sexta-feira, 4 de julho de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 18


– O PARTO –
As crianças já dormem. Após comentarem as vivências do Paricatuba, Antônio, Maria Flor e Zé Potoca escutam umas canções na “Rádio Rural” quando, para o lado de cima do rio, zumbe um motor, arranhando o silêncio da noite como um desses grandes besouros cascudos. Porque barcos de todas as espécies cruzam constantemente a região, os ribeirinhos, habituados à velha rotina, pouco interesse demonstram ao vê-los subindo ou descendo o rio. Mas logo, dentre as trevas das vinte horas, os três percebem que a embarcação reduz a marcha e vai atracar. Antes dos outros, Presidente identifica o bote: – É o motor do Dedé Pajurá, teu cunhado – diz à esposa.

Alguém de bordo grita, saudando: – Ei, gente boa!...

– Que foi? Arguma dificurdade por lá? – responde, perguntando, Maria Flor, algo sobressaltada, porque sua irmã Conceição está em fim de gravidez e seus partos sempre dão encrenca.

– O seu Dedé mandou nós vim buscar a senhora, pois a Dona Conceição já tá querendo parir – comunica um caboclo muito forte, enquanto passa a corda do barco numa viga do alpendre.

– É, a esmola foi muito grande pru santo não desconfiar. Eu bem que tava achando esse dia de huje bom demais pra pobre. Havera de aparecer uma consumição pra desinquietar a gente. Vute!

Antônio hesita se vai ou não, mas a mulher, já se arrumando, decide: – Não. É mais melhor tu ficar. Eu não sei que hora eu vorto de vorta e os parto da mana são cheio de bestera. Deixa que eu vu com o Mundico e o Lili, meu sobrinho. A nuite tá bunita e se for perciso eles venham te buscar.

E viajam logo depois. Necessitam de uma hora para encostar na cobertura da casa, metade no fundo. Afinal, a “Fazenda Apuizeiro” não pode merecer o privilégio: soçobrou também, como todas as outras da várzea encharcada. Varando, penosamente, o buraco aberto no telhado, que agora funciona como porta, Maria Flor encontra, de cachimbão na boca, Dona Chica Aparadeira – a venerada obstetra daquele mundão liqüefeito. A mulata é danada de competente no ofício: até hoje só morreram oitenta e poucas crianças, além de trinta e sete gestantes, em todos os partos – mais de trezentos! – que ela já fez.

– Boa noite, Dona Chica! – saúda a recém-chegada.

– Boa noite, Mariinha! – responde carinhosamente, a robusta e grisalha cabocla. – Como é que o puvo de lá tão?

– Ei, Maria Flor! – interrompe o cunhado Dedé. – Eu mandei te buscar porque a Conceição queria tu aqui na ilharga dela.

Ao débil e tremeluzente clarão de uma fumacenta lamparina, que torna ainda menos acolhedor o atravancado ambiente, a única irmã da gestante encaminha-se para a rede, onde, com as mãos sobre o enorme ventre, geme a franzina e simpática senhora. Acariciando-lhe o rosto, pergunta, com voz doce: – Como tu tá, maninha? Tem coragem e muita fé em Nossa Senhora, que o teu parto vai ser muito legar! – Coragem eu tenho, mana, e fé também. O diabo é que essa dor disconforme, que acaba com o cristão – explica a parturiente, arquejante e apontando o abdomem.

Navegando, com o pesado corpanzil, através dos obstáculos – redes e cacarecos – espalhados com desordem pelo abafadiço recinto, a parteira, após fazer ligeiro exame, recomenda, segurando o malcheiroso cachimbo: – Eu acho mais melhor tu te alevantar, menina, e dar umas vorta pela sala, que é pro curumim poder arriar. A borsa das água já tá pra furar. Não demora muito pra tu te livrar dessa consumição.

Com grande dificuldade, auxiliada pela irmã, Conceição senta-se na rede. Entretanto, ao fazer esforço para ficar de pé, exclama: – Meu Jesus! Dona Chica! Eu me molhei toda!

Acaba de romper-se a bolsa amniótica, obrigando a “doutora” a trabalhar com a rapidez que lhe permite a obesidade. E dá algumas ordens, enquanto enxuga a mulher que se prostrou novamente, ofegando e repetindo “Ai! Ai! Ai!” – Dedé, ajeita as tauba e bota um candeeiro bem aqui.

