sexta-feira, 16 de maio de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 11


– MAROMBA DE BOI –
Quando é bem construída, a maromba pode servir durante sucessivos anos. O mais comum, no entanto, é o pequeno criador improvisar um tosco girau para agasalhar o rebanho por ocasião da enchente, pois as madeiras boas são muito caras. Além disso, ele jamais perde a esperança de que na próxima temporada de inverno o rio não cresça demais e se possa dispensar essa antipática alternativa. É assim na várzea: vive-se de ilusão e se morre de raiva.

A maromba da “Fazenda Apuizeiro” foi preparada no último verão e Antônio Presidente andou gastando nela um bom dinheiro para fazer uma obra duradoura. O abrigo é constituído, em sua maior parte, de maçaranduba e itaúba, o que lhe confere muita resistência, tanto à corrosão da água como ao peso dos animais. Além de sólida e bem alicerçada, a moradia provisória do gado de Presidente apresenta as necessárias – mas nem sempre introduzidas pelos pecuaristas – divisões para as vacas com crias, novilhos e reprodutores. Igualmente aceitáveis são as condições de estabilidade da cerca protetora, para impedir que as reses caiam lá de cima. Ainda assim, de um ano para o outro são inevitáveis os reparos que se precisa fazer em todo o conjunto. É que, passando de três a cinco meses nesse hotel cinco estrelas, a boiada consegue fazer bons estragos na estrutura.

Iniciados nos penosos dias do corte da juta, só agora serão concluídos os serviços de recuperação da maromba. Para tanto, o fazendeiro e seu afilhado aproveitam todas as horas livres, sobretudo após o insucesso do Igarapé da Pitanga, pois o rio sobe, sobe e sobe, esbaforido como ladrão fugindo de linchamento. As reses já principiam a pastar dentro d'água, catando, inclusive, o mureru e outros magros petiscos, desprezíveis em tempos de fartura. Pior: duas vacas já foram inutilizadas por piranhas, que lhes mutilaram as tetas, e trairambóia matou um belo garrote ao lhe decepar a língua quando pastava. Por tudo isso, é preciso correr, buscando energias no medo enorme de ficar na miséria, vendo sumirem, de bubuia, na correnteza, os bens e as esperanças. E quem trabalha apavorado não se cansa. Já disseram que, durante os naufrágios, não existe melhor bomba para retirar água do barco em perigo do que um homem aterrorizado, com um balde na mão.

Finalmente, já se pode colocar a boiada no curral aquático. Mas começará também, a partir de agora e por um prazo de que somente Deus conhece a extensão, a tortura diária, pasmosamente cansativa, de alimentar um rebanho como criança de mamadeira, trazendo-lhe de enormes distâncias o capim cortado e reunido em feixes. – Eu só queria era ver, meu padrinho – diz Zé Potoca – aqueles dotô bunitinho lá da cidade metido no capinzar, no meio de furmiga, torando canarana e premembeca. – Ri e sentencia: – Aqueles cuirão fruxo não agüentava nem uma tarde!

Realmente, é um trabalhão que deveria ser ao menos assistido pelos grã-finos que, em luxuosos gabinetes refrigerados, partejam eruditas teses e elaborados ensaios, rotulando o caboclo amazônico de “indolente, vadio, alérgico ao desenvolvimento e reles bebedor de cachaça”. Nenhum desse tão operosos boas-vidas urbanos suportaria o brutal encargo de trazer, uma só vez que fosse, um batelão cheio de forragem colhida a meia légua de distância, no mínimo. Mas os “preguiçosos” varzeiros fazem isso diariamente, durante três ou quatro meses, com qualquer tempo e, inclusive, aos domingos, enfrentando fome, chuva, sol, insetos, cobras e outros ingredientes diabólicos que completam o mingau de uma terrível rotina.

