Por Vladimir Aras - Procurador Regional da República
Nos anos 1990, Hildebrando Pascoal foi acusado de cometer corrupção eleitoral para eleger-se, de liderar um grupo de extermínio e de comandar um esquema de tráfico de drogas no Acre.
A narrativa do longo caminho percorrido pelo Ministério Público e pela Polícia Federal para investigá-lo e levá-lo a julgamento daria um filme. E seria exemplo de como um preceito de imunidade quase converteu-se num privilégio de impunidade.
Hildebrando Pascoal era deputado federal, eleito em 1998. Antes fora deputado estadual no Acre por um mandato. Tinha patente de coronel, mas o que era mesmo era um criminoso. Mandou matar um bombeiro e um policial civil e foi condenado por isso. Ficou conhecido pela alcunha de deputado da motosserra, instrumento que teria sido usado para desmembrar, vivo, o sr. Agilson Firmino, vulgo “Baiano”.
Saltemos vinte anos no tempo.
Na ADI 5526, julgada em 11/out em Brasília, os ministros decidiram por 6 a 5 que o Senado Federal e a Câmara dos Deputados podem rever decisões cautelares penais do tribunal que antigamente se chamava “Supremo”.
Em outras palavras, cautelares penais pessoais, previstas no art. 319 do CPP, aplicadas pelo STF a parlamentares federais podem ser cassadas pela casa competente do Congresso Nacional.
A partir de então temos uma nova corte no País: o “Subpremo”. É aquele tribunal que não dá mais a última palavra sobre questões judiciais em sede penal.
Sempre que uma medida cautelar for aplicada a um deputado federal ou a um senador, haverá um processo de revisão política (e isto é muito grave) da decisão judicial. O Legislativo decidirá sobre sua manutenção ou não. A Casa de origem do parlamentar deverá votar. Ao fazê-lo terá em conta os elementos fáticos dos autos e o interesse da Justiça Pública na preservação de provas ou prevenção de fugas? Ou decidirá por sua mera conveniência política, ao sabor das maiorias?
Curioso notar que não é a primeira vez que vemos juízes da Corte mais alta do País diante da bacia de Pilatos. Na ação penal 470, um dos temas quentes foi a decisão do STF de deixar ou não à Câmara dos Deputados a tarefa de declarar a perda do mandato de deputados que haviam sido condenados definitivamente pela Corte. Nos casos de Natan Donadon em 2010 (ação penal 396) e de Ivo Cassol em 2013 (ação penal 565), o STF lavou suas mãos. Deixou a decisão ao Congresso. Embora condenado a mais de 13 anos de reclusão por peculato e formação de quadrilha, Donadon teve seu mandato mantido pela Câmara em votação secreta. Só veio a perdê-lo em segunda votação, aberta, diante do vexame que era ter um corrupto cumprindo pena em regime fechado como titular de mandato parlamentar.
Mas a vergonha passou. Em 2016, na ação penal 971 (Pet 6341), o deputado federal Celso Jacob, do Rio de Janeiro, teve sua condenação confirmada pelo STF. Mas não perdeu o mandato (art. 92, inciso I, CP). Continua exercendo placidamente sua atividade parlamentar na Câmara Baixa e em agosto deste ano votou contra o processamento da denúncia do PGR contra o presidente Michel Temer.
Quem fica surpreso?
O notório político Paulo Salim Maluf, condenado na França e também pelo STF, por crimes de lavagem de dinheiro e contra a Administração Pública, segue deputado federal. Vota e decide os destinos da Nação.
Na véspera de Nossa Senhora da Aparecida, não se operou milagre algum em Brasília. Fracassou o STF na guarda da Constituição, ao fazer leitura estreita e limitada de um só artigo do texto de 1988, olvidando a evolução social no campo da transparência, da responsividade e da probidade, fazendo ouvidos moucos à progressão da concepção jurídica sobre as cautelares penais e ignorando outros tantos preceitos da mesma Carta, entre eles o da supremacia do Judiciário (art. 5º, XXXV) e o da probidade (art. 37).
Alonjando-se dos Princípios de Bangalore sobre Conduta Judicial, o Tribunal também prestou desserviço ao valor da independência do Judiciário e ao princípio da isonomia. Todos os cidadãos, servidores públicos ou não, autoridades ou não, merecem tratamento igualitário do Judiciário, sem privilégios e sem a extensão de privilégios, no campo penal. O STF perdeu a oportunidade de recusar-se a ampliar um privilégio, desprezando, com isto, a regra matriz da igualdade entre todos.
Resta ver como esse julgado influenciará (mal) os Tribunais de Justiça dos 26 Estados do País e do Distrito Federal, quando essas cortes tiverem de decidir sobre cautelares penais aplicáveis a deputados estaduais corruptos, homicidas, membros de organizações criminosas ou estupradores, se é que existem. Espero que não existam.
