Folha - O governo Dilma acabou?
Delfim Netto - É difícil dizer que acabou, porque isso depende do
resultado do impeachment. Acredito que a situação tem piorado muito. Em
condições normais de pressão e temperatura, a nomeação do Lula teria
ajudado muito o governo. Ele é habilidoso, é negociador, tem controle
sobre o PT -o principal adversário da Dilma desde a nomeação do Levy
[Joaquim Levy, ministro da Fazenda em 2015] foi o PT.
O programa do PT é contrário ao programa do Levy, do Nelson [Barbosa,
atual ministro da Fazenda] e, na minha opinião, é absolutamente
impróprio para o momento que estamos vivendo. Essa foi uma das maiores
dificuldades dela, que também teve uma enorme inabilidade no tratamento
com o PMDB. Ela conseguiu afastar o PMDB, tentou dividi-lo. Ou seja, o
governo nunca entendeu que só uma ação muito forte no Congresso
conseguiria mudar o sistema e as perspectivas de futuro.
Não adianta insistir. A sociedade hoje não crê que o governo tenha
condições de administrar o país. Estamos numa situação delicada.
O melhor para o país agora seria uma saída da presidente?
Ela precisaria reassumir seu protagonismo e aprovar no Congresso medidas
estruturais que mudem o futuro do Brasil. A situação não é só grave no
presente, o problema é que não há esperança para o futuro. Esse é o
plano do Nelson [Barbosa], inclusive: cuidar do longo prazo para dar
esperança aos investidores de que haverá volta do crescimento, e cuidar
do curto prazo para não deteriorar muito mais a situação fiscal.
É preciso que as pessoas se convençam de que a reconquista da
estabilidade está a vista. Você precisa dar à sociedade uma esperança de
que o crescimento vai voltar.
Crescimento é um estado de espírito, só cresce quem acha que vai
crescer, e isso se perdeu. Um dos problemas é que, no segundo mandato, a
presidente não reconheceu que tinha errado e que a escolha do Levy era
uma mudança completa de orientação.
Quando o senhor percebeu que o país caminhava para uma crise grave?
Em 2011, a Dilma fez um governo absolutamente perfeito, corrigiu alguns
dos exageros do governo Lula, cresceu 3,9%, manteve a inflação em 6,2%,
teve superavit primário de 3% do PIB.
Em 2012 quando o governo imaginou que haveria redução de crescimento,
fez uma intervenção na energia, que foi um desastre. Aqui é importante
notar que, quando o Executivo é controlado pela pesquisa de opinião,
pode ser levado a tragédia.
Como assim?
Quando ela começou a intervenção na energia elétrica, teve um aumento de
quase 6 pontos percentuais de aprovação. Era uma tragédia. Mas para
quem? Para aqueles que enxergavam 12 meses na frente. Para quem ia pagar
a conta do mês seguinte era uma medida maravilhosa. A resposta da
sociedade foi extremamente positiva, ela apoiou a Dilma nos seus
equívocos.
Como se não bastasse, quando houve a segunda intervenção danosa, que foi
reduzir a taxa de juros sem produzir as condições fiscais para isso,
ela teve mais um surto de aprovação. Ela atingiu o máximo de sua
aprovação quando estava no máximo do erro.
A pesquisa de opinião é distante, não reflete se uma medida é certa ou
errada, responde aos interesses daquele instante. Visivelmente, você
estava construindo uma tragédia com o apoio da sociedade.
Como um governante eleito deveria lidar com isso?
Ele tem que ter um programa, saber o que está fazendo. Tem que conhecer as consequências.
O senhor disse no passado que achava a presidente uma mulher muito inteligente. O que deu errado?
Continuo achando ela inteligente, não mudou nada.
Faltou habilidade política?
Acho que faltou habilidade política. Ela é pessoalmente correta, tem
honestidade de propósito e tem um objetivo que é a modicidade tarifária.
Todos esses erros foram produzidos pela modicidade tarifária.
A modicidade tarifária é um erro?
É uma boa ideia que, mal usada, pode produzir grandes erros: por
exemplo, quando fixo a taxa de retorno no leilão, quando, para controlar
a inflação, controlo o câmbio, quando, para controlar a inflação,
controlo o preço da gasolina, empurro um buraco gigantesco na Petrobras e
destruo o setor de etanol.
Esses erros pesaram contra o governo?
Isso tudo foi acumulando e, a partir de junho de 2013, começou um
desarranjo político muito sério. Depois daquelas passeatas, o governo
nunca mais juntou pé com cabeça.
As passeatas foram um divisor de águas?
Eu diria que a passeata foi um instante em que a sociedade que tinha
errado todo o tempo respondendo às pesquisas acordou. E ela deveria ter
acordado antes da sociedade.
Algumas medidas que os economistas listam como necessárias para
retomar o crescimento são impopulares. A sociedade está preparada?
