Editorial - Estadão
Como dissemos neste espaço na quinta-feira passada, a frequente intromissão de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) em assuntos exclusivos do Legislativo, além de indevida à luz da separação constitucional de Poderes, tem o potencial de causar imensa confusão institucional, razão pela qual o Congresso, em diversas ocasiões, tem preferido ignorar as ordens daquele tribunal. Embora seja danosa ao Estado de Direito a decisão de descumprir determinações judiciais, ainda mais as expedidas pela mais alta Corte do País, sobram motivos para que os parlamentares assim o façam, pois a alternativa, além de representar inaceitável submissão do Congresso – eleito pelo voto direto – aos ditames deste ou daquele ministro do Supremo, quase sempre tumultua a atividade legislativa. Se alguém tem alguma dúvida sobre o caos provocado pelo ativismo do STF, sempre disposto a “corrigir” o Congresso, os recentes desdobramentos do imbróglio envolvendo o pacote de leis anticorrupção servem como perfeita ilustração. Cumprindo uma determinação do STF, o Senado devolveu na quinta-feira à Câmara o projeto de lei que trata de medidas para combater a corrupção. Se o trâmite correto fosse respeitado, o projeto deveria ter sido votado pelo Senado, pois já foi aprovado na Câmara. Mas uma liminar do ministro do STF Luiz Fux, em dezembro, havia mandado que o texto voltasse à Câmara para que fosse novamente votado, só que sem as modificações feitas pelos deputados.
O argumento do ministro Fux é que o projeto, por ser de iniciativa popular, subscrito por mais de 2 milhões de eleitores, não poderia ter sofrido mudanças. Trata-se de evidente desfiguração da função legislativa, pois é encargo precípuo da atividade parlamentar debater os textos encaminhados ao Congresso e propor alterações, se for o caso. Fux, contudo, não viu assim. Ao contrário: para o ministro, a Câmara está eivada de interesses “ordinários” que não são os do eleitor e são esses interesses que prevalecem nos debates. Isso pode ser verdade em alguns aspectos – e os seguidos escândalos de corrupção estão aí de prova –, mas não cabe a um ministro do STF apresentar-se como a palmatória do Legislativo, determinando o que os parlamentares podem ou não fazer com os projetos que lá tramitam, a título de proteger sua “essência”.
Mas Fux foi em frente e determinou que o pacote anticorrupção fosse votado novamente pela Câmara. O Senado passou dois meses a ignorar a ordem, mas afinal devolveu o projeto aos deputados. No entanto, ninguém na Câmara sabe como proceder a partir de agora. “O problema é que ficou muito confuso. O que eu faço agora? Devolvo (o projeto) para os autores?”, questionou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). “Eu acho que foi uma decisão que de alguma forma interfere no Poder Legislativo, mas vamos ter paciência. Como nós não vamos desrespeitar uma decisão da Justiça, é preciso esperar e aguardar que o plenário do Supremo decida sobre a matéria.”
Seja qual for essa decisão, Maia já prevê problemas nesse e em outros casos. Como outros projetos de iniciativa popular também foram aprovados com modificações – caso da Lei da Ficha Limpa, por exemplo –, o presidente da Câmara questionou se esses textos também terão de ser votados novamente. “Então, vão cair todas as leis de iniciativa popular? Eu acho que pode se tentar construir alguma regra em relação a como acatar um projeto de iniciativa popular, para garantir que aquelas assinaturas sejam 100% válidas”, disse Maia, para quem, sem essa definição clara, cria-se um “ambiente de insegurança”.
Tem razão o deputado. Não se pode usar as mazelas do Congresso, e elas são muitas, para desqualificá-lo a priori como instituição responsável pelas leis do País. Malgrado a constatação de que muitas vezes o processo legislativo é realmente “atropelado pelas propostas mais interessantes à classe política detentora das cadeiras no Parlamento nacional”, como escreveu Fux em sua liminar, é somente por intermédio do voto do eleitor, e não por decisões judiciais voluntaristas, que o Congresso pode ser regenerado.
Correção – No editorial Foro não pode ser privilégio publicado ontem, por equívoco foi dito que o STJ é o foro competente para julgar prefeitos por crimes comuns. A Constituição determina que eles sejam julgados por uma corte de segunda instância.
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