sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulos 25 e 26 (final)


Capítulo 25
  A VAZANTE –
O Amazonas está ridicularizando todas as crendices, tradições e esperanças dos varzeiros neste inacreditável 1971. Já se chegou ao dia de Santo Antônio, 13 de junho, e o rio ainda continua fazendo misérias. Além de não ter vazado, prossegue subindo, como se o Governador dos Mundos houvesse permitido uma punitiva e catastrófica subversão de leis que criou para serem respeitadas. A anormalidade, sem precedentes conhecidos, leva o filósofo Zé Potoca a emitir parecer:

– Égua, meu padrinho! Nem Santo Antônio, amigão dos caboco, deu jeito no corno desse Amazona, que nunca tinha enchido no dia dele. Paresque Deus enturtou muito a cuia esse ano e não tá com pressa de endireitar a bichona. Vute!...

– Nunca a gente vimo uma marvadeza dessa – admite Presidente. Os tempo tá mudado. Ariramba cantou pra se danar, a Lua só véve virada pro lado das terra e o diabo do rio nem dá bola pra nada disso, que sempre foi sinar certo de vazante.

Um dos axiomas da várzea é este: o pior de qualquer enchente será sempre uma demorada vazante. Quando o declínio do rio se processa com desesperadora lentidão, aos centímetros, tudo o que não presta e ainda não havia aparecido acaba dando um ar de sua graça ou um vento maldito de sua desgraça: epidemias, falta quase total de alimentos, bois sobreviventes caindo, fracos, e morrendo aos lotes.

Mas a esperança, embora pequenina e impotente como brasa de cigarro em noite borrascosa, jamais deserta dos corações supliciados. Encarapitando-se nas marombas erguidas várias vezes, os caboclos sempre nutrem o sonho de que já no dia seguinte as águas comecem a descer. E só abandonam mesmo os tapiris quando não lhes é possível levantar sequer mais um palmo de assoalho, porque ele ficará praticamente unido à cobertura. Talvez Euclides da Cunha sentenciasse que o varzeiro é, antes de tudo, um otimista ou um teimoso, pois não há diferença acentuada entre os dois estados d’alma.

Ainda assim, milhares desses esfarrapados filhos de Deus são, de repente, constrangidos a largar tudo, com uma trouxa ou um panacu às costas. Vão buscar abrigo nas terras altas ou, em última instância, na cidade hostil que nada lhes pode oferecer além de compadecidos olhares e discursos bombásticos nas cúpulas deliberantes. É, esse, um êxodo talvez mais doloroso do que o provocado pelas guerras fratricidas: nestas, os homens fogem com um medo imenso das brutalidades dos seus semelhantes, enquanto nas enchentes assassinas os frangalhos humanos – verdadeiros bichos que conduzem uma alma imortal! – correm, espavoridos, sem pão, sem lar, sem fé, sem saúde, amaldiçoando o rio e os deuses sem coração. Mas o varzeiro acaba sendo, curiosamente, uma perfeita imagem da folclórica e masoquista “mulher de malandro”: quanto mais apanha e é expulso de casa, menos desejo tem de abandonar o cruel companheiro. Afinal, selvagem como for, ele sempre lhe fornece o sustento e, por isso, a pisoteada vítima do cafajeste geralmente volta para mais uma reconciliação, embora houvesse partido a fumegar de ódio...

Na “Fazenda Apuizeiro” – como em todas as demais – tudo é desolação, doença, desconforto. Os políticos, naturalmente, não cumpriram a promessa da madeira para a maromba... Todos estão fortemente gripados, a gemer, com febre e frio, no fundo de redes malcheirosas. Duas das crianças ainda receberam um diabólico acréscimo às suas espantosas agonias: uma desgraçada e horrível “tosse da guariba” provoca-lhes asfixiantes acessos em que os olhos se esbugalham e a mãe chora, sem saber como acudi-las. Coqueluche, sarampo, catapora, tifo e gripe, além de outros simpáticos integrantes de um alegre cortejo de pragas, andam varrendo o Baixo Amazonas. O “estranho mal” a que a emissora radiofônica de Santarém fizera referências, e que estaria dizimando reses em outras áreas, já fulminou quase todo o plantel de Antônio Presidente. Escaparam apenas seis animais, porque, para não os perder, o dono decidiu conduzi-los à terra firme. A medida, no entanto, não impediu que ele recebesse um recadinho: – O seu Nenen Tangará mandou dizer pro senhor, seu Presidente, que um boi morreu, onte, de erva venenosa. Nós achemo ele já meio podre e joguemo no rio – informa o emissário.

Como terá de entregar ao proprietário do campo de invernada um dos animais para pagar o aluguel, o marido de Dona Maria Flor ficará somente com quatro unidades. Isto, se não vierem mais surpresas até a vazante.

Há um estimulante açodamento nos gabinetes refrigerados onde se decidem os destinos das multidões. Todos os inquietos prefeitos da vastíssima área flagelada pela descomunal inundação acabam de decretar, ante contratados fotógrafos, “estado de calamidade pública” em seus respectivos municípios. Isso lhes dará direito ao recebimento de gordas verbas, a fundo perdido. Ontem, o governador sobrevoou – pela segunda vez, neste ano – a região submersa. Contam os jornais da oposição, a propósito da caridosa providência oficial, uma historinha que o partido majoritário desmente, indignado.

Em certo instante do passeio aéreo, olhando através da janela de vidro, o governador apontou alguma coisa lá embaixo e fez a pergunta:

– Mas por que esses caboclos cabeçudos teimam em fincar pé nas casas afundadas e não se mudam para aquela praia logo ali, tão grande e enxuta?

Respeitosamente, um dos assessores, gaguejando um pouco, esclareceu: – Não... Não é praia propriamente, Excelência. São as águas barrentas do Amazonas que, à luz do Sol e da altura em que voamos, causam essa ilusória, embora muito válida, impressão.

Pronunciamentos inflamadíssimos denunciam a ânsia desavergonhada de se capitalizar, eleitoralmente, a penúria comunitária. De concreto, entretanto, quase nada se fez, afora a remessa de vacinas contra tifo. Deitando falação à imprensa, em Belém, um dos gestores interioranos ensina, de cátedra:

– Como filho do Baixo Amazonas e administrador de um dos mais prósperos municípios daquela circunscrição geográfica, sei que nada, mas nada mesmo podemos fazer numa emergência de tal magnitude. São incontroláveis fenômenos naturais, onde se manifesta, clara, a santa e soberana vontade de Deus. Basta que se reze, pois, afinal, é um sofrimento provisório de todos os anos e logo mais retornará a fartura de verão.

Na mesma edição que agasalha o douto pronunciamento do esclarecido prefeito, há outra preciosidade. Apesar de não decifrarem o mistério do mal que vem dizimando os rebanhos, técnicos de renome esbanjam erudição científica ante boquiabertos repórteres. Pontifica um deles:

– A raríssima epizootia ainda não está sob controle, uma vez que seu diagnóstico permanece ignorado, resistindo a todos os nossos testes sofisticadíssimos. Mas, a presumir pela sintomatologia, já se vislumbram animadores indícios de que estamos em confronto com uma excepcional virose atípica. Mais cedo até do que imagina, isolaremos seu agente etiológico, cuja propagação parece estar a cargo de um vetor alado, talvez o próprio “Culex fatigans”.

Entre essas e outras iguais boçalidades, junho vai terminando. À força de muito chá de limão com alho, a turma de Presidente recupera-se da gripe, embora persista a coqueluche ou “tosse de guariba” que, às vezes, se arrasta por quase meio ano. Combalidos, pálidos, todos já estão de pé e adquirem novo alento quando o dono da casa faz a primeira verificação da manhã e anuncia, com um largo sorriso: – A água vazou cinco dedo! Paresque agora vai.

– Com o empurrão da Mãezinha do Céu! – completa Maria Flor. Esse ano nós vai fazer uma ladainha discunforme de bunita!

É, de fato, o início da esperadíssima vazante, que representa uma ameaçadora faca de dois gumes, apesar das alegrias que dispara: enquanto revitaliza apunhalados corações, faz desabarem outros medos, novos riscos sobre as almas de infelizes que tanto, tanto já amaldiçoaram a enchente.

Na proporção em que os campos se descobrem e reaparecem os “tesos” – porções enxutas em meio aos alagados – os fazendeiros vão descendo das marombas os esqueléticos animais que sobraram, soltando-os nos atoleiros para aproveitarem algum alimento que já pode ser encontrado. Raquíticos e famintos, os bois lançam-se a uma ávida busca de pasto e devoram tudo o que lhes parece comestível. Em tais circunstâncias, é muito comum ingerirem ervas venenosas, além das possibilidades, sempre temíveis, de outras desgraças. Podem apanhar frieiras ou ser, de repente, engolidos pela fatal “lama gulosa” – extensões de tabatinga espessa e pastosa, onde afundam homens e bichos. O rio vaza, sim, mas cobra o seu preço infernal, como um bandido capaz de matar um casal e, antes de fugir pela janela, ainda se diverte pondo fogo no quarto das crianças.

De qualquer modo, o estado coletivo de espírito é muito menos deprimente do que nos sombrios dias de novembro, porque, chegado o repiquete, os ribeirinhos sabem que seis meses de incríveis provações os aguardam. Agora, ao contrário, cada hora que passa deixa-os mais perto do tempo bom, numa estimulante contagem regressiva até ao novo encontro com a felicidade perfeita – sol, pirapitingas, acaris, queijos, piracaias, festas, abundância de tudo!

Alegre, Maria Flor profetiza, provando o caldo cheiroso: – nunca mais a gente vamo pelejar com uma enchente amardiçoada como essa! Deus tá tirando a cangalha do lombo dos caboco!

Os céticos e cínicos diriam que Deus ficou bom do fígado e vai recuperando o bom humor.

Capítulo 26
  A VIDA CONTINUA... –
O rio vaza e vaza bem. Já se observam, na várzea inteira, os característicos e animadores sinais do verão que chega, tão bem-vindo como filho seqüestrado que acaba de ser solto. São evidências que inundam de encorajador entusiasmo quantos dependem vitalmente das condições do tempo, não apenas por interesses econômicos, mas para a própria sobrevivência no ambiente adverso.

O buliçoso e assoviante vento geral é, a essa altura, uma presença abençoada e alegre nas fazendas. Ele passa os dias claros brincando de cavalgar os galhos, de pôr as folhas em adoidadas danças. E sacode as fruteiras como os moleques peraltas que desejam desabarem os apetitosos cajus, mangas e goiabas. As refrescantes ventanias de agosto têm o poder mágico de arejar também os corações: os risonhos varzeiros exultam ao sentir que, apesar de todos os pesares, não há nada equivalente ao contentamento de se estar vivo e com saúde.

Bandos de marrecas ariscas, ananaís e patos selvagens, após desconfiados sobrevôos exploratórios, vão pousando pelas redondezas. Até um tracajá afobado, que desovou antes do tempo, Zé Potoca já trouxe para casa. Esperanças, e mesmo certezas, brotam, afinal, em almas arrasadas por tantas batalhas perdidas.

Essa prodigiosa renovação interior dos ribeirinhos apresenta estranha afinidade com um rotineiro procedimento estival, tão ligado às suas vidas: a queimada. Da mesma forma como as matérias orgânicas das árvores torradas pelos incêndios de novembro aumentam a fertilidade do solo na primeira semeadura, as lágrimas vertidas nos duros tempos da inundação parecem funcionar, por uma condescendência dos céus, como um poderoso adubo nos corações dos corajosos caboclos – heróis anônimos de tão inglórias epopéias.

O rio continua vazando, e vaza bem. A fartura volta devagarzinho, chegando encabulada, como quem não dispõe de um bom motivo para se desculpar por tanta demora. Antônio já encomendou até um reprodutor e duas vacas bonitas. Dará o batelão como pagamento. Mais tarde arrumará outro, pois as coisas vão melhorar.