Até março, o capim não está exigindo caminhadas muito longas para ser encontrado. A uma distância de meia hora de vela, se estiver bom o vento, ou a sessenta minutos de remo e varejão, em horas de calmaria, padrinho e afilhado completam o carregamento até ao meio-dia. Aproveitando a passageira abundância, vão buscar outra barcada à tarde.

Antônio não utiliza o barco “Flô das onda II” porque, além de a gasolina e o lubrificante haverem sofrido estúpidos aumentos e continuarem subindo de preço, há sempre a possibilidade indesejável de um “prego” no motor. O batelão, conduzido às custas de vigorosas empurradas com grandes varejões, possui maior tonelagem. Maria Flor e as crianças dão conta da casa, da quitanda e do resto.

A partir de abril, contudo, o pasto vai escasseando, começa a ficar coberto pelas águas. Torna-se necessário ir cada vez mais longe para obtê-lo. Mesmo acordando às quatro horas da madrugada, não podem os caboclos fazer mais os dois carregamento diários, porque remam ou velejam de cinco a seis horas para completar uma viagem de ida e volta. E o que trazem, coitados, mal dá para dividir em minguadas rações individuais, pois o alimento, a essa altura da desgraceira, tem a finalidade básica de não deixar o gado morrer de fome. Comendo tão pouco e só uma vez ao dia, as reses vão emagrecendo.

E o rio, como é que se comporta? Bem: cresce, cresce como o desespero de mãe que vê morrer seu único filho.

– Meu padrinho, o que é que essa água tá querendo fazer com a gente esse ano? – pergunta Zé Potoca. Pelo jeito, ela paresque vai deixar nós tudinho de bubuia. Vute!

De pé num dos bancos do batelão, Antônio vai recolhendo, reunindo em blocos e arrumando no casco os pés de forragem que o ativo crioulo lhe atira seguidamente às mãos.

– O diabo é que eu tô maginando me casar e...aaaiii! – esgoela-se o rapaz, interrompendo a confidência no início. – Puta merda, um lacrau me ferrou!... – Mata ele! Mata ele! – ordena-lhe, enérgico, Presidente. Mata o curno e me dá ele aqui!

Num instante está o preto com o peçonhento inseto pendurado entre os dedos da mão direita, enquanto, a caretear com as fortes dores, agita o braço esquerdo, onde uma vermelhidão vai tomando conta do polegar. Rápido, o pecuarista abre o ventre do bicho, remove o bucho e chama a agoniada vítima. – Vem cá depressa! Me dá o dedo e larga de ser fruxo feito fêmea barriguda. Tú já vai esquecer disso.

Comprime, então, com certa força, as vísceras do lacrau preto sobre a picada, pois desde menino sabe que é o melhor medicamento para esse tipo de acidente. A fazer esgares, mas contendo exclamações covardes, Zé Potoca, aos poucos, está com outra fisionomia e, alguns minutos depois, sorri, aliviado, pondo à mostra os graúdos e perfeitos dentes. – Mas ô remédio pai-d’égua! – proclama, feliz como formiga em açucareiro. Até a dor desadorada tá passando.

– Te aquieta aí um pedaço, toma um gole de café e pode pegar de nuvo no terçado – determina Antônio, enxugando o suor da testa com a ponta da camiseta. Mas se tu não tivesse matado a peste, eu ia empurrar esse batelão sozinho até chegar em casa. Ferrada de lacrau preto não tem outro remédio se não for o bucho dele. Aprendi isso com minha finada mãe.

A medicina varzeira funciona plenamente. Expliquem os doutos, se o conseguirem, como pode o bucho do lacrau agir eficazmente contra a picada, às vezes mortal, do próprio inseto. Talvez a resposta haja sido dada pelo caipira Zé Potoca, de volta à fazenda. A cismar sobre a ocorrência, ele disparou, de repente, esta pérola filosófica: – É, meu padrinho. Bucho de lacrau preto me curou enquanto o diabo espirrava. Quando Deus tira os dente dos desinfeliz, Ele alarga a goela pra comida descer depressa.

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