O pretexto é o art. 53, §2º, da CF, que não diz o que o STF decidiu. Diz menos. Mas o Tribunal preferiu alargar os poderes do Congresso, apequenando os seus, o que é muito paradoxal, porque isto se deu na discussão de tema num campo que lhe é exclusivo: o processo penal. Casas Legislativas não resolvem (bem) casos concretos de mera criminalidade. No único exemplo constitucional em que o Senado se converte em tribunal, para o juízo político (político, frise-se!) do impeachment, a presidência desse tribunal anômalo cabe justamente ao presidente do STF. Isso deve significar alguma coisa… Mas o contrário, decisões judiciais sendo revistas em concreto pelo Parlamento, é algo raro e por isso mesmo somente cabível em situações de “superlativa excepcionalidade”, como diria um dos ministros vencedores.
No Estado de Direito deve haver soluções jurisdicionais (isentas e objetivamente imparciais) para situações de grave criminalidade ou de séria improbidade, inclusive quando se tenha presente a urgência. Este não é um reino da política. Esta é a arena dos juízes. Juízes não podem abdicar do dever de decidir nem buscar o conforto político de decisões anódinas. Alguns ministros gostam de dizer que o STF é o último tribunal da República e que lhe cabe assumir posturas contramajoritárias. É verdade e assim deve ser! Mas cumpre-lhe ter coerência. Tais posições jurisdicionais também devem ser adotadas contra as maiorias políticas, notadamente em questões puramente jurídico-penais.
A prestação de boa justiça é o único dever dos tribunais. Ruim ver o divórcio entre o que se espera e o que se tem. Péssimo ver a mistura de considerações políticas (ou de governabilidade) ou de boa convivência entre Poderes, quando se está diante, pura e simplesmente, da necessidade de decidir sobre a resultado útil de um processo penal.
As instituições do Estado precisam da confiança dos cidadãos. Ao julgar erraticamente essa ADI, o STF perdeu uma parte substancial da que merecia dos brasileiros.
Voltemos ao fim dos anos 1990. Hildebrando Pascoal era deputado federal. Fosse hoje, não poderia ser preso nem afastado pelo Judiciário. Poderia aprovar as leis que você e eu estaríamos obrigados a cumprir. Uma votação por maioria na Câmara dos Deputados poderia livrá-lo dos dissabores de medidas cautelares no processo penal. Provas poderiam ser destruídas; testemunhas ameaçadas, ou exterminadas (como duas acabaram sendo) e a fuga do País seria uma opção.
Esse julgamento tortuoso do Subpremo podia ter como sujeito Hildebrando, ou talvez Donadon. Mas era uma ADI, processo objetivo, que não devia ter nome. Mas tinha.
Nos anos 1990, Hildebrando Pascoal foi acusado de cometer corrupção eleitoral para eleger-se, de liderar um grupo de extermínio e de comandar um esquema de tráfico de drogas no Acre.
A narrativa do longo caminho percorrido pelo Ministério Público e pela Polícia Federal para investigá-lo e levá-lo a julgamento daria um filme. E seria exemplo de como um preceito de imunidade quase converteu-se num privilégio de impunidade.
Hildebrando Pascoal era deputado federal, eleito em 1998. Antes fora deputado estadual no Acre por um mandato. Tinha patente de coronel, mas o que era mesmo era um criminoso. Mandou matar um bombeiro e um policial civil e foi condenado por isso. Ficou conhecido pela alcunha de deputado da motosserra, instrumento que teria sido usado para desmembrar, vivo, o sr. Agilson Firmino, vulgo “Baiano”.
Saltemos vinte anos no tempo.
Na ADI 5526, julgada em 11/out em Brasília, os ministros decidiram por 6 a 5 que o Senado Federal e a Câmara dos Deputados podem rever decisões cautelares penais do tribunal que antigamente se chamava “Supremo”.
Em outras palavras, cautelares penais pessoais, previstas no art. 319 do CPP, aplicadas pelo STF a parlamentares federais podem ser cassadas pela casa competente do Congresso Nacional.
A partir de então temos uma nova corte no País: o “Subpremo”. É aquele tribunal que não dá mais a última palavra sobre questões judiciais em sede penal.
Sempre que uma medida cautelar for aplicada a um deputado federal ou a um senador, haverá um processo de revisão política (e isto é muito grave) da decisão judicial. O Legislativo decidirá sobre sua manutenção ou não. A Casa de origem do parlamentar deverá votar. Ao fazê-lo terá em conta os elementos fáticos dos autos e o interesse da Justiça Pública na preservação de provas ou prevenção de fugas? Ou decidirá por sua mera conveniência política, ao sabor das maiorias?
Curioso notar que não é a primeira vez que vemos juízes da Corte mais alta do País diante da bacia de Pilatos. Na ação penal 470, um dos temas quentes foi a decisão do STF de deixar ou não à Câmara dos Deputados a tarefa de declarar a perda do mandato de deputados que haviam sido condenados definitivamente pela Corte. Nos casos de Natan Donadon em 2010 (ação penal 396) e de Ivo Cassol em 2013 (ação penal 565), o STF lavou suas mãos. Deixou a decisão ao Congresso. Embora condenado a mais de 13 anos de reclusão por peculato e formação de quadrilha, Donadon teve seu mandato mantido pela Câmara em votação secreta. Só veio a perdê-lo em segunda votação, aberta, diante do vexame que era ter um corrupto cumprindo pena em regime fechado como titular de mandato parlamentar.