A tarde vai findando, na colorida agonia das luminosas jornadas amazônicas de agosto. De cotovelos apoiados no parapeito do alpendre, Maria Flor e o marido olham as quatro reses que, abanando o rabo, espantam os primeiros carapanãs ali no curral meio enlameado. A temporada que passaram nos campos da terra firme lhes fez muito bem: os animais estão em satisfatórias condições físicas.

Fitando uma tronqueira que desce, na correnteza, com alguns mergulhões servindo-se da gratuita jangada para um passeio crepuscular, Presidente fala quase para si mesmo: – Se Deus quiser, nós se ajeita de novo esse ano. O roçado apodreceu, mas eu vou fazer outra queimada.

Atravessando o braço em torno das costas nuas do esposo, a mulher concorda, animada:

– As coisa vai mudar! A Fuluca, do Chico Zebu, me disse que eles perderam tudinho – o gado, os três filhos e a barraca. Tão na misera, morando com uma tia lá no Marimarituba.

Alisa a cabeleira do querido companheiro e o encoraja:

– Não se avexe não, meu bem. Nós sabe que varjero tem que ter tutano pra começar tudo de nuvo, quando é perciso. Nós inda fomo até muito feliz porque só perdemo três curumim, fiquemo com os outro três, a casinha, o barco e quatro bui bunito. A gente inda levantamo a cabeça e vamo ficar mais melhor do que nós tava!

Junta, de repente, as mãos em prece e, com os olhos brilhantes, postos no céu, fornece a infalível garantia:

– Eu tenho uma baita fé na Mãezinha do Céu! Ela vai ajudar nós!

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 24


  O VELÓRIO –
Maria Flor está cerzindo umas roupinhas das crianças. Atraída por movimentos de remos forcejando contra a correnteza, levanta os olhos do trabalho: uma canoa com dois vaqueiros chega à casa da fazenda.

– Ei, seu Presidente! – O papai não tá – responde um dos garotos. – Que é, Pedroca? – interroga a patroa, reconhecendo o caboclo.

De cabeça baixa, o reforçado varzeiro comunica:

– Seu Romuardo Bicudo morreu, não faz bocado. Paresque foi besterada no coração dele. O enterro é amanhã e a gente viemo convidar pro quarto.

Espantada com a brutal notícia, Maria faz o sinal da cruz, reza em silêncio e promete que combinará com o esposo, ao chegar com Zé Potoca, o jeito de comparecerem à residência enlutada.

Nesse mundo líquido, cujo único e frágil cordão umbilical com a civilização é um rádio de pilha, velório – ou “quarto”, como eles chamam – é uma forma de divertimento, quase uma festa. Sem lazer algum, a braços com uma luta feroz e diuturna pela simples sobrevivência, os ribeirinhos transformam a vigília para um defunto em desinibida reunião social onde nada falta: comilança, beberança, baralho, dominó, mexericos. Por isso, ninguém perde um desses encontros e cada família colabora com alguma coisa para amenizar a situação dos herdeiros sem herança. Como ocorre nos puxiruns, leva-se um pouco de querosene, farinha, café, bolacha, velas de cera e cachaça.

Deixando as crianças com Zé Potoca, lá se vai, à noite, o casal. Apesar de a distância ser pequena, como está ventando muito, preferem usar o barco “Flô das onda II” para vencer os quatro quilômetros da viagem. Como contribuição para o ato fúnebre, levam um quilo de farinha, açucar e meio litro de querosene.

Encontram muita gente e pouco choro. Protestante não é, em geral, espalhafatoso ante a morte, pois, convicto de que o extinto está salvo só por causa da fé que possuía, de certo modo exulta quando um irmão se vai, porque ele ganhou o céu antecipadamente, apenas dizendo “Jesus é meu Senhor”. Após cumprimentar os parentes do falecido, cada qual se arruma como pode. As mulheres fofocam na ampla cozinha, enquanto os homens fazem avaliações de prejuízos na sala da frente. Não há velas acesas e nem se fala em rosário de Nossa Senhora, desde que o morto era Testemunha de Jeová, não tendo necessidade alguma dessas gorjetas aos santos para transpor, lampeiro, os portões do paraíso...

Conversa vai e vem, café aparece e some, cachaça chega e não dá para quem quer. A família é protestante, mas respeita os costumes da várzea e deixa beber quem quiser. Começa, então, um animado “sete e meio”, o famoso e fácil jogo de baralho. Formam-se três rodas, sendo uma na mesa grande e duas no chão, à luz de resfolegantes “Aladins” – candeeiros de luxo, usados somente em ocasiões especiais.

– Hum!... Essa curimatá muquiada tá muito porreta! – proclama Nhuquinha Catauari, farejando o ar, de cara erguida. O cheiro da coirona mata a catinga do querosene. Vou tirar a barriga velha da misera nesse quarto do Bicudo.

– Bota mais uma aqui, Rosa! – pede Miró Sardinha. Hoje eu quero encher a cara pra não me alembrar dos perjuízo dessa enchente do cão.

E a temperatura vai esquentando... Saem anedotas pouco familiares... As reações evoluem das discretas risadinhas particulares às estrondosas gargalhadas coletivas... Come-se enquanto se joga baralho, dominó e conversa fora. Brinca-se. A noite avança. De repente, a queixa insultuosa: – Tu tá rubando, seu curno! – grita Zeca Tralhoto, a esfregar as cartas do baralho no focinho de Juca Toró.

Com várias doses de aguardente no lombo, o ofendido nem pede explicações: planta o braço no pé do ouvido de Tralhoto, quase tão bêbado quanto ele próprio e... o tempo fecha! Lá da cozinha, a mulherada berra: – Meu Deus! Respeitem o falecido!...

Não se respeita nada. Reviram-se as cadeiras, candeeiros são quebrados. Até o defunto desabou da cama onde estava, pois, generalizado o conflito e com ambiente meio escuro, um dos brigões caiu por cima dele. Porre como se encontrava, julgou que fosse um adversário e não teve dúvidas: encheu de murros as ventas de Romualdo e o fez rolar para o chão, a pontapés!

Quase todos trocam coices e poucos tentam acalmar os valentes, pondo alguma ordem naquela tremenda bagunça. Diversos caíram no rio, à força de empurrões, tapas ou pisões, e a velha Nica Farofa está de cabeça partida, tal o entusiasmo de um cascudo que lhe acertaram com um dominó. Musculosos e abstêmios, os filhos de Romualdo Bicudo, ajudados por Presidente, gritam, pedem calma, por entre bofetões e gravatas distribuídos entre os que precisavam aprender a criar vergonha ao menos em velórios.

A muito custo, após dez minutos de pau solto e escoriações de larguras variáveis, o ambiente retoma a perdida paz. O defunto readquire sua dignidade comprometida, providenciam-se curativos. Os mais bêbados são postos em sossego, amarrados nas canoas, e a liturgia prossegue, entre novas doses de café, merendas e joguinhos de dominó e baralho. Ninguém bebeu mais, porque a cana acabou. A noite já exibe vergonhosas rugas de velhice remelenta. Não tardará muito a ceder, emburrada como fedelho de castigo, o trono a um novíssimo dia de luzes e de luto, de lutas sem lucros.

Sepultaram Romualdo no cemitério de Paricatuba e ele se enfiou no túmulo com o óculos na cara esmurrada: era sua derradeira vontade, expressa nos estertores da morte. Com sacrifício, pagara as lentes esverdeadas no crediário da “Ótica do Povão”, lá na cidade, e não queria deixá-las para ninguém. Talvez pretendesse apreciar melhor o festim dos vermes sobre suas carnes...

Voltando ao lar, Maria Flor comenta, entre dois bocejos: – Puxa! Esse quarto do seu Romuardo até que não foi ruim. Tem uns tão chato que dá até vontade de dormir. A briga foi animada e eu só não gustei de jogarem o defunto no chão.

Antônio concorda, com uma restrição: – É. Eu só não achei mais melhor porque até agora não sei quem foi o filho duma égua que me sapecou um baita beliscão na bochecha da bunda, na hora da porrada. Quase arranca um pedaço. Vou até fumentar com andiroba e sar.

Vute! – finaliza a companheira. Quem sabe, meu bem, se não foi o falecido Bicudo.

Benzendo-se, explica a hipótese: – Ele era tão brincalhão!...

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 23


  FINANCIAMENTOS –
Antônio Presidente continua indo, com Zé Potoca, ao corte diário do capim. Agora, as reservas mais próximas de canarana e premembeca não ficam a menos de três horas de viagem... só de ida! Às vezes, nem dá sequer para se carregar completamente o alentado batelão. E os bois remanescentes, desnutridos, vão morrendo, a prestações, sobre a maromba...

Nesta manhã, Antônio esfrega os braços, tomados por uma legião de aguerridas formigas-de-fogo, quando o afilhado lhe diz, coçando a cabeça: – Ah! Meu padrinho, eu me esqueci de lhe avisar que o seu Quinca Pereba quer falar com o senhor. Eu encontrei ele onte lá no Aningar do Papagaio.

– E só agurinha que tu havera de te alembrar, rapaz?! – ralha o pecuarista, ainda matando formigas. Eu mardo que deve de ser coisa de muita percisão. Vamu passar pela casa dele quando a gente vortar de vorta.

No retorno, fazendo um desvio que lhes custa mais uma hora de varejão, param no “Retiro Pereba” e logo Presidente fica sabendo da boa novidade. A informação compensa o acréscimo de cansaço:

– O Miró Sardinha veio da cidade – explica o desdentado e narigudo Quincas – e me disse que um banco oficiar do gumverno vai começar amanhã a sortar muita grana pros criador da varja.

Pondo atrás da orelha o cigarro que apagou amassando a ponta no balcão da quitanda, completa:

– Dizque não tem dificurdade arguma. Tu entra lá e sai logo com o dinheiro no borso, porque o gumverno abaixou decreto.Isso já deu até na Rádio Rurar.

– É mesmo, meu mano?! – fala, animado, Antônio. Eu vou largar toda essa pitomba e amanhã tô em Santarém, porque perciso muito de um dinheirinho.

– Tu vai mais eu – intima o dono da casa. Deixa o teu motor pro Zé Potoca se virar no capim. Eu tava duido pra falar cuntigo, pois já faz um mês que nós não se vê. Eu sube que aquele ladrão do barco “Jutaicica” também fez tu de besta. O cachurro passou a perna em tudo quanto foi caboco.

– Então ele andou por aqui também? – indaga, encabulado, o esposo de Maria Flor, que não esperava uma referência direta à vigarice de que foi vítima.

– Aquele filho duma égua me deu um prejuízo de quase mir cruzeiro! – exclama Pereba, vermelho de raiva. Só não sangrei ele porque tem o diabo pra tirar e Deus pra dar.

– É mais melhor nós nem falar nisso, pois meu zóio fica logo atravessado de sangue – conclui o proprietário da “Fazenda Apuizeiro”. Que hora, então, tu vai me pegar lá em casa? – Amanhã, cedinho, por vorta das seis hora eu chego lá.

Ciente da esperançosa notícia, Maria Flor não se entusiasma. Talvez a enigmática intuição, o misterioso sexto sentido das mulheres esteja a lhe segredar qualquer coisa capaz de inibir súbitas e prematuras alegrias numa aposta contra o futuro. Limita-se a uma breve advertência, sem parar de mover bem depressa o abano de palha com que atiça o fogo: – Toma cuidado, Antônio. Quando a esmola é grande, o santo fica descunfiado, eu já te disse umas mir vezes.

