Por que a decisão do plenário do Supremo sobre Renan foi tão criticada?
Tinha a impressão de que essa era a decisão que seria tomada quando o julgamento fosse encerrado. Tanto é que o decano, Celso de Mello, que tinha votado como manda a maioria, também fez essa ressalva. É o que a Constituição permite. O que a Constituição diz? Recebida a denúncia contra o presidente da República — e ele só responde por casos de crime cometido durante o mandato — ele será afastado por seis meses. A rigor, isso não deveria afetar o mandato, nem a eleição para presidência da Câmara e do Senado. Esse sempre foi o meu referencial. Era desejável que o constituinte tivesse escrito isso, mas ele não escreveu, não colocou isso. E há formas especiais de perda dos mandatos e dos cargos do presidente da Câmara e do Senado.
Houve uma reação da sociedade em relação ao presidente do Senado não acatar de imediato a decisão da liminar. Isso não prejudica a imagem do Supremo?
É uma questão que vem se tornando muito delicada nos últimos anos, em função talvez até da sobrecarga e da dificuldade de se fazer julgamentos no plenário do Supremo. Nós montamos inclusive o sistema para turmas, por conta dessas dificuldades. As exigências de submeter as questões de preliminares ao plenário, antes da decisão, têm sido flexibilizadas, não vêm sendo cumpridas. Cada vez mais os ministros decidem monocraticamente aquilo que, na exigência legal, deveria ser decisão do plenário, como no caso dessa ADPF. O que aconteceu é que a lei exigia que o tema fosse levado ao plenário, e a decisão foi tomada monocraticamente na segunda-feira. Poderia ter esperado até quarta-feira, e ter sido pautada no plenário. Mas preferiu-se conceder a decisão monocraticamente. E, assim, a Mesa do Senado exigiu que fosse cumprido aquilo que está na legislação, e que a decisão fosse tomada pelo plenário. Não se deveria executar uma decisão que era precária, que não atendia aos requisitos legais. Então, me parece que a multiplicação dessas decisões que o Supremo tem tomado monocraticamente é uma clara violação à lei. E tem acontecido cada vez mais, e, inclusive, com a nova composição isso se tornou mais frequente.
Ainda assim, essa decisão, tida como desobediência para alguns, não pode soar mal para o cidadão comum? O presidente do Senado não atender a um oficial de Justiça não é ruim?
Não conheço as circunstâncias do caso. Agora, no caso específico, volto a dizer: a lei exige o pronunciamento do plenário, até por causa da gravidade da situação. Era a decisão do Supremo, não de um ministro individualmente. Essa ADPF gerou uma série de sobressaltos. Ela foi pautada num dia qualquer, quando o ministro Teori Zavascki tinha o pedido de afastamento do Eduardo Cunha. O julgamento não se deu naquele momento, porque o ministro Teori trouxe seu despacho e a sua decisão para referendo, naquele mesmo dia, e que ficou prejudicada a situação. Houve o início do julgamento, teve pedido de vista e, logo após, uma escaramuça entre o relator e o ministro Toffoli, por conta do pedido de vista do processo não ter sido enviado ao gabinete do ministro Toffoli. Então vem um novo pedido ou a reiteração do pedido ao gabinete, e isso se decide monocraticamente? O que me parece é que há uma confusão. Nós, do Supremo, deveríamos ser os primeiros a cumprir o que está no nosso regimento.
O senhor pediu o impeachment do ministro Marco Aurélio?
Na verdade fiz blague, dizendo que temos pago um preço muito alto por conta de idiossincrasias, toda hora, ao longo dos anos. Se fizer um levantamento na história, o tribunal é chamado para apagar incêndios causados por essas posições. Embora cada ministro tenha uma carga de poder imenso, o que importa é a instituição, o colegiado. Devemos reparar na jurisprudência do tribunal e seguir essa jurisprudência. Quando atuamos como se fôssemos seres únicos e onipotentes causamos problemas institucionais graves.
Foi o que aconteceu, ministro?
É o que tem acontecido. Ao longo dos anos, temos vários casos de repetição disso. Seja lá qual fenômeno mental que estimule esse tipo de atitude, de fato, isso tem se repetido. Não é um bom exemplo.
Por que o ministro Marco Aurélio agiu dessa forma, então?
Não vou fazer psicografia da alma e nem psicologia nesse momento. Cada qual que responda por suas responsabilidades. Agora pode se ter espaços para essas idiossincrasias em outros ambientes, não no tribunal. Podemos até errar, o plenário corrige, quando não sabemos ainda jurisprudência e tudo mais. Porém, quando conhecemos a jurisprudência e a clareza dos textos, temos que observá-los. A legislação não deixa dúvidas de que as liminares têm que ser decididas pelo plenário, porque estamos suspendendo atos legais. Portanto, é muito difícil justificar essa atitude. A lei permite sessões em caso de urgência. Qual era urgência de fazer na segunda-feira, e não na quarta-feira? Na quarta, seria a decisão do colegiado, e talvez o plenário não referendasse, como acabou não referendando
Uma exposição desnecessária para o Supremo e para os ministros?
Certamente, poderíamos ter passado sem esse incidente. Considerando a nossa tradição, a força do Supremo ao longo dos anos. É algo que no Brasil, sobretudo, e no mundo todo, tem uma representatividade. Agora, tenho a impressão de que devemos tirar proveito dessa decisão e fazermos uma profunda autocrítica. Temos tido decisões realmente extravagantes em relação à lei e ao regimento. Têm liminares que deveriam ter sido submetidas ao plenário e que não foram. Acredito que deveríamos fazer um inventário e trazer tudo isso, para evitarmos exatamente esse tipo de situação.
