quinta-feira, 24 de julho de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 21

– OS POLÍTICOS –
Amanhece. Quatro reses mortas... Incontáveis tronqueiras arrastadas pela infernal ventania noturna atravancam toda a fazenda... Há estragos na maromba do gado... São, esses, alguns dos efeitos perversos da tempestade, acrescidos de outro problema ainda mais inquietante: Niquita, a garota de cinco anos, está com febre alta e já por duas vezes expeliu um vômito escuro, quase negro.

– Essa cunhantã não tá bua, não. Passou a nuite muito desinquieta – diz Maria Flor ao marido.

– Não é nada – assegura Antônio, que resolveu mandar Zé Potoca sozinho, no barco motorizado, para o corte do capim. Quer esperar os políticos, pois o rádio repetiu a notícia de sua vinda, fornecendo o roteiro da viagem.

– Deve ser gripe braba, dessa que tá dando na varja. Perpara um chá forte de limão com alho, sem açucar, e dá pra ela com um melhorar infantir. É tiro e queda.

O caboclo já vai saindo, na montaria, para melhor apreciar a extensão dos desastres da noite, quando é convocado outra vez: – Vem cá, meu bem! A bichinha tá se acabando de vomitar! E vareia o tempo tudo, diz bestera, porque a febrona tá disconforme – anuncia a mãe, afobada e limpando a criança.

Antônio põe sobre as pernas a arquejante enferma, cujos olhos brilhantes giram em órbitas. Percebe que a situação é mesmo grave. Por isso, altera o diagnóstico anterior, garantindo, convicto:

– Essa porquera não é gripe, não. Ela istoporou com aqueles burrifo da chuvada e os gorpe de ar da trivuada. Vento de cima é coisa do cão. Inda tem “piúla contra” aí na lata dos remédio?

– Tem – responde Maria. E vamo dar logo duas pra ela, porque eu também já tava mardando que isso havera de ser mesmo istupor. A molequinha tava sajica e arriou de repente. Foi vento de cima.

Abrindo o vasilhame, o pai apanha dois comprimidos e, pondo água num caneco de alumínio, ajuda a mulher a fazer a doentinha engolir as milagrosas “pílulas contra” – tidas como infalíveis em casos de estupor. Entre espasmos e rebeldias, Niquita acaba deglutindo as bolotas e, com a prostração do esforço, agora sossega, ofegante, no fundo da úmida rede. Parece que dorme.

Presidente retoma a canoa e vai inspecionar a propriedade. Após um bom tempo de verificação, está ajeitando uns esteios na maromba quando ouve o barulho de uma “voadeira”. Olha e vê, rio abaixo, um pequeno barco branco a varar, velozmente, o Amazonas. Com as duas mãos em concha sobre a boca, grita: – Maria, paresque lá venham os homem! Ajeita logo o café!

Em menos de cinco minutos, a moderna lanchinha de fibra de vidro, acionada por um potente motor de cento e quinze cavalos, chega à “Fazenda Apuizeiro”. Conduz seis cidadãos, todos de bermudas e óculos com lentes verdes ou esfumadas. Dando caloroso e simultâneo “Bom dia!” , erguem-se para o desembarque. Da comitiva, os donos da casa reconhecem apenas o vereador Polidoro da Cunha, que providenciara, na cidade, o sepultamento de seu filho Bibito e livrara Zé Potoca da cadeia. O nobre representante do povo apresenta ao casal os ilustres visitantes:

– Aqui estão, Dona Maria Flor e seu Antônio, os emissários do governo estadual e da prefeitura de Santarém. Todos, eles e eu, viemos decididos a resolver de uma vez os problemas de nossos queridos irmãos varzeiros. Temos, inclusive, na caravana, um fotógrafo que documentará tudo para a grande imprensa de Belém.

Apertam-se as mãos, trocam sorrisos. Quando um deles indaga como é que se entra na residência, com o mesmo vestido vomitado e azedo, a patroa explica, apontando a “porta” do teto: – É pelo buraco acolá, seu menino. A gente enxota as galinha e passa, de bunda pra cima.

E os deputados Arcângelo Salvador, líder da augusta maioria na Assembléia Legislativa, Tibúrcio Bondoso, integrante da mesma bancada, dois funcionários municipais, o vereador e o fotógrafo, após fixarem sua embarcação junto à estreira abertura, ridiculamente, de veneráveis fundilhos expostos ao vento da várzea submersa, vão penetrando na habitação. Quando passou o último deles, olhando os companheiros, Arcângelo protesta, de dedo em riste:

– Mas isto é um despropósito intolerável! Não mais consentiremos que seres humanos, detentores de uma alma imortal, desçam a tamanha indignidade. O nosso operoso governador tem condições de resolver, para sempre, a tragédia das enchentes.

– Seu menino, esse seu gumverno dá pau pra maromba? – indaga Maria Flor, de mão no queixo. É só de pau que a gente tamo percisando.

Bem – responde o parlamentar. Nós estamos aqui exatamente para recolher as prioritárias reivindicações de vocês, oprimidos ribeirinhos, mas na véspera de se libertarem eternamente deste inferno. Não se preocupe, madame: a senhora vai receber pelo menos dez dúzias de excelentes tábuas. Também terá medicamentos, hospital, alimentação farta e barata, escolas para os filhinhos, ração balanceada para o gado e... uuuummm!...

