Editorial - Estadão
Na sexta-feira passada, um oficial de Justiça foi ao Palácio dos Bandeirantes para notificar o governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, de uma decisão judicial. Voltou com as mãos abanando. Segundo o relato do oficial de Justiça, informaram-lhe que o governador não estava presente e que a notificação não seria recebida por qualquer funcionário do Palácio. A esquiva do governador não foi o fato mais esdrúxulo do caso. Esquisita mesmo foi a decisão do juiz da qual o oficial de Justiça pretendia dar ciência ao governador. Liminarmente, o juiz Paulo Furtado de Oliveira Filho mandou suspender o reajuste das tarifas de trem e metrô, nos bilhetes integrados com os ônibus da capital paulista e nos bilhetes temporais. Como o magistrado explanou, ele não considerou justo o aumento; logo, não poderia valer.
Impensável em outros tempos, tal ousadia judicial vem se tornando rotina nos dias de hoje. Membros do Poder Judiciário fazem vista grossa aos princípios comezinhos do Estado Democrático de Direito – entre eles, a necessária separação dos Poderes – e se julgam legitimados a administrar o Estado, a cidade, a vida dos cidadãos.
O desrespeito à separação dos Poderes não é um descumprimento de uma regra formal, como se fosse uma infração de menor gravidade. Quando um juiz arroga para si competências do Poder Executivo, ele está violando a própria democracia, já que as decisões do Executivo devem ser tomadas por quem a população, pelo voto direto, escolheu.
Ainda que a fundamentação da decisão esteja repleta de boas intenções, é de um autoritarismo vulgar a suspensão do aumento da tarifa simplesmente porque o magistrado não considerou “justo” o reajuste. Ora, a aprovação no concurso público não confere ao juiz a potestade de transformar seus critérios subjetivos em lei. Deve o magistrado cumprir e fazer cumprir a lei, ponto final. Transpor esse limite é manifestação inequívoca de desalinho com sua função institucional.
O valor das tarifas públicas é um elemento de grande importância social. A decisão de aumentar ou congelar seu preço não pode, portanto, ser isolada da correspondente responsabilidade política. Mas é o que ocorre quando, por exemplo, o Judiciário determina a tarifa dos serviços públicos. É o governador quem deve decidir a tarifa do metrô e do trem e é o mesmo governador quem deve responder pelas consequências políticas de sua decisão. Quando um juiz, sem ter razões objetivas para tanto, retira da esfera política o aumento da tarifa, ele não apenas subtrai o poder do governador, como restringe o campo de decisão da própria população. Comporta-se, portanto, como um autocrata.
Há quem pretenda justificar essas interferências do Judiciário com o argumento de que a Constituição de 1988 permite esse tipo de atuação, pois, mais do que o cumprimento formal das competências de cada órgão do governo, ela privilegiaria a adoção da melhor decisão para a população. Esse tipo de raciocínio carrega em si o germe comum a todo autoritarismo: a crença de que uns poucos sabem qual é a melhor decisão para todos. No caso aqui tratado, o iluminado seria o juiz, capaz de proferir o veredicto final sobre a bondade e a justiça das decisões do governador.
Certamente, a Constituição de 1988 tem muitos erros, que não raro dificultam o bom funcionamento do Estado, mas desse equívoco ela está imune. A Carta Magna estabelece e protege a separação dos Poderes, como forma de preservar a democracia. O equívoco de achar que é possível cumprir a Constituição ignorando alguns preceitos fundamentais do Estado brasileiro – como a separação de Poderes, por exemplo – é decorrência da prática de interpretar o texto constitucional almejando, mais do que cumprir a lei, fazer valer o que entende ser a sua própria lei.
Como é evidente, esse tipo de mentalidade não se coaduna com a democracia. Hoje são os juízes que abusam. Amanhã, como alertava Pedro Aleixo, será o guarda da esquina.
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