Antes das seis da chuvisquenta manhã, Quincas Pereba está no porto da fazenda, em seu barco “Vitora Reja”, maior que o de Presidente. A saudação é típica da época. Sem um “bom dia”, vai dizendo: – A água cresceu um dedo de onte pra huje, seu Antônio. Vute! Se continuar assim, ela inda tufa até na Lua nova que vem. Deus tá mesmo zangado com nós. Eu não mardo que mar os caboco fez pra Ele.

– É – admite o companheiro, embarcando. Tudo dia eu tô aí perdendo arguma coisa, mas tô conformado com a mardita sorte. Na enchente de 1953 eu fiquei quase na misera, mas dispôs de pelejar muito e aduecer de tanto trabalho, acabei levantando a cabeça de nuvo. Essas raiva de Deus é como pira de cachurro: dá e passa.

Nessa permuta de infortúnios sofridos, e acompanhados pelo vaqueiro Mamede, eles consomem as três horas de percurso até Santarém. Pereba já levantou três vezes o assoalho da residência, trairambóia matou-lhe cinco animais, piranhas puseram oito vacas fora de ação. Agora, como sobremesa servida por vampiros ávidos de sangue, pipocou uma gripe desgraçada que já atingiu quase toda a família, com tosse braba, catarrão, febre e dor no peito.

A julgar por tantas confidências amargas, trocadas sob o embalo das ondas, não teve um pingo de razão Humberto de Campos ao garantir que “o andor da desgraça se torna mais leve quando é carregado por muitos.” Nessas faces sulcadas por tantas preocupações, mil pesadelos e incontáveis canseiras, não se percebe o menor indício de alívio pelo fato de saberem que as pesadas cruzes cabem a todos.

Deixando o “Vitora Reja” amarrado no porto da Vila Arigó, sob a vigilância do caboclo que trouxeram, os dois pecuaristas ajeitam os cabelos, passam as mãos nas roupas úmidas e amarrotadas. Encaminham-se logo para a suntuosa agência do banco que fica alí perto. Ao empurrarem a enorme porta de vidro, sentem, com algum espanto, a surpresa incômoda de um ar muito frio que lhes resseca as narinas. Mas, reunindo coragem, vão no rumo do funcionário mais próximo: – Me diga uma coisa, seu menino – fala Quincas, menos tímido. O Banco já tá sortando dinheiro pros criador da varja?

Sem erguer os olhos do papel que lê, responde o burocrata: – As liberações de crédito começaram ontem. – E o que nós percisa fazer pra arreceber logo o nosso? – Um momento, senhores, por obséquio. Já vou entregar a relação dos documentos necessários.

O atendente conversa uns cinco minutos com uma graciosa estudante que acaba de chegar e depois apanha uma folha mimeografada e, voltando-se para os caboclos, rosna, incisivo:

– Aqui está. Se o pretendente ao empréstimo deixar de cumprir uma só destas oito exigências aqui especificadas, nem adianta mais voltar aqui, pois nada poderemos fazer. São ordens expressas da nossa matriz.

– O diabo é que nós não sabe ler, seu menino – gagueja Pereba. Se o senhor não fica brabo, diga que papelada nós tem de arranjar, que a gente vamo logo buscar tudinho e vorta de vorta. Nós tem que ir hoje pra farja tratar do nosso gadinho.

Mal humorado, o bancário desfia, lendo rapidamente: cadastro atualizado neste Banco; certidão negativa do Cartório de Protestos, obtida nas vinte e quatro horas anteriores à eventual concessão do crédito; prova de quitação com a Justiça Eleitoral; CPF; certificado de regularidade perante o INCRA; comprovação, testemunhada em cartório, do número de reses que possui, pois o financiamento se fará na base de vinte e cinco mil cruzeiros por unidade; indicação de dois avalista idôneos, que devem ser aprovados pelo Banco; e, certidão negativa de impostos municipais.

Devolvendo o papel ao caboclo perplexo, o funcionário passa a atender outro cliente. Os dois varzeiros retiram-se, de cabeça baixa e chapéu na mão. Lá fora, na escadaria do prédio, fitam inicialmente um ao outro e, depois, mudos, como feras acuadas que não sabem para onde correr, passeiam os olhos tristes pela vasta praça de São Sebastião. Calado desde o ingresso no estabelecimento, Antônio rompe o silêncio – funeral de mais uma efêmera e besta esperança de matuto:

– Bem que a Maria Flor não se assanhou com essa história. Mulher é bicho danado pra adivinhar. Se eu ouvisse sempre os parpite dela, não havera de fazer tanta bestera na merda dessa vida. E agora, seu Quinca? – Agora, meu mano... Agora vamo comprar gasolina pra vortar de vorta e vamo simbora. – Acende um cigarro e assegura: – Nem passando um mês aqui na cidade, nós não havera de arrumar esse monte de paper pra receber dinheiro.

– É, vumbora pra casa – concorda Presidente. Mas pra não perder toda essa viagem do cão, tu me espera um pedacinho que eu vou comprar umas coisinha que eu perciso. É mais melhor até tu ir logo pro purto do mercado, porque é lá praquelas banda que eu vu fuxicar atrás dos bagulho.

Pereba rasga em pedacinhos a maldita relação de exigências burocráticas. Os fragmentos saem voando, exatamente como os farelos de um sonho doce e fugaz... Separam-se os amigos e colegas de sofrimentos. Por intolerável ironia, passa, nesse exato instante, um carro de propaganda em que o locutor berra, através de estridentes amplificadores: – Atenção! Muita atenção, senhores pecuaristas! Os Bancos oficiais dos governos estadual e federal, em suas agências desta cidade, avisam que iniciaram ontem, e prosseguirão durante quinze dias, os generosos financiamentos em tão boa hora autorizados pelas autoridades governamentais, para minimizar os efeitos da calamitosa enchente deste ano. Aproveitem as grandes facilidades de crédito fácil e imediato, sem burocracias.

Quando vai atravessando a Praça do Pescador, o dono da “Fazenda Apuizeiro” enxerga, por acaso, fumando um charutão, aboletado em reluzente automóvel vermelho, alguém que ele muito conhece. Depressa, entretanto, o caboclo olha para o lado oposto e prossegue andando, pois perigosos ímpetos assassinos lhe aceleram o coração: acaba de ver Raimundo da Silva, da empresa “Jesus dos Anjos Ltda”, proprietária do barco “Jutaicica”.

Maria Flor está com o rosto na porta do telhado – o buraco aberto por exigência do rio – esperando os viajantes. Ao ver que chegam em silêncio, com cara de quem vomitou lombriga, tem certeza de que nada obtiveram, mas indaga: – Que tar? Os home sortaram a grana pra vocês?

– Não – responde o marido, sério e já de pé, carregando alguns embrulhos. Percisa tanta papelada que só a gente se mudando pra cidade pra arrumar tudo o que eles quer.

– Eu não te disse nada pra dispôs tu não falar que eu tava jogando terra na paçoca – revela a mulher. Mas meu coração farejava que essa porquera não ia dar certo nem pelo rabo do cão. Onde vocês já viram arguma vez o gumverno dar coisa que preste pra gente? Essas peste só mostra os dente e parece anjo quando que pegar voto dos besta. Cambada de cachurro!...

Servindo-se de sua expressão predileta para escapar de diálogos desagradáveis, Presidente despede-se de Pereba e Mamede, dizendo: – É mais melhor nós não falar mais nisso. A gente véve pra sofrer e tem que agüentar como macho essas aporrinhação. Dá essas bolacha pros curumim e vamo comer arguma bestera que eu tô com fome.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 22


– O DEBATE –
A imprensa de Belém do Pará possui assunto farto para muitos dias. Os “calamitosos efeitos da fenomenal enchente de 1971” constituem o prato principal das edições. Como o povo sofre de memória curta, não faz diferença a repetição de manchetes e até de alguns textos dos anos anteriores.

Nesta quarta-feira, os matutinos exibem fotografias verdadeiramente sensacionais: maromba que desabou em Oriximiná... reses atacadas, na várzea de Alenquer, por um estranho mal, ainda não diagnosticado... políticos de cócoras, confortando enfermos em barracas submersas e até o líder da maioria na Assembléia Legislativa atravessando o buraco da cobertura de um tapiri...

Além da entrevista do Secretário de Saúde, anunciando “severas medidas do governo para pôr um termo definitivo à grave e intolerável situação”, os jornais agasalham ainda outros informes de relevante interesse comunitário. Pronunciam-se fogosos e eruditos os debates entre os deputados, pois o combativo parlamentar Arcângelo Salvador inscreveu-se para ocupar a tribuna durante o grande expediente. Mas a bancada oposicionista, segundo os cálculos de bem informados colunistas políticos, deverá colocar em boas enrascadas oratórias o porta-voz do governo estadual.

Três horas da tarde. Presentes todos os ilustres representantes do povo e repletas as galerias, tem início a esperada sessão. Feitas algumas comunicações sem importância, Fortunato Filho, que preside o Poder Legislativo, concede a palavra ao líder situacionista.

Havendo integrado a comitiva que, no último fim de semana visitou o Baixo Amazonas, o posudo orador começa historiando as “superiores razões da patriótica viagem de estudos”. Em seguida, realça o “comovedor interesse deste grande governo em resolver a problemática dos nossos queridos irmãos da hinterlândia, sobretudo porque a várzea se erige como altaneiro propugnáculo da promissora economia planiciária”. Logo, entretanto, com a devida autorização do arrebatado tribuno, intervém o deputado Trancoso Setembrino, aguerrido componente da facção contrária:

– Ao repetir, com irritante insistência e condenável servilismo, que o governo atual sofre com a sorte dos ribeirinhos, Vossa Excelência insinua, desastrada e maldosamente, que nenhuma administração anterior fez qualquer coisa por essas massas infelizes. Quero apenas refrescar a memória do pobre deputado, dizendo-lhe que o Pará está sendo governado há sete anos pelo mesmo partido político.

– Agradeço a intervenção de Vossa Excelência – reinicia Salvador. Deixo claro, porém, que não estou atirando lama sobre quem quer que seja. Insisto apenas em proclamar – e o faço com desassombro, sem temer contestações! – que, sem demérito para os demais, o governo que aí está vem fazendo até o impossível para recolocar sorrisos definitivos nos rostos amargurados desses mártires sacrossantos das várzeas, às vésperas de sua radiosa e gloriosa libertação total! Órfãos da vida, esquecidos pelo próprio Deus, eles são, porém, lembrados por autoridades que chegam aos páramos do sublime, agasalhando-os amorosamente, como enternecidas mães desveladas, nos abismos de seus corações!

As galerias tentam manifestar-se, mas tímpanos soam, o silêncio é mantido e Setembrino aparteia:

– Dá até vontade de chorar, nobre colega! Palavra de honra! Os corações desses seus angélicais correligionários devem ter parentesco bem próximo com os velhos e sacolejantes ônibus desta capital: por mais superlotados que estejam, sempre têm lugar para mais quatro...

– Aceito intervenções ao meu discurso, mas só em termos elevados, à altura das magníficas tradições desta augusta Casa do Povo! Não admito molecagens de Vossa Excelência, nem de qualquer outro parlamentar. Estamos aqui, afinal, para dizer aos paraenses que confiem em nós e serão inteiramente felizes. Se o eminente membro da oposição repetir a deselegante atitude, não mais lhe concederei o direito de me perturbar este importantíssimo e histórico discurso.

– Peço desculpas ao brilhante deputado – penitencia-se, com visível cinismo, o ofensor.

Risos abafados entre os assistentes... O presidente da Casa exige compostura e ameaça evacuar as galerias. Arcângelo prossegue, dando ciência, no mesmo diapasão bombástico e enjoativo, das maravilhas planejadas pelos técnicos das Secretarias de Saúde, Agricultura e Obras, “trabalhando em perfeito e patriótico entrosamento para a rápida redenção dos varzeiros”. Em certo momento, declara, pomposo:

– Como intérprete humilde, mas leal, dos anseios governamentais, é com intensa emoção que informo agora: ultimam-se os detalhes de uma vasta, de uma formidável “Operação Salvamento” – coisa sem precedentes! – objetivando remover, no prazo máximo de uma semana, cerca de quarenta mil pessoas, das várzeas inundadas para as cidades mais próximas! Será, graças ao ínclito governador e a Deus, a salvação irreversível dos flagelados! – brada, triunfal, de braços abertos.