Algumas questões são restrições físicas. Por exemplo: nada mais justo
que um bom sistema previdenciário, nada mais insustentável do que um mau
sistema previdenciário. Um bom sistema previdenciário precisa ser
atuarialmente sustentável. Isso não tem nada que ver com a pobreza.
O que é preciso? O papel do governo, do líder, é explicar para a
sociedade por que existem restrições físicas e que, se você violá-las
hoje, ela aparece amanhã com uma vingança.
É isso que se exige da liderança, e não obedecer à opinião pública.
É isso que se exige da liderança, e não obedecer à opinião pública.
É se antecipar, educar para as restrições físicas que são inevitáveis.
Quando você tenta violar as condições da contabilidade nacional você
está construindo a tragédia. Quando você tenta distribuir mais do que
produziu, sem ter ganhado algo de presente ou tomado emprestado, você
está construindo a tragédia.
O problema é que a construção da tragédia, no curto prazo, produz um
enorme entusiasmo nas pessoas que não têm condição de ver um horizonte
mais longo. Mas isso é uma coisa que vai chegar com educação.
Os erros foram do PT?
Não. O Lula aproveitou uma situação mundial favorável e fez um bom
governo, a destruição das finanças foram em 2014, produzidas pela
redução do crescimento. A partir de 2012, você começou a entrar em um
desvio perigoso e está colhendo os frutos.
Os erros foram da presidente e de seu governo?
Acho que a presidente sempre foi a chefe da Casa Civil, a ministra da
Justiça, da Fazenda, do Planejamento, dos Transportes, do Bem-estar
Social. Para o governo Dilma funcionar, o dia teria que ter 240 horas.
Ela é compulsivamente detalhista e tem pouca confiança em seus
auxiliares.
Isso é incompatível com o bom exercício da Presidência?
Torna tudo muito mais difícil, porque você está num sistema
presidencialista de coalizão. O presidente tem que 'presidencializar' e
'coalizar'.
O senhor tem falado muito sobre o presidencialismo de coalizão.
Visivelmente não funciona. Basta ver a história recente. Temos que
caminhar para algo diferente, provavelmente para algum mecanismo de
parlamentarismo. Mas isso exige uma mudança profunda do regime
eleitoral.
Você precisa, na verdade, ter um sistema eleitoral em que haja regras de
barreira, que não permita alianças de partidos no nível inferior, que
seja distrital, porque o distrito é a forma mais interessante de
melhorar a qualidade do político. O distrito exerce sobre o político um
controle que as pessoas não percebem.
Por que é tão difícil adotar as reformas necessárias para o Brasil crescer de forma sustentada?
Esse é um processo evolutivo. Cada eleição, à medida que é mais livre,
vai empoderando o cidadão, mas o que empodera de verdade, é o grau de
conhecimento, de educação, sua capacidade de enxergar um pouquinho mais
longe.
As ações não nasceram perfeitas, é um processo quase biológico, uma
seleção natural. O homem na história foi procurando alguma forma de
administração que satisfizesse a três condições: a liberdade de
iniciativa, relativa igualdade de oportunidade e eficiência produtiva.
O homem não nasceu para trabalhar, o homem nasceu para realizar sua
humanidade. Então por que precisa de eficiência produtiva, que é do que
os economistas cuidam? É para ter mais tempo para construir sua
humanidade.
O senhor vê sinais de que a sociedade e a classe política brasileira
estão chegando a esse ponto de enxergar as mudanças necessárias?
Sim, é visível. Vai avançando lentamente, mas avança. Mesmo o sistema distrital, está se construindo naturalmente.
Que sinais o senhor vê disso?
Hoje grandes cidades do interior, já elegem seu próprio representante. É
muito difícil o sujeito de Araraquara, buscar voto em Ribeirão Preto.
Ou seja, as coisas começam a caminhar. O homem já acreditou no
sacerdote, no rei, no presidente e foi avançando. Hoje todo mundo sabe
que a sociedade razoável é aquela onde você progride, mas seu vizinho
cresce junto.
Como as tensões da sociedade brasileira afetam a chance de a presidente Dilma continuar no cargo?
A probabilidade diminuiu.
Que cenário o sr. vê?
Hoje, quem me disser o que vai acontecer nos próximos 30 dias ou está
mentindo ou está mal informado. Foi iniciado um processo no Congresso
que termina com ela ficando ou saindo.
O que vai determinar o resultado?
O que está acontecendo agora. É tão volátil o Congresso. A Câmara é de
uma volatilidade enorme, ela varia de 50 votos para 350 com uma notícia.
Hoje, você não tem controle sobre as notícias. Mas acho que a
probabilidade do impeachment cresceu bastante, muito mais do que teria
crescido se tivesse dado certo a nomeação do Lula.
A confiança foi abalada com a conversa vazada pela Polícia Federal?