O nobre deputado estava pegando ameaçadora embalagem verbal quando se calou subitamente, pôs a mão no ventre e fez uma careta. Após duas massagens no abdome, chama o vereador à parte e lhe cochicha um segredo. Encabulado. Polidoro pergunta ao silencioso Antônio: – Que se faz, seu Presidente? O doutor está com fortes cólicas intestinais e precisa ir logo ao sanitário.

– Xu, galinha! Raimundinho! – chama a cabocla, que logo percebera a enrascada. Leva já, já o seu menino na montaria ali no tuco do pau. Anda que o homem tá avexado pra fazer cocô!

Antes que o pálido líder da maioria se recupere do susto, a prestimosa anfitriã desembrulha rapidamente duas barras de sabão e entrega ao hóspede o grosseiro papel: – Tome pro senhô se alimpar. É só o que nós tem.

Vermelho, visivelmente constrangido, mas puxando a barriga de baixo pra cima, tentando aliviar as dores, Salvador não se pode dar ao luxo de uma negativa: embarca na canoa, escapa de cair e lá se vai para também dar a sua “cusparada” na cara do rio... Outra indignidade incompatível com a sublime transcendência dos seres humanos...

Quando retorna, a pequena enferma convulsiona o sombrio ambiente e Tibúrcio, que é médico, sentencia, depois de examiná-la: – a criança está nas últimas. Contraiu uma enfermidade ainda não diagnosticada, que vem fazendo estragos no Baixo Amazonas. Estranhamente, só atinge uma ou duas pessoas em cada casa. Infelizmente, eu só tenho analgésicos e anti-disentéricos. Vamos ver, porém, se ela toma estas gotas, que aliviam dores e diminuem a febre.

Ao tentarem, no entanto, fazer com que o líquido desça pela garganta da menina, ela se agita com violência e logo após fica imóvel, sem um gesto, sem um arquejo. Auscultando-lhe o coração, fala o doutor, compungido: – O anjinho deixou de sofrer. Meus pêsames.

Não há berreiros escandalosos, mas apenas um pranto discreto. Assim como o trabalho duro enrijece a pele das mãos, as repetidas provações engrossam, calejam, insensibilizam as almas. A mãe chora, baixinho, debruçada sobre o miúdo corpo inanimado. Poucas lágrimas brotam dos olhos de Antônio e se percebe um enorme espanto nos rostos dos três irmãozinhos, incapazes de entender a procissão de desgraças fatais: cobras mataram dois deles e o vômito negro acaba de roubar mais uma das escassas alegrias da “Fazenda Apuizeiro”! E quem é que há de compreender, pobres crianças?

Sem condições sequer para disparar novas promessas, os recém-chegados, aturdidos pela estúpida realidade que os envolveu subitamente, passam a colaborar nas providências para o sepultamento de Niquita lá no Paricatuba. Descerão o rio, mas se comprometem a voltar após o almoço. A lancha “Governador do Povo” ficará, então, ao inteiro dispor da enlutada família.

São dezessete horas quando saem da voadeira, já regressando de mais um enterro, Maria Flor e Presidente. Os políticos vão dormir na cidade para, no outro dia, reiniciarem o histórico e decisivo périclo redentor pela várzea encharcada.

Deus escreve mesmo corretamente pelos mais tortuosos caminhos: foi providencial essa morte cruel sob as vistas estupefatas dos figurões. Esse infernal 1971 entrará na história amazônica sob o estrondoso coro das terríveis maldições que acompanham ao túmulo os grandes malfeitores. Contudo, há de emergir, também, ante a posteridade agradecida, como o último ano em que os ribeirinhos padeceram os martírios de uma inundação. A caravana assegurou, sob palavra de honra, que urgentes, drásticas, revolucionárias e geniais medidas serão tomadas para que nunca mais, nunca mais mesmo uma só lágrima escorra pelo rosto de um caboclo, em decorrência de dores ou privações. Eles todos ainda hão de chorar brevemente, sim, muito brevemente: mas de alegria descontrolada, de comovido agradecimento ao governo, de total felicidade! Quem viver, verá!

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 20


– A TROVOADA –
Começou junho. Mais uma pasmosa carga de água ainda se adiciona ao formidável volume do rio que, neste amaldiçoado ano, parece multiplicar esforços para conseguir a definitiva expulsão dos andrajosos intrusos que prostituem suas sagradas margens. Não basta pô-los em alucinada, mas provisória fuga, porque é sempre a véspera de teimoso regresso às terras enxutas. É preciso matar essa gente profanadora, reduzi-la à quietude irreversível das sepulturas.

Forças ciclópicas somam perversidades, de mãos dadas, tramam e logo executam sinistros projetos para despejarem incalculáveis massas líquidas no grávido regaço do gigante, antipaticamente amarelado como todas as desgraças. As chuvas pesadíssimas e o degelo da cordilheira dos Andes funcionam como cúmplices diabólicos do vaidoso rio-mar, que talvez alimente o fantástico sonho de recuperar, um dia, perdidas grandezas. E não sendo suficiente essa abominável sementeira de misérias, até a lírica e sonsa Lua provoca as grandes marés e também se inscreve, como vil comparsa, na conspiração satânica.

