ora, não me leve a mal, distinta amiga. Minha empresa é especial, tem um fraco por pessoas carentes. Nossos diretores possuem corações muito maiores que as vis ganâncias dos lucros selvagens. Daí o prestígio que temos em toda parte, como verdadeiros e desinteressados amigos dos pobres ribeirinhos. Não esqueçam que o nosso nome comercial já diz tudo: “Jesus dos Anjos”. Procuramos ser bons como Cristo.
Preocupado com os serviços que o esperam, na ampliação da maromba doméstica, Presidente dá um jeito de abreviar o enjoativo diálogo. Receia também a potência trovejante da mulher, com explosivo sangue cearense a lhe esquentar as veias. Por isso, corta a verborragia do bigodudo: – Tá certo, seu moço, mas nós não temo muita coisa pra vender pro senhor. E pra não perder mais tempo conversando fiado, vamo dar uma ulhada na jutinha que eu tenho e, dispôs, no gado. Que mar pergunte: quanto é que o senhor tá pagando? – Bem, o boi, naturalmente, depende do estado geral. Isto a gente acerta na hora. Quanto à fibra, se for de primeira qualidade, não se preocupe: já lhes assegurei que os nossos excelentes preços matam de raiva a concorrência, sem condições de nos acompanhar – esclarece o “caridoso” homem que pisca um olho para o ressabiado caboclo e garante, rindo: – O senhor vai receber uma bolada de dinheiro de dar inveja à sua vizinhança, seu Antônio!
Saem. Maria Flor vai atrás. No meio da caminhada, Silva escorrega na estiva úmida e despenca, de cara, no lamaçal! Presidente ajuda-o a se levantar, mas a esposa e os garotos, vendo a figura do bonitão, disparam a debochativa gargalhada: – Quá!... Quá!... Quá!...
Vermelho, mais sujo que alma de terrorista, o sujeito tenta recompor-se fazendo gracinha: – Podem rir, porque a coisa foi mesmo divertida. Gente da cidade só vem fazer bobagem no interior.
Limpa-se como pode, esfrega o lenço no rosto, nos braços e se declara recuperado. Chegam ao barracão da ladainha, onde se armazena a juta salva da enchente. Correndo a vista sobre os fardos, o negociante apanha um pouco do produto, esfrega várias vezes os fiapos entre as palmas das mãos e diz, com cara de velório: – É uma pena, meu caro Antônio! O senhor perdeu praticamente toda a sua safra. A gente só vai levar isto para ajudá-los e porque é difícil se encontrar coisa menos ruim por aí, com essa água tão grande. Mas quase tudo é refugo.
A palavra final atingiu Maria Flor como uma bofetada. Com o sangue a lhe ruborizar o rosto, ela rosna, de dentes cerrados: – Refugo? O senhô tá maginando que nós vinhemo mexer com juta só este ano? Seje homem de vergonha ou nós não negoceia coisa arguma, de jeito nenhum, nem um pinto goguento o senhor tira daqui!
Tendo percebido, desde o início, que a malcriada cabocla seria um espinho em sua garganta, Raimundo da Silva reveste-se de toda a paciência. Só de pôr os olhos nos fardos, logo soube que a fibra, embora não seja excepcional, é de boa qualidade. Por isso, fingindo que não ouviu o insulto, dirige-se ao dono da casa, aparentemente mais fácil de ser iludido: – Eu levo todo o seu estoque, amigo Antônio, porque a redução da colheita, devido à enorme enchente, será considerável e a gente precisa aproveitar tudo. Quantos quilos o senhor tem aqui? – Quando nós pesemo a primeira vez, deu novecentus e dezuito – revela o varzeiro, com o chapéu encostado no peito. Mas com as quebra, deve ter diminuído arguma coisa.
– Para não desperdiçarmos tempo, vamos, então, fechar o negócio: eu lhe dou setecentos cruzeiros por tudo, sem pesar novamente, pois me basta a sua palavra, honrada como a minha. Sei que a firma perde dinheiro com esta transação, mas eu estou decidido a não sair daqui sem ajudar meus irmãos que me recebem com tanta fidalguia. – Eu não quero nem saber da sua figadia, mas vá ajudar os desinfeliz assim no inferno! – dispara Maria Flor. Pois olhe, seu cara: nós não lhe entrega essa juta por menos de mir e quinhentus cruzeiro, viu? E tamo com muita pressa, porque o Antônio tem que pelejar na maromba da casa.
– É, seu Raimundo – concorda o marido, meio encabulado com a brabeza da companheira. Nós tamo ruim de vida, eu tenho que pagar umas conta na cidade e comprar madeira, mas o preço do senhô tá muito vagabundo. Assim não dá.
Com a estratégia inteiramente pronta, o escorregadio comprador oferece: – Dou, então, novecentos paus pelo produto. É muito, meu irmãozinho, pois a juta não presta.
– Pois se tá pudre, não presta, deixe ela aí e vá simbora! – metralha a madame. Ninguém convidou o senhô pra butar defeito nas coisa aleia. Inda mas essa! Como nós percisa de dinheiro, vamo acabar logo com essa chatice que tá me enjuando: pague mir e duzentus cruzeiro e mande embarcar essa porquera. Vute! Que peste de homem!
Sorrindo para a zangada senhora, Silva fala-lhe em tom amistoso: – Está fechado o negócio! Mas a minha comadre é fogo mesmo, hein? Deus ainda há de mostrar a vocês como fui generoso. É a primeira vez que “Jesus dos Anjos” paga uma fortuna por juta de inferior gabarito. Mas nunca me arrependi de haver agido com amor cristão.
Já tendo desabafado uma parte de sua raiva e achando, intimamente, que a venda foi boa, Maria vai saindo, calada. Na maromba do gado, outra novela de “puxa-encolhe” se desenrola. Após mais alguns desaforos engolidos, o manhoso comerciante consegue adquirir seis reses, “a olho”, sem levá-las à balança. Ele sabe que o peso fará ultrapassar bastante a importância que, evangelicamente, se dispôs a pagar: seiscentos cruzeiros por cabeça.
Embarcada toda a mercadoria, distribuindo bombons às crianças e abençoando-as, uma a uma, Raimundo da Silva aperta efusivamente as mãos do “formidável casal de arejados pecuaristas” e o garboso barco “Jutaicica” deixa a “Fazenda Apuizeiro”.
Alegres, agora, com a dinheirama em tempos tão bicudos, Presidente, a esposa e os meninos ficam, por alguns minutos, comentando as ocorrências. Riem muito da queda, que consideram merecida, de "seu Mundico", e das "poucas e boas" que ele ouviu de Maria Flor. Depois, voltam à trabalheira normal.
À tardinha, regressando da faina do capim, Zé Potoca diz aos padrinhos que, tendo levado o rádio para se distrair, ouviu a notícia de que já estão pagando, em Santarém, até dois cruzeiros pelo quilo da escassa juta e que a carne aumentou para seis cruzeiros. Na hora das mensagens para o interior, a “Rádio Rural”, de fato, confirma tudo o que o vaqueiro disse: novos preços mínimos entraram em vigor...
Não há nada que se possa fazer ante o esbulho sofrido. Os caboclos foram assaltados dentro de casa. No cocuruto do apuizeiro, um passarinho grita, como se vaiasse: – Bem-te... Bem-te... Bem-te-vi! Bem-te-vi!...
– Vai mangar da tua mãe, cachurro! – berra a dona da casa, tirando o bucho de uma piranha-caju. Porrada em cima de pobre só presta se for grande! Tisconjuro! –
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