– Peço um aparte! – exclama Setembrino.

– Com grande prazer – aquiesce o tribuno, passando o lenço no rosto suado.

– Isto seria uma alegre palhaçada se não fosse revoltante, afrontoso, intolerável e trágico! Fala-se em retirar, às carreiras, milhares de párias dos alagados infernos para as zonas urbanas, o que, além de impossível e imbecilmente demagógico, seria apenas uma forma diferente de matá-los à mingua. Fugiriam à morte por afogamento, fome e epidemias para se acabarem, cadavéricos, em marombas erguidas na periferia do asfalto ou nas sarjetas, mendigando nas ruas! Isto é uma irresponsabilidade criminosa, possível de processo e cadeia. É mais um atestado público da monumental ignorância, da estupidez jumentícia com que são tratados os problemas regionais, senhor presidente e senhores deputados.

Vermelho de raiva, Salvador retruca, gritando:

– Com essas demagógicas palavras, Vossa Excelência prova estar abissalmente alienado de uma realidade que até os cegos enxergam. Saiba que nós acabamos de passar nada menos de dois dias andando na área afetada pela enchente e sentimos que não há outra solução de igual magnitude e tanto senso prático. Basta que se diga a esta Casa o seguinte: nosso amado governador sobrevoou as várzeas durante meia hora. Só por isso mereceria unânime e agradecida moção de congratulações por sua reconhecida clarividência administrativa.

Sem pedir licença, esgoela-se Trancoso:

– Vossa Excelência e vis comparsas estiveram no Baixo Amazonas fazendo turismo às custas da miséria popular, enquanto a vaidade única de minha vida é ser filho daquela esquecida região. Sou caboclo nascido e criado em Santarém! Respondo, portanto, a esse plano monstruosamente idiota com uma gargalhada e uma banana!

No gesto característico, o parlamentar imita a fruta com os braços e complementa, colérico:

– O nobre líder situacionista não passa mesmo de um desprezível moleque de recados, de um palhaço como o são todas essas vaquinhas de presépio que endossam qualquer imbecilidade. Realmente, há homens que conduzem no cérebro o que deveriam esconder nos intestinos!

As galerias aplaudem ruidosamente o aparteante. Antes, porém, de retomar a palavra, o presidente da sessão adverte a assanhada platéia: não vai tolerar qualquer outra manifestação. Apoplético, troveja Salvador:

– Não se insulta impunemente um homem de bem e muito menos quando o vômito verbal se generaliza, atingindo outros cidadãos incorruptíveis e parte de um cachorro como Vossa Excelência!

– Cadela é a distinta mãe do nobre deputado! – responde, erguendo-se e caminhando para a tribuna o decidido oposicionista.

Arcângelo desce, rápido, ameaçando, aos gritos:

– Vou quebrar a cara sem-vergonha de Vossa Excelência, cretino, crápula, canalha!

Instala-se o tumulto. As duas bancadas trocam desaforos, como se nunca houvessem tomado conhecimento de algo que os próprios representantes das multidões chamam decoro parlamentar. A equipe de segurança intervém, separa os valentões. Furioso, o presidente esbofeteia os dois tímpanos, exigindo silêncio, e comunica: – Está suspensa a sessão até que o sacrossanto decoro parlamentar retorne ao seio augusto desta conspurcada Casa do Povo!

Os moderadores vão acalmando os dois fumejantes candidatos a pugilistas e até conseguem, nuns cinco minutos de judicioso “deixa disso”, que Salvador e Setembrino concordam, para assombro da platéia, em trocar um apertado abraço de paz... As galerias explodem numa ululante vaia e são imediatamente evacuadas pelos homens da segurança, acatando ordens da presidência.

O deputado Esperidião Santa Rosa, veterano legislador, pondera, tomando um cafezinho:

– O entusiasmo dos civilizados debates parlamentares é, em verdade, o mais enobrecedor apanágio das democracias autênticas, transbordantes de vitalidade. A efervescência efêmera dos espíritos, no entrechoque sublime das idéias díspares, é indício de vida e criatividade. Tudo isso dignifica o parlamentar.

Nada mais disse, nem lhe foi perguntado. Reposta a serenidade no ambiente austero, Arcângelo sobe outra vez à tribuna. Mas anuncia de saída:

– Como é de crucial relevância para os destinos do povo o que ainda me cumpre relatar a Vossa Excelências, senhor presidente e senhores deputados, e o tempo urge, participo à nobre e patriótica bancada oposicionista que não concederei apartes.

Protestos. Tímpanos acionados. Silêncio no Plenário.

O orador passa a desfiar um cansativo monólogo, especificando a quantidade colossal de vacinas e pílulas que o governo enviará aos ribeirinhos. Discorre sobre o “curriculum vitae” do novo Secretário Estadual de Saúde e presta outras atraentes informações. Tem o cuidado de não dizer mais nenhuma palavra sobre o fantástico remanejamento de quarenta mil caboclos em uma semana. Tão comunicativo é o orador que, ao terminar sua saborosa explanação, só os leais correligionários permanecem, a bocejar, em suas poltronas. Dois deles perderam a cerimônia e dormem, placidamente, de cabeça esparramada no peito. A oposição escafedeu-se. Isso tudo não impede que, findo o discurso, a miúda platéia aplauda o denodado líder: – Muito bem! Apoiado! Viva o Brasil!

E o abraçam efusivamente ao descer da tribuna, onde fez um trabalho tão cintilante. Seja como for, os jornais dispõem de novos petiscos para amanhã: engalfinhamento frustrado na Assembléia... fotos de parlamentares roncando e... enchente!

No ônibus, um popular desdentado olha o jornal, vê as manchetes da véspera e diz ao companheiro de banco: – Essa pitomba de enchente já tá enchendo o saco. Deviam ter deixado esses deputados quebrar a cara um do outro.

Com a máxima atenção, passa a ler a página de esportes.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 21

– OS POLÍTICOS –
Amanhece. Quatro reses mortas... Incontáveis tronqueiras arrastadas pela infernal ventania noturna atravancam toda a fazenda... Há estragos na maromba do gado... São, esses, alguns dos efeitos perversos da tempestade, acrescidos de outro problema ainda mais inquietante: Niquita, a garota de cinco anos, está com febre alta e já por duas vezes expeliu um vômito escuro, quase negro.

– Essa cunhantã não tá bua, não. Passou a nuite muito desinquieta – diz Maria Flor ao marido.

– Não é nada – assegura Antônio, que resolveu mandar Zé Potoca sozinho, no barco motorizado, para o corte do capim. Quer esperar os políticos, pois o rádio repetiu a notícia de sua vinda, fornecendo o roteiro da viagem.

– Deve ser gripe braba, dessa que tá dando na varja. Perpara um chá forte de limão com alho, sem açucar, e dá pra ela com um melhorar infantir. É tiro e queda.

O caboclo já vai saindo, na montaria, para melhor apreciar a extensão dos desastres da noite, quando é convocado outra vez: – Vem cá, meu bem! A bichinha tá se acabando de vomitar! E vareia o tempo tudo, diz bestera, porque a febrona tá disconforme – anuncia a mãe, afobada e limpando a criança.

Antônio põe sobre as pernas a arquejante enferma, cujos olhos brilhantes giram em órbitas. Percebe que a situação é mesmo grave. Por isso, altera o diagnóstico anterior, garantindo, convicto:

– Essa porquera não é gripe, não. Ela istoporou com aqueles burrifo da chuvada e os gorpe de ar da trivuada. Vento de cima é coisa do cão. Inda tem “piúla contra” aí na lata dos remédio?

– Tem – responde Maria. E vamo dar logo duas pra ela, porque eu também já tava mardando que isso havera de ser mesmo istupor. A molequinha tava sajica e arriou de repente. Foi vento de cima.

Abrindo o vasilhame, o pai apanha dois comprimidos e, pondo água num caneco de alumínio, ajuda a mulher a fazer a doentinha engolir as milagrosas “pílulas contra” – tidas como infalíveis em casos de estupor. Entre espasmos e rebeldias, Niquita acaba deglutindo as bolotas e, com a prostração do esforço, agora sossega, ofegante, no fundo da úmida rede. Parece que dorme.

Presidente retoma a canoa e vai inspecionar a propriedade. Após um bom tempo de verificação, está ajeitando uns esteios na maromba quando ouve o barulho de uma “voadeira”. Olha e vê, rio abaixo, um pequeno barco branco a varar, velozmente, o Amazonas. Com as duas mãos em concha sobre a boca, grita: – Maria, paresque lá venham os homem! Ajeita logo o café!

Em menos de cinco minutos, a moderna lanchinha de fibra de vidro, acionada por um potente motor de cento e quinze cavalos, chega à “Fazenda Apuizeiro”. Conduz seis cidadãos, todos de bermudas e óculos com lentes verdes ou esfumadas. Dando caloroso e simultâneo “Bom dia!” , erguem-se para o desembarque. Da comitiva, os donos da casa reconhecem apenas o vereador Polidoro da Cunha, que providenciara, na cidade, o sepultamento de seu filho Bibito e livrara Zé Potoca da cadeia. O nobre representante do povo apresenta ao casal os ilustres visitantes:

– Aqui estão, Dona Maria Flor e seu Antônio, os emissários do governo estadual e da prefeitura de Santarém. Todos, eles e eu, viemos decididos a resolver de uma vez os problemas de nossos queridos irmãos varzeiros. Temos, inclusive, na caravana, um fotógrafo que documentará tudo para a grande imprensa de Belém.

Apertam-se as mãos, trocam sorrisos. Quando um deles indaga como é que se entra na residência, com o mesmo vestido vomitado e azedo, a patroa explica, apontando a “porta” do teto: – É pelo buraco acolá, seu menino. A gente enxota as galinha e passa, de bunda pra cima.

E os deputados Arcângelo Salvador, líder da augusta maioria na Assembléia Legislativa, Tibúrcio Bondoso, integrante da mesma bancada, dois funcionários municipais, o vereador e o fotógrafo, após fixarem sua embarcação junto à estreira abertura, ridiculamente, de veneráveis fundilhos expostos ao vento da várzea submersa, vão penetrando na habitação. Quando passou o último deles, olhando os companheiros, Arcângelo protesta, de dedo em riste:

– Mas isto é um despropósito intolerável! Não mais consentiremos que seres humanos, detentores de uma alma imortal, desçam a tamanha indignidade. O nosso operoso governador tem condições de resolver, para sempre, a tragédia das enchentes.

– Seu menino, esse seu gumverno dá pau pra maromba? – indaga Maria Flor, de mão no queixo. É só de pau que a gente tamo percisando.

Bem – responde o parlamentar. Nós estamos aqui exatamente para recolher as prioritárias reivindicações de vocês, oprimidos ribeirinhos, mas na véspera de se libertarem eternamente deste inferno. Não se preocupe, madame: a senhora vai receber pelo menos dez dúzias de excelentes tábuas. Também terá medicamentos, hospital, alimentação farta e barata, escolas para os filhinhos, ração balanceada para o gado e... uuuummm!...

O nobre deputado estava pegando ameaçadora embalagem verbal quando se calou subitamente, pôs a mão no ventre e fez uma careta. Após duas massagens no abdome, chama o vereador à parte e lhe cochicha um segredo. Encabulado. Polidoro pergunta ao silencioso Antônio: – Que se faz, seu Presidente? O doutor está com fortes cólicas intestinais e precisa ir logo ao sanitário.