Sabe-se de razoáveis suposições científicas em que seus eruditos autores presumem ter sido o Amazonas, há inúmeros milênios, um vasto mar interior, represado pelas montanhas andinas. Tal hipótese explica fatos sumamente intrigantes, como a presença da maior reserva salina do mundo – dez trilhões de toneladas! – descoberta quando se farejava petróleo no território amazonense. A teoria também joga alguma luz sobre os misteriosos “sambaquis” – conchas de mariscos amontoados em quantidades incríveis nos mais diversos quadrantes da região.

Bem. Calcula-se, então, que, com o tempo, aquele mar primitivo acabou escavando, na rocha, uma estreita saída, à altura de Óbidos, no Pará, vindo desembocar no Atlântico, pois antes ele seria tributário do oceano Pacífico, a correr de leste para oeste. Parece, assim, que a frustração por haverem perdido o velho e imperial “status”, rebaixado de mar para rio, se assanha perigosamente, de vez em quando, e as águas barrentas avançam, incontroláveis, tentando alagar tudo, tudo, tudo!

Após repartir as pequenas porções de capim entre as trinta reses sobreviventes, Zé Potoca aparece em casa e diz: – Encheu meio parmo e passou daquela marca de 1953, que tá naquele buraco do apuizeiro. Eu digo que nós inda vai pelejar e alevantar de novo a maromba da casa. Os boi já tão com as pata mergulhada. Vute! – Tisconjuro! – esperneia Maria Flor. Tu acha puco o murro que a gente demo, pra começar a andar feigo osga, saindo e entrando pelo buraco do telhado? Égua!

Antonio Presidente não opina. Sentado num banco, olha a mulher que tira as vísceras de um jaraqui. Sabe, porém, que o destrambelhado preto possui motivos para temer novas aflições. O assoalho já foi erguido nada menos de três vezes. Sempre esperançosos de que o nível não passasse de certo ponto, e para diminuir o tremendo calor interno, que faz durante o dia, ales suspenderam apenas aquilo que lhes parecia suficiente para enfrentar as marés maiores da próxima Lua.

Agora, eis a realidade: chegaram à situação de ter que caminhar inclinados, como velho gagá, para não baterem a cabeça nos caibros do teto da casa, a pouco mais de um metro e meio. Só podem sair ou entrar, executando uma cansativa ginástica: varam um furo aberto no telhado, que fica protegido por uma folha de zinco. Na cumeeira ainda se agasalham umas quatro galinhas magricelas. Mas na hora de lhes dar a única refeição diária – uns restos de babugem que as aves famintas ciscam até sumir o último farelo – tanto elas como os dois patos têm que comer dentro da habitação. Com o ossudo cachorro “Desacato” compõem uma caótica miniatura da arca de Noé.

Água por todo lado... Nada escapou do naufrágio... Até o barracão da ladainha está com meio metro de Amazonas em seu interior. Quase não se pode mencionar, em tempos assim, um gesto, uma atitude que não exija sacrifício pessoal. Nada é fácil. O rio complica a vida a tal ponto, faz o sofrimento descer a níveis tão individuais, sem respeitar idade ou condição, que aparenta possuir olhos, mãos, ouvidos – embora se saiba que jamais teve coração. O carrasco vibra sadicamente com os gemidos, exulta com as mortes e resmunga, zangado, quando vê um sorriso ocasional num rosto qualquer – sorriso que, em verdade, aproveita caminhos de lágrimas, enxutos por alguns instantes. Nem os defuntos estão livres das fúrias apocalípticas do rio: nas grandes enchentes, cemitérios comunitários são invadidos, recobertos, fazendo ossadas irem, de bubuia, na correnteza...

Mas os perseguidos enteados do destino têm pelo menos uma forma de vingança contra o invencível inimigo. Ao sentirem as advertências de uma necessidade fisiológica, estando a privada do quintal inteiramente no fundo, apanham a canoa e se afastam um pouco da casa. Firmando-se num galho de pau, eles pagam o humilhante imposto devido à natureza, mas o fazem com desdenhosa satisfação. Tal estado de espírito foi bem expresso por Zé Potoca, ao amarrar a montaria, de volta do “sanitário de macaco”: – O marvado desse Amazona afoga nós, mas nós joga mijo e bosta bem na venta dele! Toma, seu curno!

No momento do magro jantar – uma panela com dois jaraquis e uma pirapitinga pequena – depois de tossir muito, engasgado com um bago de farinha, Antônio Pergunta: – O que é que a gente fazemo pra arrumar madeira pra subir a maromba dos boi? Se eles demorar com as canela mergulhada, vão ficar dispilicando e o tutano perde a sustança. Eu não posso agora comprar nem um pedaço de pau, farta dinheiro.

Sem entusiasmo, a dona de casa lembra: – A Rádio Rurar deu huje uma mensagem que amanhã venham uns graúdo pra ver a enchente aqui na varja. Eu não acredito em promessero sem-vergonha, mas como nós tamo liso que nem jacundá, vamu ver se eles arruma umas tauba pra gente.

Atirando um espinhaço de peixe para o cachorro, o afilhado intervém, desiludido por tantas decepções anteriores: – Que nada, minha madrinha! Se fusse ano de ileição, eles sortava dinheiro pra pegar o votinho da gente. Mas não é. – Tá bom, mas o jeito e esprementar – pondera Antônio. Me sortaram essa: o Nhuquinha Catauari arrumou na cidade seis dúzia de itaúba. Não sei quem deu pra ele.