Mas a vergonha passou. Em 2016, na ação penal 971 (Pet 6341), o deputado federal Celso Jacob, do Rio de Janeiro, teve sua condenação confirmada pelo STF. Mas não perdeu o mandato (art. 92, inciso I, CP). Continua exercendo placidamente sua atividade parlamentar na Câmara Baixa e em agosto deste ano votou contra o processamento da denúncia do PGR contra o presidente Michel Temer.
Quem fica surpreso?
O notório político Paulo Salim Maluf, condenado na França e também pelo STF, por crimes de lavagem de dinheiro e contra a Administração Pública, segue deputado federal. Vota e decide os destinos da Nação.
Na véspera de Nossa Senhora da Aparecida, não se operou milagre algum em Brasília. Fracassou o STF na guarda da Constituição, ao fazer leitura estreita e limitada de um só artigo do texto de 1988, olvidando a evolução social no campo da transparência, da responsividade e da probidade, fazendo ouvidos moucos à progressão da concepção jurídica sobre as cautelares penais e ignorando outros tantos preceitos da mesma Carta, entre eles o da supremacia do Judiciário (art. 5º, XXXV) e o da probidade (art. 37).
Alonjando-se dos Princípios de Bangalore sobre Conduta Judicial, o Tribunal também prestou desserviço ao valor da independência do Judiciário e ao princípio da isonomia. Todos os cidadãos, servidores públicos ou não, autoridades ou não, merecem tratamento igualitário do Judiciário, sem privilégios e sem a extensão de privilégios, no campo penal. O STF perdeu a oportunidade de recusar-se a ampliar um privilégio, desprezando, com isto, a regra matriz da igualdade entre todos.
Resta ver como esse julgado influenciará (mal) os Tribunais de Justiça dos 26 Estados do País e do Distrito Federal, quando essas cortes tiverem de decidir sobre cautelares penais aplicáveis a deputados estaduais corruptos, homicidas, membros de organizações criminosas ou estupradores, se é que existem. Espero que não existam.
O pretexto é o art. 53, §2º, da CF, que não diz o que o STF decidiu. Diz menos. Mas o Tribunal preferiu alargar os poderes do Congresso, apequenando os seus, o que é muito paradoxal, porque isto se deu na discussão de tema num campo que lhe é exclusivo: o processo penal. Casas Legislativas não resolvem (bem) casos concretos de mera criminalidade. No único exemplo constitucional em que o Senado se converte em tribunal, para o juízo político (político, frise-se!) do impeachment, a presidência desse tribunal anômalo cabe justamente ao presidente do STF. Isso deve significar alguma coisa… Mas o contrário, decisões judiciais sendo revistas em concreto pelo Parlamento, é algo raro e por isso mesmo somente cabível em situações de “superlativa excepcionalidade”, como diria um dos ministros vencedores.
No Estado de Direito deve haver soluções jurisdicionais (isentas e objetivamente imparciais) para situações de grave criminalidade ou de séria improbidade, inclusive quando se tenha presente a urgência. Este não é um reino da política. Esta é a arena dos juízes. Juízes não podem abdicar do dever de decidir nem buscar o conforto político de decisões anódinas. Alguns ministros gostam de dizer que o STF é o último tribunal da República e que lhe cabe assumir posturas contramajoritárias. É verdade e assim deve ser! Mas cumpre-lhe ter coerência. Tais posições jurisdicionais também devem ser adotadas contra as maiorias políticas, notadamente em questões puramente jurídico-penais.
A prestação de boa justiça é o único dever dos tribunais. Ruim ver o divórcio entre o que se espera e o que se tem. Péssimo ver a mistura de considerações políticas (ou de governabilidade) ou de boa convivência entre Poderes, quando se está diante, pura e simplesmente, da necessidade de decidir sobre a resultado útil de um processo penal.
As instituições do Estado precisam da confiança dos cidadãos. Ao julgar erraticamente essa ADI, o STF perdeu uma parte substancial da que merecia dos brasileiros.
Voltemos ao fim dos anos 1990. Hildebrando Pascoal era deputado federal. Fosse hoje, não poderia ser preso nem afastado pelo Judiciário. Poderia aprovar as leis que você e eu estaríamos obrigados a cumprir. Uma votação por maioria na Câmara dos Deputados poderia livrá-lo dos dissabores de medidas cautelares no processo penal. Provas poderiam ser destruídas; testemunhas ameaçadas, ou exterminadas (como duas acabaram sendo) e a fuga do País seria uma opção.
Esse julgamento tortuoso do Subpremo podia ter como sujeito Hildebrando, ou talvez Donadon. Mas era uma ADI, processo objetivo, que não devia ter nome. Mas tinha.
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