– Xu, galinha! Raimundinho! – chama a cabocla, que logo percebera a enrascada. Leva já, já o seu menino na montaria ali no tuco do pau. Anda que o homem tá avexado pra fazer cocô!

Antes que o pálido líder da maioria se recupere do susto, a prestimosa anfitriã desembrulha rapidamente duas barras de sabão e entrega ao hóspede o grosseiro papel: – Tome pro senhô se alimpar. É só o que nós tem.

Vermelho, visivelmente constrangido, mas puxando a barriga de baixo pra cima, tentando aliviar as dores, Salvador não se pode dar ao luxo de uma negativa: embarca na canoa, escapa de cair e lá se vai para também dar a sua “cusparada” na cara do rio... Outra indignidade incompatível com a sublime transcendência dos seres humanos...

Quando retorna, a pequena enferma convulsiona o sombrio ambiente e Tibúrcio, que é médico, sentencia, depois de examiná-la: – a criança está nas últimas. Contraiu uma enfermidade ainda não diagnosticada, que vem fazendo estragos no Baixo Amazonas. Estranhamente, só atinge uma ou duas pessoas em cada casa. Infelizmente, eu só tenho analgésicos e anti-disentéricos. Vamos ver, porém, se ela toma estas gotas, que aliviam dores e diminuem a febre.

Ao tentarem, no entanto, fazer com que o líquido desça pela garganta da menina, ela se agita com violência e logo após fica imóvel, sem um gesto, sem um arquejo. Auscultando-lhe o coração, fala o doutor, compungido: – O anjinho deixou de sofrer. Meus pêsames.

Não há berreiros escandalosos, mas apenas um pranto discreto. Assim como o trabalho duro enrijece a pele das mãos, as repetidas provações engrossam, calejam, insensibilizam as almas. A mãe chora, baixinho, debruçada sobre o miúdo corpo inanimado. Poucas lágrimas brotam dos olhos de Antônio e se percebe um enorme espanto nos rostos dos três irmãozinhos, incapazes de entender a procissão de desgraças fatais: cobras mataram dois deles e o vômito negro acaba de roubar mais uma das escassas alegrias da “Fazenda Apuizeiro”! E quem é que há de compreender, pobres crianças?

Sem condições sequer para disparar novas promessas, os recém-chegados, aturdidos pela estúpida realidade que os envolveu subitamente, passam a colaborar nas providências para o sepultamento de Niquita lá no Paricatuba. Descerão o rio, mas se comprometem a voltar após o almoço. A lancha “Governador do Povo” ficará, então, ao inteiro dispor da enlutada família.

São dezessete horas quando saem da voadeira, já regressando de mais um enterro, Maria Flor e Presidente. Os políticos vão dormir na cidade para, no outro dia, reiniciarem o histórico e decisivo périclo redentor pela várzea encharcada.

Deus escreve mesmo corretamente pelos mais tortuosos caminhos: foi providencial essa morte cruel sob as vistas estupefatas dos figurões. Esse infernal 1971 entrará na história amazônica sob o estrondoso coro das terríveis maldições que acompanham ao túmulo os grandes malfeitores. Contudo, há de emergir, também, ante a posteridade agradecida, como o último ano em que os ribeirinhos padeceram os martírios de uma inundação. A caravana assegurou, sob palavra de honra, que urgentes, drásticas, revolucionárias e geniais medidas serão tomadas para que nunca mais, nunca mais mesmo uma só lágrima escorra pelo rosto de um caboclo, em decorrência de dores ou privações. Eles todos ainda hão de chorar brevemente, sim, muito brevemente: mas de alegria descontrolada, de comovido agradecimento ao governo, de total felicidade! Quem viver, verá!

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 20


– A TROVOADA –
Começou junho. Mais uma pasmosa carga de água ainda se adiciona ao formidável volume do rio que, neste amaldiçoado ano, parece multiplicar esforços para conseguir a definitiva expulsão dos andrajosos intrusos que prostituem suas sagradas margens. Não basta pô-los em alucinada, mas provisória fuga, porque é sempre a véspera de teimoso regresso às terras enxutas. É preciso matar essa gente profanadora, reduzi-la à quietude irreversível das sepulturas.

Forças ciclópicas somam perversidades, de mãos dadas, tramam e logo executam sinistros projetos para despejarem incalculáveis massas líquidas no grávido regaço do gigante, antipaticamente amarelado como todas as desgraças. As chuvas pesadíssimas e o degelo da cordilheira dos Andes funcionam como cúmplices diabólicos do vaidoso rio-mar, que talvez alimente o fantástico sonho de recuperar, um dia, perdidas grandezas. E não sendo suficiente essa abominável sementeira de misérias, até a lírica e sonsa Lua provoca as grandes marés e também se inscreve, como vil comparsa, na conspiração satânica.

Sabe-se de razoáveis suposições científicas em que seus eruditos autores presumem ter sido o Amazonas, há inúmeros milênios, um vasto mar interior, represado pelas montanhas andinas. Tal hipótese explica fatos sumamente intrigantes, como a presença da maior reserva salina do mundo – dez trilhões de toneladas! – descoberta quando se farejava petróleo no território amazonense. A teoria também joga alguma luz sobre os misteriosos “sambaquis” – conchas de mariscos amontoados em quantidades incríveis nos mais diversos quadrantes da região.

Bem. Calcula-se, então, que, com o tempo, aquele mar primitivo acabou escavando, na rocha, uma estreita saída, à altura de Óbidos, no Pará, vindo desembocar no Atlântico, pois antes ele seria tributário do oceano Pacífico, a correr de leste para oeste. Parece, assim, que a frustração por haverem perdido o velho e imperial “status”, rebaixado de mar para rio, se assanha perigosamente, de vez em quando, e as águas barrentas avançam, incontroláveis, tentando alagar tudo, tudo, tudo!

Após repartir as pequenas porções de capim entre as trinta reses sobreviventes, Zé Potoca aparece em casa e diz: – Encheu meio parmo e passou daquela marca de 1953, que tá naquele buraco do apuizeiro. Eu digo que nós inda vai pelejar e alevantar de novo a maromba da casa. Os boi já tão com as pata mergulhada. Vute! – Tisconjuro! – esperneia Maria Flor. Tu acha puco o murro que a gente demo, pra começar a andar feigo osga, saindo e entrando pelo buraco do telhado? Égua!

Antonio Presidente não opina. Sentado num banco, olha a mulher que tira as vísceras de um jaraqui. Sabe, porém, que o destrambelhado preto possui motivos para temer novas aflições. O assoalho já foi erguido nada menos de três vezes. Sempre esperançosos de que o nível não passasse de certo ponto, e para diminuir o tremendo calor interno, que faz durante o dia, ales suspenderam apenas aquilo que lhes parecia suficiente para enfrentar as marés maiores da próxima Lua.

Agora, eis a realidade: chegaram à situação de ter que caminhar inclinados, como velho gagá, para não baterem a cabeça nos caibros do teto da casa, a pouco mais de um metro e meio. Só podem sair ou entrar, executando uma cansativa ginástica: varam um furo aberto no telhado, que fica protegido por uma folha de zinco. Na cumeeira ainda se agasalham umas quatro galinhas magricelas. Mas na hora de lhes dar a única refeição diária – uns restos de babugem que as aves famintas ciscam até sumir o último farelo – tanto elas como os dois patos têm que comer dentro da habitação. Com o ossudo cachorro “Desacato” compõem uma caótica miniatura da arca de Noé.

Água por todo lado... Nada escapou do naufrágio... Até o barracão da ladainha está com meio metro de Amazonas em seu interior. Quase não se pode mencionar, em tempos assim, um gesto, uma atitude que não exija sacrifício pessoal. Nada é fácil. O rio complica a vida a tal ponto, faz o sofrimento descer a níveis tão individuais, sem respeitar idade ou condição, que aparenta possuir olhos, mãos, ouvidos – embora se saiba que jamais teve coração. O carrasco vibra sadicamente com os gemidos, exulta com as mortes e resmunga, zangado, quando vê um sorriso ocasional num rosto qualquer – sorriso que, em verdade, aproveita caminhos de lágrimas, enxutos por alguns instantes. Nem os defuntos estão livres das fúrias apocalípticas do rio: nas grandes enchentes, cemitérios comunitários são invadidos, recobertos, fazendo ossadas irem, de bubuia, na correnteza...

Mas os perseguidos enteados do destino têm pelo menos uma forma de vingança contra o invencível inimigo. Ao sentirem as advertências de uma necessidade fisiológica, estando a privada do quintal inteiramente no fundo, apanham a canoa e se afastam um pouco da casa. Firmando-se num galho de pau, eles pagam o humilhante imposto devido à natureza, mas o fazem com desdenhosa satisfação. Tal estado de espírito foi bem expresso por Zé Potoca, ao amarrar a montaria, de volta do “sanitário de macaco”: – O marvado desse Amazona afoga nós, mas nós joga mijo e bosta bem na venta dele! Toma, seu curno!

No momento do magro jantar – uma panela com dois jaraquis e uma pirapitinga pequena – depois de tossir muito, engasgado com um bago de farinha, Antônio Pergunta: – O que é que a gente fazemo pra arrumar madeira pra subir a maromba dos boi? Se eles demorar com as canela mergulhada, vão ficar dispilicando e o tutano perde a sustança. Eu não posso agora comprar nem um pedaço de pau, farta dinheiro.

Sem entusiasmo, a dona de casa lembra: – A Rádio Rurar deu huje uma mensagem que amanhã venham uns graúdo pra ver a enchente aqui na varja. Eu não acredito em promessero sem-vergonha, mas como nós tamo liso que nem jacundá, vamu ver se eles arruma umas tauba pra gente.

Atirando um espinhaço de peixe para o cachorro, o afilhado intervém, desiludido por tantas decepções anteriores: – Que nada, minha madrinha! Se fusse ano de ileição, eles sortava dinheiro pra pegar o votinho da gente. Mas não é. – Tá bom, mas o jeito e esprementar – pondera Antônio. Me sortaram essa: o Nhuquinha Catauari arrumou na cidade seis dúzia de itaúba. Não sei quem deu pra ele.

Combina-se, afinal, que, se aparecer a anunciada caravana, será solicitado aos visitantes o material necessário ao levantamento do jirau externo. É outra das malvadezas das inundações: quando a maromba fica recoberta pelas águas, as canelas das reses vão perdendo os pelos protetores. Menos resistência passam a ter os debilitados animais para se manterem de pé, desde que a medula óssea é afetada de alguma forma pela contínua imersão dos membros. Além disso, persiste a constante ameaça das vorazes piranhas e das perigosas trairambóias – umas e outras com tradicional vocação para o cangaço assassino.

Quando se recolhem, nessa noite, como uma vaga esperança de conseguir que os políticos lhes arrumem alguma coisa, o calor, que foi fora do comum durante o dia inteiro, ainda está sufocante como o custo de vida. Com o diminuto espaço disponível para a circulação do ar, e sem uma brisa sequer, o martírio aumenta. Essas criaturas somente conseguirão dormir porque o corpo moído e a alma retalhada são quase insensíveis à temperatura de fornalha e ao aperreio das muriçocas – suplício que nem a sobrenatural imaginação de Dante Alighierii meteu entre as torturas infernais, quando ele não deve faltar ali. O gênio de “A Divina Comédia” teria certamente entregue os seus mais rancorosos inimigos à fúria sanguinária dos alucinantes mosquitos, capazes de varar tecidos e encerados para picarem o infeliz.

Olhando o céu escuro, Zé Potoca avisa: – Ih! Paresque vai cair um tempo feio, de cima! Tem relampo que nem presta. Vamu logo amarrar bem essa fulha de zinco que é pru vento não arrancar ela.

Usando as mãos como platibanda sobre os olhos, Presidente examina a noite, calada como criança que acabou de fazer grave danação e concorda com o vaqueiro: – Esse calurão que fez huje era mesmo sinar de truvuada. Vamu se perparar que o temporar vem de com furça e não demora.