Maria Flor recebe outra incumbência: – Pega a faca da cuzinha pra torar o imbigo.

A pequena “mesa obstétrica” não passa de uma espécie de jirau formado por dua tábuas largas, apoiadas sobre tamboretes, como se costuma fazer para colocar caixão de defunto. É aí que, a gemer alto e sob as vistas das assustadas crianças que despertaram com a movimentação, se coloca a parturiente. Quando ela se arruma como pode em cima do leito improvisado, a parteira chega a lamparina bem perto e anuncia, soltando uma baforada:

– Oba! Já tá coruando! Esse curninho não vai dar as dificurdade dos outro.

Sob o martírio das violentas contrações que expulsam o bebê do útero, como se fosse um intruso que passou nove meses sem pagar hospedagem, a gestante, apertando desesperadamente as mãos da irmã, traduz apenas em uivos soturnos, que procura abafar com um pano na boca, a terrível dor que lhe rasga as entranhas: – Uuuummm!... Uuuummm!...

Sentada num banco ante a mulher em posição ginecológica, a aparadeira “chama” a criança, movimentando rapidamente o dedo indicador na direção de seu próprio peito: – Anda, bichinho! Vumbora, muleque! Furça, que tu sai logo dessa porquera! Mais uma coisinha! Tá quase...

Esfregando as mãos na comprida saia suja para limpá-las um pouco, a pitoresca mulata agarra a cabeça, que já aparece bem, e puxa, com força, o corpinho que vem deslizando sem problemas. Afinal, dando duas boas palmadas na silenciosa criaturinha, proclama, triunfante, ao ouvir o berreiro inaugural: – Eita, gente bua! Taqui o curumim! É um baita macho e já nasceu mijando!... – Dedé, me dá logo uma dose de cana pra gente começar o festejo.

Maria Flor, mesmo tendo passado seis vezes por essa horrível experiência, está abalada e desabafa, com alívio: – Graças à Mãezinha do Céu eu fui capada e não posso mais parir! Tisconjuro! É uma judiação que nem égua agüenta! Vute!

– Qual o que, minha filha! – atalha Chica Aparadeira. – Larga desses dengo de muleca criada com vó. Tu sabe que isso aí é uma dor esquecida. Quem pariu huje, amanhã já quer fazer filho de nuvo, porque nem se alembra mais do que sofreu.

Agora, segurando o ainda palpitante cordão umbilical, pede à Maria: – Me dá aqui essa faca.

Com um só golpe do afiado instrumento, corta a ponte que ligava os organismos da mãe e do filho. Depois, apaga o cachimbo, deixa esfriar um pouco e coloca sobre a ferida o sarro nele contido. É um dos curativos umbilicais comuns na várzea, aliado ao pó de café, teia de aranha e outras imundícies.

Entregando à tia o recém-nascido, a parteira examina o útero quieto de Conceição e previne: – Se esse cuirão não deixar de preguiça, eu tiro a pelica dele a purso.

Decidida, passa a fazer enérgicas massagens sobre o ventre da mulher, esfregando nele as mãos gordas, de cima para baixo. Aos poucos, reiniciam-se as contrações e a placenta é expelida, sem que se concretize a assustadora ameaça de removê-la a pulso...

Ultimado o parto, transfere-se novamente a aliviada senhora para a rede, enquanto a obstetra se esparrama, cansada, numa cadeira.

– Taqui, Dona Chica, um bocó muquiado pra tirar o gusto da cachaça com limão – diz Dedé, apresentando-lhe o peixe num prato, farinha e um caneco cheio do forte aperitivo.

A caboclona faz a sua farra solitária, pois o dono da casa não tolera bebida alcoólica. É mais de meia-noite e o bebê dorme serenamente, cercado pelos quatro maninhos que o examinam, curiosos e enternecidos. Pela primeira vez, em cinco partos, Conceição escapou das hemorragias que quase a mataram em outras ocasiões.

Todavia, dentro de uma semana, desgraçadamente, sobreveio a compensação da sorte grande: com febre alta, convulsões e rigidez muscular, o anjinho... morreu!

Entre duas cachimbadas, ensina Dona Chica Aparadeira: – O curumi pegou o mar dos sete dia. Foi gorpe de ar.

O recém-nascido contraiu tétano umbilical. Foi sarro de cachimbo – contestariam os médicos da cidade.

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