Podem dizer que a Dilma tentou proteger Lula, mas como vão saber? É uma
questão de sentimento interno, você precisa provar que isso aconteceu.
Mas o grampo deu um sentimento de que a atitude foi para proteger, e as
coisas evoluíram muito depressa.
A sociedade inteira está estupefata diante dessas coisas. E você está judicializando toda a política.
Isso é ruim?
Há coisas que são fundamentais; o respeito ao STF (Supremo Tribunal
Federal) é a garantia de todas as nossas liberdades. Um ministro do
Supremo não tem passado, só futuro. É o respeito que ele tem da
sociedade que decide seu futuro. Então vejo com preocupação essa ideia
de que "ah, o Congresso não vale nada, o Executivo não vale nada". Mas
quem escolheu o Supremo? O Executivo e o Congresso. Como pode sair a
pureza do que não vale nada? Há uma contradição nessas coisas.
O que fundamenta essas crenças?
É assim que funciona. As pessoas têm dificuldade de superar suas próprias crenças e desejos.
Já experimentamos tudo e sabemos que nada funciona fora do regime democrático apoiado numa economia de mercado. Você tem 30 países no mundo razoavelmente civilizados e democráticos, todos usaram o mesmo processo. Quer dizer, não precisa ficar inventando, copia, copia bem feito, mais nada.
Já experimentamos tudo e sabemos que nada funciona fora do regime democrático apoiado numa economia de mercado. Você tem 30 países no mundo razoavelmente civilizados e democráticos, todos usaram o mesmo processo. Quer dizer, não precisa ficar inventando, copia, copia bem feito, mais nada.
Se a presidente sair, o impeachment é o caminho institucionalmente melhor?
São questões pessoais. Eu sempre fui contra o impeachment, porque ele exige uma violação de função. Então, nunca me convenci de que as puras mutretas que se chamaram de "pedaladas"... Elas vêm desde dom João 6º.
São questões pessoais. Eu sempre fui contra o impeachment, porque ele exige uma violação de função. Então, nunca me convenci de que as puras mutretas que se chamaram de "pedaladas"... Elas vêm desde dom João 6º.
Vai ter que provar no Congresso se realmente houve a violação de função.
O grampo traz evidências mais graves do que as pedaladas?
Mas teria que provar. O grampo é um indício, uma questão, digamos, psicológica. Só o Supremo pode decidir.
Essas ressalvas tiram legitimidade do processo de impeachment?
Não, ele absolutamente é legítimo. Está no Congresso, na Constituição.
Quando acontece uma violação de função. Mas tem que provar.
O que o senhor acha do documento "Ponte pra o Futuro". É correto chamá-lo de "plano Temer" [Michel Temer, vice-presidente]?
É correto porque foi ele que propôs. Aquilo não tem autor, é uma
emanação de um razoável consenso que domina as pessoas razoavelmente
conscientes da sociedade. As pessoas sabem que é preciso ter um mínimo
de consenso pra administrar. É um bom programa.
Se adotado ajudaria a recuperar o crescimento?
Eu não tenho dúvida. Qualquer governo que tivesse aquele programa e poder para implementá-lo melhoraria dramaticamente o Brasil.
Muitos políticos podem ser implicados pelas investigações da Lava
Jato. Isso não é um risco para um eventual governo de transição?
São duas coisas completamente diferentes. A Lava Jato é um ponto de
inflexão na história do Brasil. Tem inconvenientes instantâneos, mas vai
mudar o comportamento da sociedade brasileira. Vai gerar mudanças
estruturais que, no futuro, irão acelerar o crescimento do país.
O sr. é bastante próximo de Michel Temer. No passado, foi citado
também como conselheiro do ex-presidente Lula e da presidente Dilma.
Quando o sr. se afastou do governo atual?
Você acredita na imprensa? [risos]. Na verdade eu nunca fui conselheiro,
mas fui grande amigo do governo Lula e do governo Dilma até o fim de
2012. Acho que o Lula fez um bom governo. Acho que a Dilma fez um
excelente 2011 e começou a se desviar em 2012.
Desde dezembro de 2012, quando foi feita aquela operação sinistra em que
se transformou dívida pública em superavit primário, via BNDES, eu
tomei distância. Mas não tenho esse espírito crítico exagerado que as
pessoas pensam. Governar é muito difícil.
*
RAIO X
Antonio Delfim Netto
Antonio Delfim Netto
IDADE
87 anos
87 anos
OCUPAÇÃO
Economista e professor emérito da Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo (USP)
Economista e professor emérito da Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo (USP)
CARREIRA
Ministro da Fazenda (1967-1974), embaixador do Brasil na França (1975-1978), ministro da Agricultura (1979) e do Planejamento (1979-1985), deputado federal (1987-2007)
Ministro da Fazenda (1967-1974), embaixador do Brasil na França (1975-1978), ministro da Agricultura (1979) e do Planejamento (1979-1985), deputado federal (1987-2007)
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