Editorial - Estadão
O que está por trás dos massacres nas prisões do Amazonas e de Roraima – que chocaram o País e podem se repetir em outros Estados – é algo ainda mais ameaçador do que se poderia imaginar, como mostra reportagem do Estado publicada no domingo. Ele está expresso tanto nos altos níveis de organização e planejamento dos grupos criminosos que controlam de fato as penitenciárias como na luta que os maiores deles travam pelo predomínio no sistema e, fora dele, pelo controle do tráfico de drogas. Em outras palavras, os presídios, que deveriam ser território sob a guarda e cuidados exclusivos do Estado – até porque é para lá que são mandados aqueles que atentam contra a segurança dos cidadãos –, tornaram-se feudos dos bandidos. As autoridades carcerárias, que lá deveriam manter a ordem e a disciplina, são hoje subordinadas, voluntariamente ou não, àqueles que fazem o favor de se intitular presos. São os bandidos que mandam e as autoridades, querendo ou não, que obedecem. De acordo com autoridades policiais e do Ministério Público que investigam o crime organizado, são 27 os grupos que agem nas prisões. Os dois principais protagonistas dessa “guerra” – o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, o maior deles, e o Comando Vermelho (CV), do Rio, que vem logo em seguida – buscam se aliar com os outros 25. Entre estes, começa a se destacar a Família do Norte (FDN), que se aliou ao CV e com ele promoveu o massacre de integrantes do PCC no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus, no dia 1.º. Logo seguido, como vingança do PCC, pelo da Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Roraima.
O que está em jogo é o controle do tráfico de drogas e armas nas fronteiras com Paraguai, Bolívia, Peru e Colômbia. Um negócio milionário, que explica a ferocidade da disputa. O assassinato pelo PCC de um importante traficante que atuava na fronteira com o Paraguai, em junho do ano passado, reforçou sua posição naquela área e provocou a ruptura com o CV, até então seu aliado, e iniciou a disputa entre os dois grupos.
Hoje o grande objetivo dos dois é o controle do tráfico na região amazônica, vizinha dos três maiores produtores de cocaína do mundo: Colômbia, Peru e Bolívia. Além da droga, a Colômbia teria se transformado também, junto com o Paraguai, em outra importante entrada de armas, vendidas por dissidentes das Farc que acabam de assinar acordo de paz com o governo de Bogotá. E nesse ponto a posição dos bandidos ligados à FDN, forte na região e aliada do CV, é decisiva na luta contra o PCC.
O sistema penitenciário continua decisivo para todos esses grupos, porque é a sua principal base de comando e planejamento – que lhes permite agir sob a proteção do Estado, ou como se o Estado fossem –, e cujo domínio é facilitado pelas condições degradantes em que vive a massa dos presos. Mas o grosso de seus negócios há muito está fora dele. Na mais lucrativa atividade criminosa, que é o tráfico de drogas, que para continuar prosperando exige a facilidade de passagem por aquelas fronteiras. Esse ponto precisa estar sempre presente para se entender a natureza e a magnitude do problema com que o País está às voltas.
Esses grupos criminosos surgiram, organizaram-se, agigantaram-se, multiplicaram-se e mudaram seu ramo de “negócios” – a ponto de se tornarem uma ameaça de altíssimo grau à segurança pública – sob as barbas das autoridades, dentro de espaços sob a responsabilidade delas. Como foi possível ninguém ter visto nada, ao longo de décadas? Ou ter fechado os olhos?
Nossos cartéis de drogas estão aí, traficando em escala cada vez maior e, no momento, travando uma cruel disputa que envolve, em combinações diversas, 27 grupos. Uma guerra de ferocidade típica do que se sabe da ação do tráfico em outros países, e na qual esse grupos desafiam abertamente o Estado, e zombam dele. A análise que faz a desembargadora Ivana David, do Tribunal de Justiça de São Paulo, é precisa. Nos massacres, diz ela, os presos agem abertamente, sem temor: “Eles matam e filmam como se ninguém, nenhuma autoridade estivesse ali. Eles mostram para a sociedade que não têm medo de retaliações”. Essa falta de temor mínimo do Estado é altamente preocupante.
Um desafio que não pode ficar sem resposta. E não uma resposta qualquer, para inglês ver. Mas uma forte o suficiente – e articulada pelos Três Poderes, em todos os seus níveis – para começar a repor as coisas em seus devidos lugares. E o mais rápido possível.
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