sexta-feira, 18 de julho de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 20


– A TROVOADA –
Começou junho. Mais uma pasmosa carga de água ainda se adiciona ao formidável volume do rio que, neste amaldiçoado ano, parece multiplicar esforços para conseguir a definitiva expulsão dos andrajosos intrusos que prostituem suas sagradas margens. Não basta pô-los em alucinada, mas provisória fuga, porque é sempre a véspera de teimoso regresso às terras enxutas. É preciso matar essa gente profanadora, reduzi-la à quietude irreversível das sepulturas.

Forças ciclópicas somam perversidades, de mãos dadas, tramam e logo executam sinistros projetos para despejarem incalculáveis massas líquidas no grávido regaço do gigante, antipaticamente amarelado como todas as desgraças. As chuvas pesadíssimas e o degelo da cordilheira dos Andes funcionam como cúmplices diabólicos do vaidoso rio-mar, que talvez alimente o fantástico sonho de recuperar, um dia, perdidas grandezas. E não sendo suficiente essa abominável sementeira de misérias, até a lírica e sonsa Lua provoca as grandes marés e também se inscreve, como vil comparsa, na conspiração satânica.

Sabe-se de razoáveis suposições científicas em que seus eruditos autores presumem ter sido o Amazonas, há inúmeros milênios, um vasto mar interior, represado pelas montanhas andinas. Tal hipótese explica fatos sumamente intrigantes, como a presença da maior reserva salina do mundo – dez trilhões de toneladas! – descoberta quando se farejava petróleo no território amazonense. A teoria também joga alguma luz sobre os misteriosos “sambaquis” – conchas de mariscos amontoados em quantidades incríveis nos mais diversos quadrantes da região.

Bem. Calcula-se, então, que, com o tempo, aquele mar primitivo acabou escavando, na rocha, uma estreita saída, à altura de Óbidos, no Pará, vindo desembocar no Atlântico, pois antes ele seria tributário do oceano Pacífico, a correr de leste para oeste. Parece, assim, que a frustração por haverem perdido o velho e imperial “status”, rebaixado de mar para rio, se assanha perigosamente, de vez em quando, e as águas barrentas avançam, incontroláveis, tentando alagar tudo, tudo, tudo!

Após repartir as pequenas porções de capim entre as trinta reses sobreviventes, Zé Potoca aparece em casa e diz: – Encheu meio parmo e passou daquela marca de 1953, que tá naquele buraco do apuizeiro. Eu digo que nós inda vai pelejar e alevantar de novo a maromba da casa. Os boi já tão com as pata mergulhada. Vute! – Tisconjuro! – esperneia Maria Flor. Tu acha puco o murro que a gente demo, pra começar a andar feigo osga, saindo e entrando pelo buraco do telhado? Égua!

Antonio Presidente não opina. Sentado num banco, olha a mulher que tira as vísceras de um jaraqui. Sabe, porém, que o destrambelhado preto possui motivos para temer novas aflições. O assoalho já foi erguido nada menos de três vezes. Sempre esperançosos de que o nível não passasse de certo ponto, e para diminuir o tremendo calor interno, que faz durante o dia, ales suspenderam apenas aquilo que lhes parecia suficiente para enfrentar as marés maiores da próxima Lua.

Agora, eis a realidade: chegaram à situação de ter que caminhar inclinados, como velho gagá, para não baterem a cabeça nos caibros do teto da casa, a pouco mais de um metro e meio. Só podem sair ou entrar, executando uma cansativa ginástica: varam um furo aberto no telhado, que fica protegido por uma folha de zinco. Na cumeeira ainda se agasalham umas quatro galinhas magricelas. Mas na hora de lhes dar a única refeição diária – uns restos de babugem que as aves famintas ciscam até sumir o último farelo – tanto elas como os dois patos têm que comer dentro da habitação. Com o ossudo cachorro “Desacato” compõem uma caótica miniatura da arca de Noé.

Água por todo lado... Nada escapou do naufrágio... Até o barracão da ladainha está com meio metro de Amazonas em seu interior. Quase não se pode mencionar, em tempos assim, um gesto, uma atitude que não exija sacrifício pessoal. Nada é fácil. O rio complica a vida a tal ponto, faz o sofrimento descer a níveis tão individuais, sem respeitar idade ou condição, que aparenta possuir olhos, mãos, ouvidos – embora se saiba que jamais teve coração. O carrasco vibra sadicamente com os gemidos, exulta com as mortes e resmunga, zangado, quando vê um sorriso ocasional num rosto qualquer – sorriso que, em verdade, aproveita caminhos de lágrimas, enxutos por alguns instantes. Nem os defuntos estão livres das fúrias apocalípticas do rio: nas grandes enchentes, cemitérios comunitários são invadidos, recobertos, fazendo ossadas irem, de bubuia, na correnteza...