Combina-se, afinal, que, se aparecer a anunciada caravana, será solicitado aos visitantes o material necessário ao levantamento do jirau externo. É outra das malvadezas das inundações: quando a maromba fica recoberta pelas águas, as canelas das reses vão perdendo os pelos protetores. Menos resistência passam a ter os debilitados animais para se manterem de pé, desde que a medula óssea é afetada de alguma forma pela contínua imersão dos membros. Além disso, persiste a constante ameaça das vorazes piranhas e das perigosas trairambóias – umas e outras com tradicional vocação para o cangaço assassino.

Quando se recolhem, nessa noite, como uma vaga esperança de conseguir que os políticos lhes arrumem alguma coisa, o calor, que foi fora do comum durante o dia inteiro, ainda está sufocante como o custo de vida. Com o diminuto espaço disponível para a circulação do ar, e sem uma brisa sequer, o martírio aumenta. Essas criaturas somente conseguirão dormir porque o corpo moído e a alma retalhada são quase insensíveis à temperatura de fornalha e ao aperreio das muriçocas – suplício que nem a sobrenatural imaginação de Dante Alighierii meteu entre as torturas infernais, quando ele não deve faltar ali. O gênio de “A Divina Comédia” teria certamente entregue os seus mais rancorosos inimigos à fúria sanguinária dos alucinantes mosquitos, capazes de varar tecidos e encerados para picarem o infeliz.

Olhando o céu escuro, Zé Potoca avisa: – Ih! Paresque vai cair um tempo feio, de cima! Tem relampo que nem presta. Vamu logo amarrar bem essa fulha de zinco que é pru vento não arrancar ela.

Usando as mãos como platibanda sobre os olhos, Presidente examina a noite, calada como criança que acabou de fazer grave danação e concorda com o vaqueiro: – Esse calurão que fez huje era mesmo sinar de truvuada. Vamu se perparar que o temporar vem de com furça e não demora.

E recolhem as aves. E fixam mais firmemente o zinco do teto. E põem a montaria bem abrigada. E enrolam malhadeiras. Depois esperam, deitados, os ribombos do céu e os rugidos das águas tipitingas, que os envolvem como bárbaros sitiando uma cidade indefesa.

Ainda não são nove horas quando o primeiro trovão ronca, surdo, longínquo, como anúncio de terra caída quando a Boiúna fala grosso, lá embaixo. Esses formidáveis vendavais amazônicos parecem mulher em trabalho de parto. A princípio muito espaçadas, as colicas da Natureza prestes a expelir legiões de demônios de suas negras entranhas, revelam-se através de urros intermitentes, com duração e potência variáveis. Todavia, na hora crucial do nascimento, as contrações quase não cessam mais e os cegantes relâmpagos clareiam sinistramente o amedrontador cenário. Afinal, a parteira precisa de luz para trabalhar e os faróis do firmamento se acendem providencialmente na ocasião do aperreio.

Também desta vez a escrita funciona. Como quem não quer nada, numa tentativa inútil de iludir os calejados caboclos, o vento oeste ou “de cima” começa a soprar, mansinho, arremedando brisa e crepúsculo, leque de donzela ou cantiga de juruti viúva. Mas, aos poucos e depressa, vai ganhando tutano. O primeiro corisco estala e o escangalho de uma árvore desabando reboa pela fazenda alagada.

– Caiu pau no mato! A coisa vai ser feia, mas Nossa Senhora e Santa Barbra vai livrar nós! – diz, medrosa, Maria Flor, embalando-se na rede com uma criança enferma.

Pela tarimba da vida, os varzeiros sabem que, ao despencar um gigante da floresta quando se inaugura uma procela, quando o vento ainda está fraquinho, podem ficar certos de que terão uma furiosa borrasca pela proa. É a sabedoria dos ignorantes sem ciência de livros.

Realmente, logo o tufão se estusiasma, convida todos os ventinhos vagabundos a engrossá-lo e, dentro de quinze minutos, parece que um milhão de Boiúnas atiça, bufando, igual número de foles gigantescos, a urrarem e a unirem os clarões de seus olhos horrendos. A noite é, agora, um festival medonhamente belo de chuva, trovões, assovios, raios e relâmpagos.

Os gregos costumavam colocar sobre os telhados de suas casas as líricas “harpas eólicas”: queriam dormir ouvindo a música do vento a tanger as cordas dos engenhosos brinquedos... A poética tradição seria impraticável nas várzeas amazônicas, pois numa noite de turbulências como as de agora, se escutaria um soturno réquiem, uma agourenta liturgia de enterros, caso o instrumento não voasse, antes, desfeito em farelos...

A tremenda tempestade tropical arroja-se em cima do mundo submerso e o faz com aquela raiva que reconduz o homem à sua absoluta insignificância diante dos petardos cósmicos sobre si desencadeados. A própria luz irreal das claridades que riscam o céu incute nos corações apavorados um terror agônico, um cheiro de morte, um antegosto de inferno. Se presenciasse uma dessas assombrosas convulsões da bacia amazônica, Abraão Lincoln certamente repetiria a sua frase famosa: “Em determinados momentos eu caio de joelhos por ter a convicção absoluta de que não me resta outra coisa a fazer.”