E recolhem as aves. E fixam mais firmemente o zinco do teto. E põem a montaria bem abrigada. E enrolam malhadeiras. Depois esperam, deitados, os ribombos do céu e os rugidos das águas tipitingas, que os envolvem como bárbaros sitiando uma cidade indefesa.

Ainda não são nove horas quando o primeiro trovão ronca, surdo, longínquo, como anúncio de terra caída quando a Boiúna fala grosso, lá embaixo. Esses formidáveis vendavais amazônicos parecem mulher em trabalho de parto. A princípio muito espaçadas, as colicas da Natureza prestes a expelir legiões de demônios de suas negras entranhas, revelam-se através de urros intermitentes, com duração e potência variáveis. Todavia, na hora crucial do nascimento, as contrações quase não cessam mais e os cegantes relâmpagos clareiam sinistramente o amedrontador cenário. Afinal, a parteira precisa de luz para trabalhar e os faróis do firmamento se acendem providencialmente na ocasião do aperreio.

Também desta vez a escrita funciona. Como quem não quer nada, numa tentativa inútil de iludir os calejados caboclos, o vento oeste ou “de cima” começa a soprar, mansinho, arremedando brisa e crepúsculo, leque de donzela ou cantiga de juruti viúva. Mas, aos poucos e depressa, vai ganhando tutano. O primeiro corisco estala e o escangalho de uma árvore desabando reboa pela fazenda alagada.

– Caiu pau no mato! A coisa vai ser feia, mas Nossa Senhora e Santa Barbra vai livrar nós! – diz, medrosa, Maria Flor, embalando-se na rede com uma criança enferma.

Pela tarimba da vida, os varzeiros sabem que, ao despencar um gigante da floresta quando se inaugura uma procela, quando o vento ainda está fraquinho, podem ficar certos de que terão uma furiosa borrasca pela proa. É a sabedoria dos ignorantes sem ciência de livros.

Realmente, logo o tufão se estusiasma, convida todos os ventinhos vagabundos a engrossá-lo e, dentro de quinze minutos, parece que um milhão de Boiúnas atiça, bufando, igual número de foles gigantescos, a urrarem e a unirem os clarões de seus olhos horrendos. A noite é, agora, um festival medonhamente belo de chuva, trovões, assovios, raios e relâmpagos.

Os gregos costumavam colocar sobre os telhados de suas casas as líricas “harpas eólicas”: queriam dormir ouvindo a música do vento a tanger as cordas dos engenhosos brinquedos... A poética tradição seria impraticável nas várzeas amazônicas, pois numa noite de turbulências como as de agora, se escutaria um soturno réquiem, uma agourenta liturgia de enterros, caso o instrumento não voasse, antes, desfeito em farelos...

A tremenda tempestade tropical arroja-se em cima do mundo submerso e o faz com aquela raiva que reconduz o homem à sua absoluta insignificância diante dos petardos cósmicos sobre si desencadeados. A própria luz irreal das claridades que riscam o céu incute nos corações apavorados um terror agônico, um cheiro de morte, um antegosto de inferno. Se presenciasse uma dessas assombrosas convulsões da bacia amazônica, Abraão Lincoln certamente repetiria a sua frase famosa: “Em determinados momentos eu caio de joelhos por ter a convicção absoluta de que não me resta outra coisa a fazer.”

Transidos de um medo atávico, esmagados pela total submissão impotente ante os elementos em colérico descontrole, os caboclos não mais pronunciam qualquer palavra. Cada um reza sozinho, sentindo frio na espinha quando ouve o estalido seco de um raio. Eles se encolhem, metem os dedos nos ouvidos e, de olhos fechados, escutam com menor intensidade o abalador estrondo que chega logo depois da faísca elétrica.

De repente, sem um convite, por iniciativa pessoal e simultânea, Antônio, Maria Flor e Zé Potoca jogam-se, prostrados, sobre o chão úmido da casa: nunca ouviram falar de Lincoln, mas se ajoelham porque o instinto lhes assegura que não existe outro adequado procedimento para as circunstâncias. Ao frouxo e tremelicante clarão de um candeeiro, os três adultos oram, de mãos postas e rostos que refletem o terror interno. Começaram a rezar assim porque uma descarga atmosférica pareceu ter atingido a própria residência, perigosamente sacudida pelo rugido pavoroso de um trovão mais potente que os mil anteriores.

Espicaçado em seu constante humor azedo pela colossal tormenta, o Amazonas aproveita o ensejo para lançar água suja dentro dos miseráveis tapiris naufragados. Com escarcéu, ele se joga de encontro às paredes, molhando tudo – pessoas e trastes. E, a uma rajada mais severa do fortíssimo vento de cima, a folha de zinco, que se agitava barulhentamente, batendo nas ripas da cobertura, solta-se de vez!

Enquanto a chuva se despeja, livre, pelo rombo aberto, Zé Potoca, rápido, transpõe a passagem rasgada no teto e logo apanha a preciosa proteção, que já ia descer, de bubuia, na correnteza. Com muita dificuldade, ele e o padrinho repõem a “porta” em seu lugar, prendendo-a com a firmeza possível. Todavia, a residência está inteiramente inundada.

São duas horas de agonias, sustos, preces e ansiedades. Só aí por volta da meia-noite o temporal começa a dar sinais de que não tardará muito a sossegar, cansado de tanta brutalidade. Quando, já de madrugada, voltou a calmaria – uma espécie de paz de cemitério – Maria Flor, acariciando a filhinha febril, tem um derradeiro comentário: – Os bacana da cidade fica se mardizendo quando uma goteira besta no telhado pinga chuvisco na venta deles. Eu queria era ver aqueles curno pelejar com um trivuada disconforme como essa que a gente peguemo. Morria tudinho, só de fruxura...

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 19


– MEDICINA DE CABOCLO –
Menos usado, porém tão eficaz como a prestigiosa infusão de folhas de sabugueiro, é o chá de fezes secas de cachorro para apressar a erupção do sarampo... Sangue de jabuti constitui maravilha infalível para extinguir teimosas erisipelas – as temidas “isipras” ou feridas malditas... Lavar os olhos com a própria urina (mas só serve a primeira do dia) acaba com as mais rebeldes inflamações da vista... Eis aí umas insignificantes amostras do folclórico, grotesco, às vezes milagroso e, não raro, assassino ou mutilante arsenal farmacêutico das comunidades ribeirinhas.

Radicados a imensas distâncias dos centros médicos, os pobres varzeiros não se podem permitir o luxo de escolher sequer entre duas alternativas, pois só têm uma: ou usam aquilo que está em seu quintal, no campo e no igapó, ou morrem sem ao menos uma tentativa de vencer a enfermidade que os prostra no fundo de uma rede. E, nesse terreno, ocorrem coisas espantosas.

Zeca, de seis anos, acorda a mãe no meio da noite: chora com dor num dente. – Peraí que eu já vou te dar remédio – diz Maria Flor, estremunhada, a esfregar os olhos.

De uma lata, na cozinha, retira um vidro pequeno e coloca duas ou três gotas de certo líquido escuro na colherinha que está sobre a mesa. – Abre bem a boca – ordena ao filho. – Antônio, anda, me ajuda aqui.

O marido, bocejando, segura a lamparina bem junto ao rosto do garoto e a mãe despeja óleo de pau-rosa na cavidade do molar estragado. O menino grita e recebe um cascudo: – Larga de ser fruxo, já vai passar!

Não demora muito e a criança, de fato, vai sossegando e pára de choramingar. Contudo, antes de amanhecer está se queixando novamente e o pai decreta: – Huje, assim que eu vortar de vorta do capim eu vou logo é distrair o cuirão desse mardito dente.

Olha o bicho que dói e assegura, com a certeza dos profissionais: – É jito como bago de milho, mas tá apustemado.

Não, Antônio Presidente não se diplomou em odontologia, mas, por necessidade, entende um pouco de tudo. Retornando, às dezesseis horas, a esposa completa o anterior diagnóstico: – O Zeca tá com a cara meia inchada. O jeito é arrancar logo esse dente. – Vê aí a tesurinha que eu vou já fazer essa distração – responde o marido.

Toma dois canecos com água e convoca: – Vem cá, curumim! Senta nesse tamburete e abre a tua bucona – ordena o caboclo, sem ao menos lavar as mãos. – Vai doer pra burro, mamãezinha!... – diz, chorando e de olhos suplicantes o menino, pedindo socorro à genitora, como quem sobe ao patíbulo para ser enforcado por um crime que não cometeu. – É pro teu bem, meu filho! – consola-o a mãe, desviando, entretanto, o olhar daquela dolorosa imagem do sofrimento infantil. – Dá-lhe um beijo na cabeça e um conselho: – Larga de teimosura e abre a buca pra acabar logo isso.

Como a vítima recusa-se a obedecer, Antônio pega uma colher das de sopa. Tendo a tesoura na mão direita, com a esquerda força a abertura dos lábios do guri que, por enquanto, já levou umas palmadas e berra como porco peiado. Os três irmãos assistem, com visível horror, a dramática cirurgia de vaqueiro...

Conseguindo, afinal, espaço bastante para trabalhar, o dentista enfia a ponta do instrumento na gengiva e levanta, de um só vez, o molar de leite, que salta sobre o assoalho! A criança deixa de gritar porque desmaiou, mas com uma cuia de água do pote na cabeça e uma xícara de café, logo volta ao normal. – Eu trouxe um mangará de banana ruxa lá da casa do Janjão Garrote – previne o pai. – Se o sangue continuar pingando, a gente sapeca o cardo na ferida. É só uma porrada.

Foi providencial a lembrança do tarimbado caboclo. Apesar das bochechadas feitas com o chá da casca do cajueiro, às nove da noite manifesta-se a hemorragia. Apanhando o mangará, Presidente dá-lhe diversos cortes e ensopa um pedaço de algodão, com que se calafetam canoas, embebendo-o no viscoso líquido que escorre. Durante cinco minutos faz compressão sobre o lugar do dente. Afrouxa, olha e... pronto! Cessou o corrimento vermelho. Persistiria, agora, apenas o risco de tétano, mas como Deus costuma dar aos pobres uma proteína especial e milagrosa, a “pobrina”, essas civilizadas ameaças acabam sendo muito mais exceções do que regras.

Entre os matutos há remédios para tudo. Alguns deles adquirem, ao longo das gerações, “status” de prodigiosas panacéias que nunca negam fogo.

Zé Potoca está procurando amarrar as pernas de uma vaca “imperriada”, para a ordenha matutina. Descuida-se um pouco e o animal desfere-lhe um coice que, embora não o atinja em cheio, deixa-lhe a perna esquerda meio machucada. Só à tardinha, porém, leva o fato ao conhecimento da família, porque o local inchou e a dor aumenta.

Maria Flor examina a contusão arroxeada e promete: – Eu vou fazer uma afumentação de andiroba com sar. Amanhã tu tá bonzinho da sirva.

Apanha o vidro, derrama o líquido de cheiro desagradável na palma da mão e faz enérgicas massagens na perna do negro, que suporta, firme. Depois, improvisa uma atadura com retalhos de pano velho e, à noite, antes de se recolherem, repete as vigorosas esfregadelas. NO dia seguinte, o crioulo mal se lembra de que recebera um agrado da vaquinha “Pupunha”...

A andiroba, espessa resina de certa árvore cuja madeira é muito usada em construções, aparece como um dos milagres medicamentosos da selva amazônica. Amolece tumores e sara feridas feias. Misturada ao mel de abelhas e à copaíba – outra seiva fantástica – dificilmente se precisa ir além da segunda embrocação nos casos de amígdalas inflamadas.