Mas os perseguidos enteados do destino têm pelo menos uma forma de vingança contra o invencível inimigo. Ao sentirem as advertências de uma necessidade fisiológica, estando a privada do quintal inteiramente no fundo, apanham a canoa e se afastam um pouco da casa. Firmando-se num galho de pau, eles pagam o humilhante imposto devido à natureza, mas o fazem com desdenhosa satisfação. Tal estado de espírito foi bem expresso por Zé Potoca, ao amarrar a montaria, de volta do “sanitário de macaco”: – O marvado desse Amazona afoga nós, mas nós joga mijo e bosta bem na venta dele! Toma, seu curno!

No momento do magro jantar – uma panela com dois jaraquis e uma pirapitinga pequena – depois de tossir muito, engasgado com um bago de farinha, Antônio Pergunta: – O que é que a gente fazemo pra arrumar madeira pra subir a maromba dos boi? Se eles demorar com as canela mergulhada, vão ficar dispilicando e o tutano perde a sustança. Eu não posso agora comprar nem um pedaço de pau, farta dinheiro.

Sem entusiasmo, a dona de casa lembra: – A Rádio Rurar deu huje uma mensagem que amanhã venham uns graúdo pra ver a enchente aqui na varja. Eu não acredito em promessero sem-vergonha, mas como nós tamo liso que nem jacundá, vamu ver se eles arruma umas tauba pra gente.

Atirando um espinhaço de peixe para o cachorro, o afilhado intervém, desiludido por tantas decepções anteriores: – Que nada, minha madrinha! Se fusse ano de ileição, eles sortava dinheiro pra pegar o votinho da gente. Mas não é. – Tá bom, mas o jeito e esprementar – pondera Antônio. Me sortaram essa: o Nhuquinha Catauari arrumou na cidade seis dúzia de itaúba. Não sei quem deu pra ele.

Combina-se, afinal, que, se aparecer a anunciada caravana, será solicitado aos visitantes o material necessário ao levantamento do jirau externo. É outra das malvadezas das inundações: quando a maromba fica recoberta pelas águas, as canelas das reses vão perdendo os pelos protetores. Menos resistência passam a ter os debilitados animais para se manterem de pé, desde que a medula óssea é afetada de alguma forma pela contínua imersão dos membros. Além disso, persiste a constante ameaça das vorazes piranhas e das perigosas trairambóias – umas e outras com tradicional vocação para o cangaço assassino.

Quando se recolhem, nessa noite, como uma vaga esperança de conseguir que os políticos lhes arrumem alguma coisa, o calor, que foi fora do comum durante o dia inteiro, ainda está sufocante como o custo de vida. Com o diminuto espaço disponível para a circulação do ar, e sem uma brisa sequer, o martírio aumenta. Essas criaturas somente conseguirão dormir porque o corpo moído e a alma retalhada são quase insensíveis à temperatura de fornalha e ao aperreio das muriçocas – suplício que nem a sobrenatural imaginação de Dante Alighierii meteu entre as torturas infernais, quando ele não deve faltar ali. O gênio de “A Divina Comédia” teria certamente entregue os seus mais rancorosos inimigos à fúria sanguinária dos alucinantes mosquitos, capazes de varar tecidos e encerados para picarem o infeliz.

Olhando o céu escuro, Zé Potoca avisa: – Ih! Paresque vai cair um tempo feio, de cima! Tem relampo que nem presta. Vamu logo amarrar bem essa fulha de zinco que é pru vento não arrancar ela.

Usando as mãos como platibanda sobre os olhos, Presidente examina a noite, calada como criança que acabou de fazer grave danação e concorda com o vaqueiro: – Esse calurão que fez huje era mesmo sinar de truvuada. Vamu se perparar que o temporar vem de com furça e não demora.

E recolhem as aves. E fixam mais firmemente o zinco do teto. E põem a montaria bem abrigada. E enrolam malhadeiras. Depois esperam, deitados, os ribombos do céu e os rugidos das águas tipitingas, que os envolvem como bárbaros sitiando uma cidade indefesa.

Ainda não são nove horas quando o primeiro trovão ronca, surdo, longínquo, como anúncio de terra caída quando a Boiúna fala grosso, lá embaixo. Esses formidáveis vendavais amazônicos parecem mulher em trabalho de parto. A princípio muito espaçadas, as colicas da Natureza prestes a expelir legiões de demônios de suas negras entranhas, revelam-se através de urros intermitentes, com duração e potência variáveis. Todavia, na hora crucial do nascimento, as contrações quase não cessam mais e os cegantes relâmpagos clareiam sinistramente o amedrontador cenário. Afinal, a parteira precisa de luz para trabalhar e os faróis do firmamento se acendem providencialmente na ocasião do aperreio.