Transidos de um medo atávico, esmagados pela total submissão impotente ante os elementos em colérico descontrole, os caboclos não mais pronunciam qualquer palavra. Cada um reza sozinho, sentindo frio na espinha quando ouve o estalido seco de um raio. Eles se encolhem, metem os dedos nos ouvidos e, de olhos fechados, escutam com menor intensidade o abalador estrondo que chega logo depois da faísca elétrica.

De repente, sem um convite, por iniciativa pessoal e simultânea, Antônio, Maria Flor e Zé Potoca jogam-se, prostrados, sobre o chão úmido da casa: nunca ouviram falar de Lincoln, mas se ajoelham porque o instinto lhes assegura que não existe outro adequado procedimento para as circunstâncias. Ao frouxo e tremelicante clarão de um candeeiro, os três adultos oram, de mãos postas e rostos que refletem o terror interno. Começaram a rezar assim porque uma descarga atmosférica pareceu ter atingido a própria residência, perigosamente sacudida pelo rugido pavoroso de um trovão mais potente que os mil anteriores.

Espicaçado em seu constante humor azedo pela colossal tormenta, o Amazonas aproveita o ensejo para lançar água suja dentro dos miseráveis tapiris naufragados. Com escarcéu, ele se joga de encontro às paredes, molhando tudo – pessoas e trastes. E, a uma rajada mais severa do fortíssimo vento de cima, a folha de zinco, que se agitava barulhentamente, batendo nas ripas da cobertura, solta-se de vez!

Enquanto a chuva se despeja, livre, pelo rombo aberto, Zé Potoca, rápido, transpõe a passagem rasgada no teto e logo apanha a preciosa proteção, que já ia descer, de bubuia, na correnteza. Com muita dificuldade, ele e o padrinho repõem a “porta” em seu lugar, prendendo-a com a firmeza possível. Todavia, a residência está inteiramente inundada.

São duas horas de agonias, sustos, preces e ansiedades. Só aí por volta da meia-noite o temporal começa a dar sinais de que não tardará muito a sossegar, cansado de tanta brutalidade. Quando, já de madrugada, voltou a calmaria – uma espécie de paz de cemitério – Maria Flor, acariciando a filhinha febril, tem um derradeiro comentário: – Os bacana da cidade fica se mardizendo quando uma goteira besta no telhado pinga chuvisco na venta deles. Eu queria era ver aqueles curno pelejar com um trivuada disconforme como essa que a gente peguemo. Morria tudinho, só de fruxura...

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 19


– MEDICINA DE CABOCLO –
Menos usado, porém tão eficaz como a prestigiosa infusão de folhas de sabugueiro, é o chá de fezes secas de cachorro para apressar a erupção do sarampo... Sangue de jabuti constitui maravilha infalível para extinguir teimosas erisipelas – as temidas “isipras” ou feridas malditas... Lavar os olhos com a própria urina (mas só serve a primeira do dia) acaba com as mais rebeldes inflamações da vista... Eis aí umas insignificantes amostras do folclórico, grotesco, às vezes milagroso e, não raro, assassino ou mutilante arsenal farmacêutico das comunidades ribeirinhas.

Radicados a imensas distâncias dos centros médicos, os pobres varzeiros não se podem permitir o luxo de escolher sequer entre duas alternativas, pois só têm uma: ou usam aquilo que está em seu quintal, no campo e no igapó, ou morrem sem ao menos uma tentativa de vencer a enfermidade que os prostra no fundo de uma rede. E, nesse terreno, ocorrem coisas espantosas.

Zeca, de seis anos, acorda a mãe no meio da noite: chora com dor num dente. – Peraí que eu já vou te dar remédio – diz Maria Flor, estremunhada, a esfregar os olhos.

De uma lata, na cozinha, retira um vidro pequeno e coloca duas ou três gotas de certo líquido escuro na colherinha que está sobre a mesa. – Abre bem a boca – ordena ao filho. – Antônio, anda, me ajuda aqui.

O marido, bocejando, segura a lamparina bem junto ao rosto do garoto e a mãe despeja óleo de pau-rosa na cavidade do molar estragado. O menino grita e recebe um cascudo: – Larga de ser fruxo, já vai passar!

Não demora muito e a criança, de fato, vai sossegando e pára de choramingar. Contudo, antes de amanhecer está se queixando novamente e o pai decreta: – Huje, assim que eu vortar de vorta do capim eu vou logo é distrair o cuirão desse mardito dente.

Olha o bicho que dói e assegura, com a certeza dos profissionais: – É jito como bago de milho, mas tá apustemado.

Não, Antônio Presidente não se diplomou em odontologia, mas, por necessidade, entende um pouco de tudo. Retornando, às dezesseis horas, a esposa completa o anterior diagnóstico: – O Zeca tá com a cara meia inchada. O jeito é arrancar logo esse dente. – Vê aí a tesurinha que eu vou já fazer essa distração – responde o marido.

Toma dois canecos com água e convoca: – Vem cá, curumim! Senta nesse tamburete e abre a tua bucona – ordena o caboclo, sem ao menos lavar as mãos. – Vai doer pra burro, mamãezinha!... – diz, chorando e de olhos suplicantes o menino, pedindo socorro à genitora, como quem sobe ao patíbulo para ser enforcado por um crime que não cometeu. – É pro teu bem, meu filho! – consola-o a mãe, desviando, entretanto, o olhar daquela dolorosa imagem do sofrimento infantil. – Dá-lhe um beijo na cabeça e um conselho: – Larga de teimosura e abre a buca pra acabar logo isso.