A vida, afinal, seria simplesmente impossível nesses ermos se os céus não autorizassem tais respostas a tantas emergências. Raízes, cascas, folhas, ervas e resinas do “Inferno verde” desfrutam de renome internacional por sua eficácia terapêutica. E os caboclos servem-se delas continuamente, só indo à cidade quando seus remédios tradicionais se mostram impotentes numa determinada situação.

Qualquer moléstia tem um chá, um óleo, uma garrafada correspondente. A infusão de casca de carapanaúba, mais amarga que desgosto amoroso, exerce um mágico efeito nas disenterias, enquanto a sacaca não encontra rival em problemas hepáticos. Para dissolver pedras no figado, Antônio ensina a qualquer bonitão de Santarém: – Toma o chá da folha de quebra-pedra tudo dia, como se bebesse água. Basta um mês. Misturando com cana mansa, inda é mais melhor.

Interminável seria o relacionamento de produtos incluídos no prosaico receituário caseiro. Mas, como isolados componentes de um vasto e colorido painel, mencionemos ainda alguns desses curiosos medicamentos.

Sementes torradas de jerimum constituem poderoso vermífugo. Calos e verrugas desaparecem com a aplicação de rodelas de tomate, sobre eles, durante a noite. Pingar mel de abelhas nos olhos, duas vezes ao dia, acaba com a catarata em poucos meses. A banha da cobra sucuriju exorciza o reumatismo, o chá de limão e alho cura a gripe, o jucá é ótimo cicatrizante e destrói tumores que resistem até os antibióticos. Urucu faz expectorar e a casca preciosa tem efeitos digestivos e anti-espasmódicos. O leite-de-amapá fortalece pulmões tuberculosos e o chá de folhas de graviola e laranja-da-terra não falha nos males cardíacos.

E há muito mais. Infusão de escada-de-jabuti põe fim às hemorróidas, jurubeba vence anemias, artemija cura hepatites, chá de perna de grilo solta urina presa. O paricá, a urtiga, o sebo de carneiro, as banhas de galinha, anta e tartaruga, a erva-cidreira, o capim-santo, a hortelã, o marupazinho, o jutaí, o jaramacaru, a ucuuba, a...!...

Às vezes, entretanto, os quintais e matas não fornecem a solução para um específico problema de saúde. Nesses momentos são acionados a Maria Puxadeira, mestra em desmentiduras de ossos, a Bibi Rezadeira, diplomada em espinhela caída, golpe de ar e dor-de-cotovelo. Brilha, sobretudo, o Neco Benzedor – o milagreiro da várzea.

Quando o caçula tinha seis meses de idade, Maria Flor, em certa manhã, disse ao marido: – Eu tô cismando que aquela curica da cidade que teve aqui com nós, a tar de Terma, botou mau ulhado nessa criança. Isso é quebranto puro. Aposto. Eu já dei tudo o que sei de chá e olha como o bichinho tá jururu, feito bacurau no sol.

O pai apalpa, examina o doentinho e concorda com o diagnóstico da madame, saindo logo para ir buscar o benzedor.

Chega o caboclo velho. Alto e magro, barbicha de bode, Neco Benzedor é venerado principalmente por não cobrar nada e tirar candidatos a defunto da beira do túmulo com suas rezas e puçangas. Senta-se na rede, põe o bebê sobre as pernas e segura um raminho de alecrim (arruda também serve). Concentra-se, faz uns gestos cabalísticos, resmunga orações incompreensíveis enquanto vai movendo a plantinha em vários sentidos.

Estranhamente, na mesma proporção em que o homem reza, sua muito, ensopa-se a camisa que veste e o alecrim verde vai murchando, como sensitiva. Após uns vinte minutos, o varzeiro está encharcado, as folhas do vegetal ficaram totalmente encolhidas e o garoto... bem mais esperto. Uma hora depois, brinca, alegre, com o seu maracazinho vermelho. Era quebranto puro.

Essa, a medicina de caboclo, em doses infantis, pois exigiria imensos tratados para ser esmiuçada. E os curandeiros, como o Neco, apesar das asneiras que fazem e até dos crimes que cometem com suas mandingas, vez por outra fatais, aí estão, desafiando a ciência. Representam um suculento manjar à espera dos eruditos pareceres de omniscientes, onipotentes e presporrentes parapsicólogos – os escafandristas da alma.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 18


– O PARTO –
As crianças já dormem. Após comentarem as vivências do Paricatuba, Antônio, Maria Flor e Zé Potoca escutam umas canções na “Rádio Rural” quando, para o lado de cima do rio, zumbe um motor, arranhando o silêncio da noite como um desses grandes besouros cascudos. Porque barcos de todas as espécies cruzam constantemente a região, os ribeirinhos, habituados à velha rotina, pouco interesse demonstram ao vê-los subindo ou descendo o rio. Mas logo, dentre as trevas das vinte horas, os três percebem que a embarcação reduz a marcha e vai atracar. Antes dos outros, Presidente identifica o bote: – É o motor do Dedé Pajurá, teu cunhado – diz à esposa.

Alguém de bordo grita, saudando: – Ei, gente boa!...

– Que foi? Arguma dificurdade por lá? – responde, perguntando, Maria Flor, algo sobressaltada, porque sua irmã Conceição está em fim de gravidez e seus partos sempre dão encrenca.

– O seu Dedé mandou nós vim buscar a senhora, pois a Dona Conceição já tá querendo parir – comunica um caboclo muito forte, enquanto passa a corda do barco numa viga do alpendre.

– É, a esmola foi muito grande pru santo não desconfiar. Eu bem que tava achando esse dia de huje bom demais pra pobre. Havera de aparecer uma consumição pra desinquietar a gente. Vute!

Antônio hesita se vai ou não, mas a mulher, já se arrumando, decide: – Não. É mais melhor tu ficar. Eu não sei que hora eu vorto de vorta e os parto da mana são cheio de bestera. Deixa que eu vu com o Mundico e o Lili, meu sobrinho. A nuite tá bunita e se for perciso eles venham te buscar.

E viajam logo depois. Necessitam de uma hora para encostar na cobertura da casa, metade no fundo. Afinal, a “Fazenda Apuizeiro” não pode merecer o privilégio: soçobrou também, como todas as outras da várzea encharcada. Varando, penosamente, o buraco aberto no telhado, que agora funciona como porta, Maria Flor encontra, de cachimbão na boca, Dona Chica Aparadeira – a venerada obstetra daquele mundão liqüefeito. A mulata é danada de competente no ofício: até hoje só morreram oitenta e poucas crianças, além de trinta e sete gestantes, em todos os partos – mais de trezentos! – que ela já fez.

– Boa noite, Dona Chica! – saúda a recém-chegada.

– Boa noite, Mariinha! – responde carinhosamente, a robusta e grisalha cabocla. – Como é que o puvo de lá tão?

– Ei, Maria Flor! – interrompe o cunhado Dedé. – Eu mandei te buscar porque a Conceição queria tu aqui na ilharga dela.

Ao débil e tremeluzente clarão de uma fumacenta lamparina, que torna ainda menos acolhedor o atravancado ambiente, a única irmã da gestante encaminha-se para a rede, onde, com as mãos sobre o enorme ventre, geme a franzina e simpática senhora. Acariciando-lhe o rosto, pergunta, com voz doce: – Como tu tá, maninha? Tem coragem e muita fé em Nossa Senhora, que o teu parto vai ser muito legar! – Coragem eu tenho, mana, e fé também. O diabo é que essa dor disconforme, que acaba com o cristão – explica a parturiente, arquejante e apontando o abdomem.

Navegando, com o pesado corpanzil, através dos obstáculos – redes e cacarecos – espalhados com desordem pelo abafadiço recinto, a parteira, após fazer ligeiro exame, recomenda, segurando o malcheiroso cachimbo: – Eu acho mais melhor tu te alevantar, menina, e dar umas vorta pela sala, que é pro curumim poder arriar. A borsa das água já tá pra furar. Não demora muito pra tu te livrar dessa consumição.

Com grande dificuldade, auxiliada pela irmã, Conceição senta-se na rede. Entretanto, ao fazer esforço para ficar de pé, exclama: – Meu Jesus! Dona Chica! Eu me molhei toda!

Acaba de romper-se a bolsa amniótica, obrigando a “doutora” a trabalhar com a rapidez que lhe permite a obesidade. E dá algumas ordens, enquanto enxuga a mulher que se prostrou novamente, ofegando e repetindo “Ai! Ai! Ai!” – Dedé, ajeita as tauba e bota um candeeiro bem aqui.

Maria Flor recebe outra incumbência: – Pega a faca da cuzinha pra torar o imbigo.

A pequena “mesa obstétrica” não passa de uma espécie de jirau formado por dua tábuas largas, apoiadas sobre tamboretes, como se costuma fazer para colocar caixão de defunto. É aí que, a gemer alto e sob as vistas das assustadas crianças que despertaram com a movimentação, se coloca a parturiente. Quando ela se arruma como pode em cima do leito improvisado, a parteira chega a lamparina bem perto e anuncia, soltando uma baforada:

– Oba! Já tá coruando! Esse curninho não vai dar as dificurdade dos outro.

Sob o martírio das violentas contrações que expulsam o bebê do útero, como se fosse um intruso que passou nove meses sem pagar hospedagem, a gestante, apertando desesperadamente as mãos da irmã, traduz apenas em uivos soturnos, que procura abafar com um pano na boca, a terrível dor que lhe rasga as entranhas: – Uuuummm!... Uuuummm!...

Sentada num banco ante a mulher em posição ginecológica, a aparadeira “chama” a criança, movimentando rapidamente o dedo indicador na direção de seu próprio peito: – Anda, bichinho! Vumbora, muleque! Furça, que tu sai logo dessa porquera! Mais uma coisinha! Tá quase...

Esfregando as mãos na comprida saia suja para limpá-las um pouco, a pitoresca mulata agarra a cabeça, que já aparece bem, e puxa, com força, o corpinho que vem deslizando sem problemas. Afinal, dando duas boas palmadas na silenciosa criaturinha, proclama, triunfante, ao ouvir o berreiro inaugural: – Eita, gente bua! Taqui o curumim! É um baita macho e já nasceu mijando!... – Dedé, me dá logo uma dose de cana pra gente começar o festejo.

Maria Flor, mesmo tendo passado seis vezes por essa horrível experiência, está abalada e desabafa, com alívio: – Graças à Mãezinha do Céu eu fui capada e não posso mais parir! Tisconjuro! É uma judiação que nem égua agüenta! Vute!

– Qual o que, minha filha! – atalha Chica Aparadeira. – Larga desses dengo de muleca criada com vó. Tu sabe que isso aí é uma dor esquecida. Quem pariu huje, amanhã já quer fazer filho de nuvo, porque nem se alembra mais do que sofreu.

Agora, segurando o ainda palpitante cordão umbilical, pede à Maria: – Me dá aqui essa faca.

Com um só golpe do afiado instrumento, corta a ponte que ligava os organismos da mãe e do filho. Depois, apaga o cachimbo, deixa esfriar um pouco e coloca sobre a ferida o sarro nele contido. É um dos curativos umbilicais comuns na várzea, aliado ao pó de café, teia de aranha e outras imundícies.

Entregando à tia o recém-nascido, a parteira examina o útero quieto de Conceição e previne: – Se esse cuirão não deixar de preguiça, eu tiro a pelica dele a purso.

Decidida, passa a fazer enérgicas massagens sobre o ventre da mulher, esfregando nele as mãos gordas, de cima para baixo. Aos poucos, reiniciam-se as contrações e a placenta é expelida, sem que se concretize a assustadora ameaça de removê-la a pulso...

Ultimado o parto, transfere-se novamente a aliviada senhora para a rede, enquanto a obstetra se esparrama, cansada, numa cadeira.

– Taqui, Dona Chica, um bocó muquiado pra tirar o gusto da cachaça com limão – diz Dedé, apresentando-lhe o peixe num prato, farinha e um caneco cheio do forte aperitivo.