Também desta vez a escrita funciona. Como quem não quer nada, numa tentativa inútil de iludir os calejados caboclos, o vento oeste ou “de cima” começa a soprar, mansinho, arremedando brisa e crepúsculo, leque de donzela ou cantiga de juruti viúva. Mas, aos poucos e depressa, vai ganhando tutano. O primeiro corisco estala e o escangalho de uma árvore desabando reboa pela fazenda alagada.

– Caiu pau no mato! A coisa vai ser feia, mas Nossa Senhora e Santa Barbra vai livrar nós! – diz, medrosa, Maria Flor, embalando-se na rede com uma criança enferma.

Pela tarimba da vida, os varzeiros sabem que, ao despencar um gigante da floresta quando se inaugura uma procela, quando o vento ainda está fraquinho, podem ficar certos de que terão uma furiosa borrasca pela proa. É a sabedoria dos ignorantes sem ciência de livros.

Realmente, logo o tufão se estusiasma, convida todos os ventinhos vagabundos a engrossá-lo e, dentro de quinze minutos, parece que um milhão de Boiúnas atiça, bufando, igual número de foles gigantescos, a urrarem e a unirem os clarões de seus olhos horrendos. A noite é, agora, um festival medonhamente belo de chuva, trovões, assovios, raios e relâmpagos.

Os gregos costumavam colocar sobre os telhados de suas casas as líricas “harpas eólicas”: queriam dormir ouvindo a música do vento a tanger as cordas dos engenhosos brinquedos... A poética tradição seria impraticável nas várzeas amazônicas, pois numa noite de turbulências como as de agora, se escutaria um soturno réquiem, uma agourenta liturgia de enterros, caso o instrumento não voasse, antes, desfeito em farelos...

A tremenda tempestade tropical arroja-se em cima do mundo submerso e o faz com aquela raiva que reconduz o homem à sua absoluta insignificância diante dos petardos cósmicos sobre si desencadeados. A própria luz irreal das claridades que riscam o céu incute nos corações apavorados um terror agônico, um cheiro de morte, um antegosto de inferno. Se presenciasse uma dessas assombrosas convulsões da bacia amazônica, Abraão Lincoln certamente repetiria a sua frase famosa: “Em determinados momentos eu caio de joelhos por ter a convicção absoluta de que não me resta outra coisa a fazer.”

Transidos de um medo atávico, esmagados pela total submissão impotente ante os elementos em colérico descontrole, os caboclos não mais pronunciam qualquer palavra. Cada um reza sozinho, sentindo frio na espinha quando ouve o estalido seco de um raio. Eles se encolhem, metem os dedos nos ouvidos e, de olhos fechados, escutam com menor intensidade o abalador estrondo que chega logo depois da faísca elétrica.

De repente, sem um convite, por iniciativa pessoal e simultânea, Antônio, Maria Flor e Zé Potoca jogam-se, prostrados, sobre o chão úmido da casa: nunca ouviram falar de Lincoln, mas se ajoelham porque o instinto lhes assegura que não existe outro adequado procedimento para as circunstâncias. Ao frouxo e tremelicante clarão de um candeeiro, os três adultos oram, de mãos postas e rostos que refletem o terror interno. Começaram a rezar assim porque uma descarga atmosférica pareceu ter atingido a própria residência, perigosamente sacudida pelo rugido pavoroso de um trovão mais potente que os mil anteriores.

Espicaçado em seu constante humor azedo pela colossal tormenta, o Amazonas aproveita o ensejo para lançar água suja dentro dos miseráveis tapiris naufragados. Com escarcéu, ele se joga de encontro às paredes, molhando tudo – pessoas e trastes. E, a uma rajada mais severa do fortíssimo vento de cima, a folha de zinco, que se agitava barulhentamente, batendo nas ripas da cobertura, solta-se de vez!

Enquanto a chuva se despeja, livre, pelo rombo aberto, Zé Potoca, rápido, transpõe a passagem rasgada no teto e logo apanha a preciosa proteção, que já ia descer, de bubuia, na correnteza. Com muita dificuldade, ele e o padrinho repõem a “porta” em seu lugar, prendendo-a com a firmeza possível. Todavia, a residência está inteiramente inundada.

São duas horas de agonias, sustos, preces e ansiedades. Só aí por volta da meia-noite o temporal começa a dar sinais de que não tardará muito a sossegar, cansado de tanta brutalidade. Quando, já de madrugada, voltou a calmaria – uma espécie de paz de cemitério – Maria Flor, acariciando a filhinha febril, tem um derradeiro comentário: – Os bacana da cidade fica se mardizendo quando uma goteira besta no telhado pinga chuvisco na venta deles. Eu queria era ver aqueles curno pelejar com um trivuada disconforme como essa que a gente peguemo. Morria tudinho, só de fruxura...

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