Como a vítima recusa-se a obedecer, Antônio pega uma colher das de sopa. Tendo a tesoura na mão direita, com a esquerda força a abertura dos lábios do guri que, por enquanto, já levou umas palmadas e berra como porco peiado. Os três irmãos assistem, com visível horror, a dramática cirurgia de vaqueiro...

Conseguindo, afinal, espaço bastante para trabalhar, o dentista enfia a ponta do instrumento na gengiva e levanta, de um só vez, o molar de leite, que salta sobre o assoalho! A criança deixa de gritar porque desmaiou, mas com uma cuia de água do pote na cabeça e uma xícara de café, logo volta ao normal. – Eu trouxe um mangará de banana ruxa lá da casa do Janjão Garrote – previne o pai. – Se o sangue continuar pingando, a gente sapeca o cardo na ferida. É só uma porrada.

Foi providencial a lembrança do tarimbado caboclo. Apesar das bochechadas feitas com o chá da casca do cajueiro, às nove da noite manifesta-se a hemorragia. Apanhando o mangará, Presidente dá-lhe diversos cortes e ensopa um pedaço de algodão, com que se calafetam canoas, embebendo-o no viscoso líquido que escorre. Durante cinco minutos faz compressão sobre o lugar do dente. Afrouxa, olha e... pronto! Cessou o corrimento vermelho. Persistiria, agora, apenas o risco de tétano, mas como Deus costuma dar aos pobres uma proteína especial e milagrosa, a “pobrina”, essas civilizadas ameaças acabam sendo muito mais exceções do que regras.

Entre os matutos há remédios para tudo. Alguns deles adquirem, ao longo das gerações, “status” de prodigiosas panacéias que nunca negam fogo.

Zé Potoca está procurando amarrar as pernas de uma vaca “imperriada”, para a ordenha matutina. Descuida-se um pouco e o animal desfere-lhe um coice que, embora não o atinja em cheio, deixa-lhe a perna esquerda meio machucada. Só à tardinha, porém, leva o fato ao conhecimento da família, porque o local inchou e a dor aumenta.

Maria Flor examina a contusão arroxeada e promete: – Eu vou fazer uma afumentação de andiroba com sar. Amanhã tu tá bonzinho da sirva.

Apanha o vidro, derrama o líquido de cheiro desagradável na palma da mão e faz enérgicas massagens na perna do negro, que suporta, firme. Depois, improvisa uma atadura com retalhos de pano velho e, à noite, antes de se recolherem, repete as vigorosas esfregadelas. NO dia seguinte, o crioulo mal se lembra de que recebera um agrado da vaquinha “Pupunha”...

A andiroba, espessa resina de certa árvore cuja madeira é muito usada em construções, aparece como um dos milagres medicamentosos da selva amazônica. Amolece tumores e sara feridas feias. Misturada ao mel de abelhas e à copaíba – outra seiva fantástica – dificilmente se precisa ir além da segunda embrocação nos casos de amígdalas inflamadas.

A vida, afinal, seria simplesmente impossível nesses ermos se os céus não autorizassem tais respostas a tantas emergências. Raízes, cascas, folhas, ervas e resinas do “Inferno verde” desfrutam de renome internacional por sua eficácia terapêutica. E os caboclos servem-se delas continuamente, só indo à cidade quando seus remédios tradicionais se mostram impotentes numa determinada situação.

Qualquer moléstia tem um chá, um óleo, uma garrafada correspondente. A infusão de casca de carapanaúba, mais amarga que desgosto amoroso, exerce um mágico efeito nas disenterias, enquanto a sacaca não encontra rival em problemas hepáticos. Para dissolver pedras no figado, Antônio ensina a qualquer bonitão de Santarém: – Toma o chá da folha de quebra-pedra tudo dia, como se bebesse água. Basta um mês. Misturando com cana mansa, inda é mais melhor.

Interminável seria o relacionamento de produtos incluídos no prosaico receituário caseiro. Mas, como isolados componentes de um vasto e colorido painel, mencionemos ainda alguns desses curiosos medicamentos.

Sementes torradas de jerimum constituem poderoso vermífugo. Calos e verrugas desaparecem com a aplicação de rodelas de tomate, sobre eles, durante a noite. Pingar mel de abelhas nos olhos, duas vezes ao dia, acaba com a catarata em poucos meses. A banha da cobra sucuriju exorciza o reumatismo, o chá de limão e alho cura a gripe, o jucá é ótimo cicatrizante e destrói tumores que resistem até os antibióticos. Urucu faz expectorar e a casca preciosa tem efeitos digestivos e anti-espasmódicos. O leite-de-amapá fortalece pulmões tuberculosos e o chá de folhas de graviola e laranja-da-terra não falha nos males cardíacos.

E há muito mais. Infusão de escada-de-jabuti põe fim às hemorróidas, jurubeba vence anemias, artemija cura hepatites, chá de perna de grilo solta urina presa. O paricá, a urtiga, o sebo de carneiro, as banhas de galinha, anta e tartaruga, a erva-cidreira, o capim-santo, a hortelã, o marupazinho, o jutaí, o jaramacaru, a ucuuba, a...!...