A caboclona faz a sua farra solitária, pois o dono da casa não tolera bebida alcoólica. É mais de meia-noite e o bebê dorme serenamente, cercado pelos quatro maninhos que o examinam, curiosos e enternecidos. Pela primeira vez, em cinco partos, Conceição escapou das hemorragias que quase a mataram em outras ocasiões.

Todavia, dentro de uma semana, desgraçadamente, sobreveio a compensação da sorte grande: com febre alta, convulsões e rigidez muscular, o anjinho... morreu!

Entre duas cachimbadas, ensina Dona Chica Aparadeira: – O curumi pegou o mar dos sete dia. Foi gorpe de ar.

O recém-nascido contraiu tétano umbilical. Foi sarro de cachimbo – contestariam os médicos da cidade.

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 17


– A BOIÚNA –
À sombra de uma vasta mangueira, a roda acaba de organizar-se, com oito componentes. Engolindo o derradeiro pedaço de lambuzante pé-de-moleque e limpando a mão melada na velha calça de mescla, Mingote Pica-pau, um caboclo atarracado e meio bicudo, inicia narrativa da aventura que alega ter vivido: um encontro com a formidável “Cobra Grande” ou “Boiúna”, mito que povoa e aterroriza tantas insônias amazônicas. Pigarreia e começa:

– Nós vinha, eu mais o Raimundo Cuiteua, no batelão “Tira teima”, cheinho de canarana e premembeca. Como vocês sabe, o capim tá cada vez mais escasso e a gente se atrasemo na viagem. O Sol já ia mergulhando ali pras banda do Roçado Alegre e nós atravessava aquela travessia do Marimarituba, com a vela marmente se tufando. O vento tinha quebrado muito e nós andava devagar.

Escarra, dá uma baita cusparada e vai adiante:

– Eu tava comendo na pá do remo umas fagulha de carauaçu muquiado. Aí o companheiro me cutucou e só fez amostrar com o dedo, mais branco que arma penada. Eu virei a cara pra ilharga e o coração velho quis sartar pela buca cheia de peixe e farinha: os faror da bichona faiscava na buca da nuite, como duas disconforme lanterna de carbureto!

– Vute! Então a coisa tava mesmo preta, Mingote! – comenta Catinga-de-mulata. Eu só quero ver como vocês se desembrulharam da desinquietação.

– Mais depressa que relampo, nós sentemo a mão no remo e toquemo pra beira! – continua o varzeiro.

– E a Boiúna tava muito longe? Indaga Antônio Presidente.

– Que nada, seu menino! Tava daqui praquela guiabeira! Nós só tinha começado a travessia e a valença foi essa, porque se a gente já tivesse mais pro meio do rio, eu não tava aqui contando esse causo.

– Égua! Eu me arrupeio tudinho! – confessa Zé Potoca.

– Mas espera aí, sacana, que tu inda não viu nada! Promete o empolgado narrador. – Nós puxemos o batelão até onde nós pôde e se enfinquemo no mato! Fiquemo ali trepado num galho de marizeiro, moroçoca como o diabo, mas a gente nem sentia as porquera, porque o medo era disconforme. Nessas hora não tem macho bom.

– Chega, nesse momento, João Bucheiro, com uma garrafa de cachaça. Mingote interrompe a história e pede: Me dá aí um trago dessa mardita! Deixa eu molhar o gogó pra acabar de contar.

Sorve uns goles no gargalo, enxuga a boca no ombro e retoma a palavra:

– O animarzão veio tomando chegada e fazia umas onda tão arta que jogaram o “Tira teima” lá em terra, como se fusse um barquinho mixuruca. A peste bufava como quinhentus buto junto e os zóio dela deixava dois clarão dentro d’água, iguarzinho como a Lua faz quando foca lá de cima.

Enxuga o suor da testa e revela: – Só de me alembrar, inda me dá tremedera, e toda essa varja velha sabe que eu nunca fui fruxo. Nem de visage eu não curro. Mas a gente pensar que pode ser engulido vivinho...Credo!

– Eu tô nessa idade e nunca, até o dia de huje, achei macho pra Cobra Grande – interrompe, solidário, Antão Aquiqui.

Mas Pica-pau ainda tem o que contar:

– A Lua tinha saído e nós enxergava direitinho as marmota da eguona da cobra. Quando ela mergulhava, fazia um funir iguarzinho de terra caída, num espumaceiro dos diabo! Mas o que nós achamo mais pior mesmo, de parar o coração, foi os esturro da mardita Boiúna dos inferno. Ela dava, de vez em quando, uns ronco tão medonho que o Cuiteua me disse, baixinho: – Mingote, se sangue é fedurento, eu tô muito ferido.

A turma, tensa, nem sequer consegue rir da pilhéria e o herói do Marimarituba explica:

– Coitado do parceiro! Inda mais fruxo do que eu pra essas arrumação que derruba quarquer caboco, ele não agüentou o tamanho do susto e sujou tudinho o carção. Pensava que era sangue...

– E como é que acabou o causo? – interrompe Zé Potoca, impaciente para contar a sua experiência.

– Bom. Nós fiquemo ali tremendo e rezando no tuco do pau e a desgraçada fincando o pé: mergulhava e buiava... Parecia que ela queria brincar de assombrar nós e não tinha pressa de ir de vorta pra casa. Passou umas três hora naquela sem-vergonhice, até que arresorveu ir passear. Com o fugo da Lua foi que nós vimo o monstro tudinho brilhando, de pupa à prua.

– Deu pra carcular o tamanho dela? – indaga Paulo Cascudo.

– Menino, o bichão foi saindo pra fora, como navio do Lóide que desatraca do porto da cidade. Deu um bordo e tomou o rumo do meio do rio. Pra ninguém dizer que eu tô mentindo, eu dou o tamanho da Boiúna por baixo: era uma cobra aí pruns trinta metro! Por Deus do Céu e Nossa Senhora!

– E vocês fizeram logo dispôs a travessia? – pergunta Antão.

– Que nada, mano! – replica o outro. – Nós fiquemo no marizeiro matando moroçoca e sofrendo frio até o dia butar a venta de fora. Aí nós atravessemo a travessia, ulhando pra tudo lado. Vute! Deve tá pra aparecer outra notícia de que a diabona butou outros cabuco pra correr por aí.

Sem respeitar o supersticioso silêncio que emudeceu o grupo, Zé Potoca abre logo o bico grosso. Embalado por alguns aperitivos, está tinindo de eloquência:

– Dizque eu sou potoqueiro. Mas dessa vez tá aqui na minha ilharga o meu padrinho, que tem mais raiva de mentira do que de trairambóia. Eu e ele vimo esse causo de pertinho.

– Mas, então, conta direito! – adverte, sério, Antônio. Não vai enfeitar o periquito.

– Não se avexe, meu padrinho – pede o crioulo. – Nas hora das coisa séria esse nego aqui não brinca, não.

E começa:

– Nós tava fazendo um puxirum, lá no Paraná de Baixo, na fazenda do seu Vivico Maracanã. Faz uns seis ano.

Atira um punhado de paçoca na bocarra, engole rapidamente e prossegue:

– Nós era uns vinte macho e fazia broca pra uma baita prantação de maniva. Pudia ser umas nove hora da manhã quando a gente ouvimo o primeiro ronco. Foi um negócio feio: “Uuuuuuú!”... Como não tinha barranco no lugar, não dava pra nós mardar que aquilo era terra caída. Os caboco todo, descunfiado, pararam de derrubar o pau e arrumar cuivara.

– O Vivico era mais ruim que mamona em jejum – lembra Antônio. Ruim e pão duro. Quando ele dava uma cibalena prum curumim, ele amarrava uma linha de costura na píula. Assim que passava a dur do dente, o miserave puxava o fio e guardava o remédio pra utra vez...

– A caipirada ri e o preto retoma a narrativa:

– É. O bandidão era tão suvino que a gente só trabalhava se ele pagasse tudo adiantado. Quando ele já vinha dar bronca em nós porque nós tava parado, ouvimo outro esturro, mais perto e mais feio:

“Uuuuuuú!”...

O negro abre inteiramente a boca, amarra a cara e arregala os olhos graúdos, tentando uma cômica imitação do aterrador e soturno rugido. Depois, readquire embalagem:

– Foi aí que o seu Vivico sentiu que aquela peste era mesmo a tar de Cobra Grande atravessando o mato. Disse pra gente largar depressa as foice e os machado, pra pegar os pau-de-fugo que ele guardava no barracão da farinhada. Nós fumo lá e arrumemo quatro cartuchera, dois rifle 22 e muita munição. Meu padrinho puxou logo o revorvi dele, um baita dum 38 que ele comprou dum gringo.

– Agora que se arrupeia su eu – confessa Catinga-de-mulata. Eu sempre tive medo pai-d’égua de Boiúna.

Prestigiado pelo aparte, Potoca vai adiante, entusiasmando-se a cada frase:

– Quando nós escutemo o terceiro esturro, a bichona já vinha saindo do matagar, pois ela tava querendo passar dum lago pru rio. E era aquele escangalho de pau quebrando e bicho correndo pra tudo canto!

Emocionado à simples lembrança do assombroso episódio e vendo que o rapaz não exagera ao relatá-lo, apesar das biritas ingeridas, Presidente mete-se na conversa:

– Eu nunca mais quero ver coisa iguar nessa minha vida, seus menino! Foi um tiroteio medonho, com bala e cartucho pipocando pra tudo lado! Os caboco armado era bom de pontaria e acertaram logo na baita cabeça do monstro.

Mesmo tendo respeitado a intervenção sem licença, Potoca não suporta mais a agonia de ficar em silêncio e acrescenta:

– O diabão dava cada besta pinote que botou um jauarizeiro embaixo e urrava como tudos os cão junto!

– Quando a gente vimo que ela tava quase morta – arremata Antônio – os cabra mas macho chegaram perto dela e retalharam a peste com machado e facão. Era uma bichona de trinta e quatro metro bem medido, da grossura de um camburão de carbureto. As presa deu três parmo de tamanho!

– E quando acabou a confusão, nós demo com um caboco estendido no chão – recorda-se Zé. Corremo pra lá e vimo que era o Quixito Coroca, mortinho da sirva! O fruxo morreu de medo, botando o esprito pela bunda, porque tava cheinho de bosta! No outro dia um vaqueiro achu no mato um cocô seco da Boiúna: era da grossura duma panela de cozinhar peixe! Também uma cobrona daquela tinha que ser disconforme em tudo, até na bosta. Olha lá!

O caboclo faz a circunferência das fezes com as mãos, quando o padrinho resolve corrigi-lo, sorrindo: – Tu não havera de esquecer ao menos uma potoca, Zé. A merda do bicho era assim como uma lata de leite em pó, dessa que a gente compramo na cidade.

– Só, meu padrinho?!

– E tu inda acha puco, pira! – rebate o pecuarista, entre as gargalhadas da turma.

– É, eu soube desse causo e... – começa a dizer João Bucheiro, mas é interrompido por uma senhora que chega com quatro meninos. Trata-se de Maria Flor, que convida: – Vumbora, Antônio? Já é mais de meio-dia. Vamo comer a merenda que nós trouxemo, pra não chegar muito tarde lá em casa.

– Levantando-se Presidente, a espanar as calças com as mãos, a roda logo se desfaz: – Até outra vez! – vão dizendo os matutos uns aos outros.

Depois de almoçarem e fazerem uma visita à sepultura de Toninho, os peregrinos reembarcam no “Flô das onda II”. Escurece quando amarram o bote no beiral da residência, na “Fazenda Apuizeiro”, descansados e num estado de espírito traduzido por Maria: – Um dia alegre e feliz como esse paga tudas as desinquietação daqui da varja. Obrigado, Mãezinha do Céu!