Às vezes, entretanto, os quintais e matas não fornecem a solução para um específico problema de saúde. Nesses momentos são acionados a Maria Puxadeira, mestra em desmentiduras de ossos, a Bibi Rezadeira, diplomada em espinhela caída, golpe de ar e dor-de-cotovelo. Brilha, sobretudo, o Neco Benzedor – o milagreiro da várzea.

Quando o caçula tinha seis meses de idade, Maria Flor, em certa manhã, disse ao marido: – Eu tô cismando que aquela curica da cidade que teve aqui com nós, a tar de Terma, botou mau ulhado nessa criança. Isso é quebranto puro. Aposto. Eu já dei tudo o que sei de chá e olha como o bichinho tá jururu, feito bacurau no sol.

O pai apalpa, examina o doentinho e concorda com o diagnóstico da madame, saindo logo para ir buscar o benzedor.

Chega o caboclo velho. Alto e magro, barbicha de bode, Neco Benzedor é venerado principalmente por não cobrar nada e tirar candidatos a defunto da beira do túmulo com suas rezas e puçangas. Senta-se na rede, põe o bebê sobre as pernas e segura um raminho de alecrim (arruda também serve). Concentra-se, faz uns gestos cabalísticos, resmunga orações incompreensíveis enquanto vai movendo a plantinha em vários sentidos.

Estranhamente, na mesma proporção em que o homem reza, sua muito, ensopa-se a camisa que veste e o alecrim verde vai murchando, como sensitiva. Após uns vinte minutos, o varzeiro está encharcado, as folhas do vegetal ficaram totalmente encolhidas e o garoto... bem mais esperto. Uma hora depois, brinca, alegre, com o seu maracazinho vermelho. Era quebranto puro.

Essa, a medicina de caboclo, em doses infantis, pois exigiria imensos tratados para ser esmiuçada. E os curandeiros, como o Neco, apesar das asneiras que fazem e até dos crimes que cometem com suas mandingas, vez por outra fatais, aí estão, desafiando a ciência. Representam um suculento manjar à espera dos eruditos pareceres de omniscientes, onipotentes e presporrentes parapsicólogos – os escafandristas da alma.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 18


– O PARTO –
As crianças já dormem. Após comentarem as vivências do Paricatuba, Antônio, Maria Flor e Zé Potoca escutam umas canções na “Rádio Rural” quando, para o lado de cima do rio, zumbe um motor, arranhando o silêncio da noite como um desses grandes besouros cascudos. Porque barcos de todas as espécies cruzam constantemente a região, os ribeirinhos, habituados à velha rotina, pouco interesse demonstram ao vê-los subindo ou descendo o rio. Mas logo, dentre as trevas das vinte horas, os três percebem que a embarcação reduz a marcha e vai atracar. Antes dos outros, Presidente identifica o bote: – É o motor do Dedé Pajurá, teu cunhado – diz à esposa.

Alguém de bordo grita, saudando: – Ei, gente boa!...

– Que foi? Arguma dificurdade por lá? – responde, perguntando, Maria Flor, algo sobressaltada, porque sua irmã Conceição está em fim de gravidez e seus partos sempre dão encrenca.

– O seu Dedé mandou nós vim buscar a senhora, pois a Dona Conceição já tá querendo parir – comunica um caboclo muito forte, enquanto passa a corda do barco numa viga do alpendre.

– É, a esmola foi muito grande pru santo não desconfiar. Eu bem que tava achando esse dia de huje bom demais pra pobre. Havera de aparecer uma consumição pra desinquietar a gente. Vute!

Antônio hesita se vai ou não, mas a mulher, já se arrumando, decide: – Não. É mais melhor tu ficar. Eu não sei que hora eu vorto de vorta e os parto da mana são cheio de bestera. Deixa que eu vu com o Mundico e o Lili, meu sobrinho. A nuite tá bunita e se for perciso eles venham te buscar.

E viajam logo depois. Necessitam de uma hora para encostar na cobertura da casa, metade no fundo. Afinal, a “Fazenda Apuizeiro” não pode merecer o privilégio: soçobrou também, como todas as outras da várzea encharcada. Varando, penosamente, o buraco aberto no telhado, que agora funciona como porta, Maria Flor encontra, de cachimbão na boca, Dona Chica Aparadeira – a venerada obstetra daquele mundão liqüefeito. A mulata é danada de competente no ofício: até hoje só morreram oitenta e poucas crianças, além de trinta e sete gestantes, em todos os partos – mais de trezentos! – que ela já fez.

– Boa noite, Dona Chica! – saúda a recém-chegada.

– Boa noite, Mariinha! – responde carinhosamente, a robusta e grisalha cabocla. – Como é que o puvo de lá tão?

– Ei, Maria Flor! – interrompe o cunhado Dedé. – Eu mandei te buscar porque a Conceição queria tu aqui na ilharga dela.

Ao débil e tremeluzente clarão de uma fumacenta lamparina, que torna ainda menos acolhedor o atravancado ambiente, a única irmã da gestante encaminha-se para a rede, onde, com as mãos sobre o enorme ventre, geme a franzina e simpática senhora. Acariciando-lhe o rosto, pergunta, com voz doce: – Como tu tá, maninha? Tem coragem e muita fé em Nossa Senhora, que o teu parto vai ser muito legar! – Coragem eu tenho, mana, e fé também. O diabo é que essa dor disconforme, que acaba com o cristão – explica a parturiente, arquejante e apontando o abdomem.

Navegando, com o pesado corpanzil, através dos obstáculos – redes e cacarecos – espalhados com desordem pelo abafadiço recinto, a parteira, após fazer ligeiro exame, recomenda, segurando o malcheiroso cachimbo: – Eu acho mais melhor tu te alevantar, menina, e dar umas vorta pela sala, que é pro curumim poder arriar. A borsa das água já tá pra furar. Não demora muito pra tu te livrar dessa consumição.

Com grande dificuldade, auxiliada pela irmã, Conceição senta-se na rede. Entretanto, ao fazer esforço para ficar de pé, exclama: – Meu Jesus! Dona Chica! Eu me molhei toda!

Acaba de romper-se a bolsa amniótica, obrigando a “doutora” a trabalhar com a rapidez que lhe permite a obesidade. E dá algumas ordens, enquanto enxuga a mulher que se prostrou novamente, ofegando e repetindo “Ai! Ai! Ai!” – Dedé, ajeita as tauba e bota um candeeiro bem aqui.

Maria Flor recebe outra incumbência: – Pega a faca da cuzinha pra torar o imbigo.

A pequena “mesa obstétrica” não passa de uma espécie de jirau formado por dua tábuas largas, apoiadas sobre tamboretes, como se costuma fazer para colocar caixão de defunto. É aí que, a gemer alto e sob as vistas das assustadas crianças que despertaram com a movimentação, se coloca a parturiente. Quando ela se arruma como pode em cima do leito improvisado, a parteira chega a lamparina bem perto e anuncia, soltando uma baforada:

– Oba! Já tá coruando! Esse curninho não vai dar as dificurdade dos outro.

Sob o martírio das violentas contrações que expulsam o bebê do útero, como se fosse um intruso que passou nove meses sem pagar hospedagem, a gestante, apertando desesperadamente as mãos da irmã, traduz apenas em uivos soturnos, que procura abafar com um pano na boca, a terrível dor que lhe rasga as entranhas: – Uuuummm!... Uuuummm!...

Sentada num banco ante a mulher em posição ginecológica, a aparadeira “chama” a criança, movimentando rapidamente o dedo indicador na direção de seu próprio peito: – Anda, bichinho! Vumbora, muleque! Furça, que tu sai logo dessa porquera! Mais uma coisinha! Tá quase...

Esfregando as mãos na comprida saia suja para limpá-las um pouco, a pitoresca mulata agarra a cabeça, que já aparece bem, e puxa, com força, o corpinho que vem deslizando sem problemas. Afinal, dando duas boas palmadas na silenciosa criaturinha, proclama, triunfante, ao ouvir o berreiro inaugural: – Eita, gente bua! Taqui o curumim! É um baita macho e já nasceu mijando!... – Dedé, me dá logo uma dose de cana pra gente começar o festejo.

Maria Flor, mesmo tendo passado seis vezes por essa horrível experiência, está abalada e desabafa, com alívio: – Graças à Mãezinha do Céu eu fui capada e não posso mais parir! Tisconjuro! É uma judiação que nem égua agüenta! Vute!

– Qual o que, minha filha! – atalha Chica Aparadeira. – Larga desses dengo de muleca criada com vó. Tu sabe que isso aí é uma dor esquecida. Quem pariu huje, amanhã já quer fazer filho de nuvo, porque nem se alembra mais do que sofreu.

Agora, segurando o ainda palpitante cordão umbilical, pede à Maria: – Me dá aqui essa faca.

Com um só golpe do afiado instrumento, corta a ponte que ligava os organismos da mãe e do filho. Depois, apaga o cachimbo, deixa esfriar um pouco e coloca sobre a ferida o sarro nele contido. É um dos curativos umbilicais comuns na várzea, aliado ao pó de café, teia de aranha e outras imundícies.

Entregando à tia o recém-nascido, a parteira examina o útero quieto de Conceição e previne: – Se esse cuirão não deixar de preguiça, eu tiro a pelica dele a purso.

Decidida, passa a fazer enérgicas massagens sobre o ventre da mulher, esfregando nele as mãos gordas, de cima para baixo. Aos poucos, reiniciam-se as contrações e a placenta é expelida, sem que se concretize a assustadora ameaça de removê-la a pulso...

Ultimado o parto, transfere-se novamente a aliviada senhora para a rede, enquanto a obstetra se esparrama, cansada, numa cadeira.

– Taqui, Dona Chica, um bocó muquiado pra tirar o gusto da cachaça com limão – diz Dedé, apresentando-lhe o peixe num prato, farinha e um caneco cheio do forte aperitivo.

A caboclona faz a sua farra solitária, pois o dono da casa não tolera bebida alcoólica. É mais de meia-noite e o bebê dorme serenamente, cercado pelos quatro maninhos que o examinam, curiosos e enternecidos. Pela primeira vez, em cinco partos, Conceição escapou das hemorragias que quase a mataram em outras ocasiões.

Todavia, dentro de uma semana, desgraçadamente, sobreveio a compensação da sorte grande: com febre alta, convulsões e rigidez muscular, o anjinho... morreu!

Entre duas cachimbadas, ensina Dona Chica Aparadeira: – O curumi pegou o mar dos sete dia. Foi gorpe de ar.

O recém-nascido contraiu tétano umbilical. Foi sarro de cachimbo – contestariam os médicos da cidade.