Mas haveria necessidade do impeachment?
Claro que, a qualquer hora, alguém contrariado pode pedir um impeachment do presidente do Supremo, ou de algum membro. E o Senado em geral arquiva e tudo mais. É preciso levar isso a sério quando se age com ilegalidade, de forma sistêmica, repetida. Porque não é dado ao ministro do Supremo causar tamanha insegurança jurídica, seja lá em que nome for, a título de imaginar que seja. Claro que podemos criar um clima de hermenêutica. Mas este caso é um caso de ilegalidade aritmética, porque, se a lei exige que a decisão liminar seja tomada por seis votos, e alguém decide sem urgência tomar a decisão, por um voto, estamos falando de uma ilegalidade. Não se pode imputar inconsciência, inexperiência ou analfabetismo jurídico. Então, alguma providência tem que se tomar, para benefício de todos e da instituição. Tem que se refletir nesse sentido, se nunca foi discutido, tem que ser discutido.
Como isso deve ocorrer?
Fazer valer as leis. Tenho impressão de que esse tipo de prática foi alimentada pelo excesso de processo e PELA dificuldade de colocar esses processos em pauta. Em geral, concede uma liminar, coloca o processo à disposição do plenário, mas ele não é chamado, por conta das dificuldades de pautas. E isso foi alimentando, nesses casos específicos, uma série de práticas heterodoxas, ilegais vamos dizer assim. Se passou a conceder liminar sem a necessária urgência, sem cumprir portanto a lei e sem submeter a plenário. Esse caso mesmo, se não fosse a crise só seria submetido a plenário no ano que vem.
Mesmo estando fora (em Estocolmo), o senhor atuou de maneira decisiva nessa crise.
Na verdade, tenho um posicionamento muito claro. As coisas que estou dizendo nesta entrevista, já disse no plenário. Esse é um jogo institucional muito complexo, com diferentes players. A Corte não está jogando sozinha no cenário político. E isso começa a ter reações. Eu tenho sido uma das vozes recomendando cautela. Por exemplo, quando nós vemos agora a Câmara discutindo esse pacote das 10 medidas, aprovar medidas restritivas ao Judiciário e ao Ministério Público com mais de 400 votos, percebemos que há um desconforto e um certo incômodo a esse empoderamento e a essa alienação, vamos dizer assim, do aparato judicial, da própria polícia e do Ministério Público.
O senhor chegou a conversar com algum integrante do Senado?
Não.
O Supremo levou em conta o fato de o Renan ser um pilar de sustenção do governo Temer?
Não sei se essa consideração foi feita pelo tribunal. Acho que o tribunal se limitou a fazer uma análise quanto à legalidade da medida. Agora, claro que, quando se discute esse tipo de tema, não se pode tomar decisões no sentido de que se faça justiça, ainda que o mundo pereça. Têm que se considerar todas as consequências. Quem toma a decisão tem que, de fato, saber se será capaz de executá-la. Tenho dito sempre: não devemos acender fósforo para ver se tem gasolina no tanque. Porque você pode colher como resultado o que se assemelha ao que foi colhido neste caso, uma explosão. E suspensão de um presidente da Câmara, Senado e de uma Assembleia Legislativa, órgãos representativos da comunidade, são decisões graves. Pois estamos afetando o próprio Poder, a coordenação do Poder, o equilíbrio do Poder. Temos de fazer uma análise mais sofisticada.
O protagonismo do Judiciário não atrapalha?
Temos vários problemas. Um deles talvez seja incontornável, porque a Constituição abriu até mesmo a possibilidade para associações e ações sindicais fazerem essas ações diretas. Portanto, qualquer segmento mais representativo consegue levar ao Supremo os temas mais delicados do ponto de vista da constitucionalidade. Por outro lado, também se previu que o Supremo faça o controle da omissão legislativa, e, por isso, este é um tema de embate, pois a toda hora se reclama que o Congresso deixou de legislar. No âmbito do Supremo, é quase que inevitável aquilo que chamo de judicialização da política. Porém, isso se estendeu para todos os ambientes judiciais — do vereador ao prefeito, e do deputado estadual ao governador, todos reclamam das intervenções judiciais, a judicialização da saúde pública, as recomendações que vêm do Ministério Público para essa ou aquela diretriz de abuso de autoridade.
O Congresso está sendo omisso?
O próprio Congresso foi cedendo espaço, por exemplo, ao aprovar a Lei da Ficha Limpa, em 2010. Pressionado pela opinião pública e por determinados grupos, o Congresso aprovou uma lei bastante ruim, com grandes deficits sistêmicos, mas que empodera ainda mais o Ministério Público e os juízes. Basta uma decisão de segundo grau para que alguém seja afastado da política, se torne inelegível. Nós temos tido casos bizarros. Recentemente, em Mato Grosso, o Tribunal de Justiça se reuniu em um sábado para confirmar a condenação de um prefeito e tirá-lo do processo eleitoral porque precisava da decisão de segundo grau antes das eleições. São casos abusivos que vão se verificando em função da Lei da Ficha Limpa. Isso gera no estamento político também um tipo de reação que, agora, começa a se perceber. Acredito que isso precisa ser devidamente coordenado, criando normas procedimentais em nome de maior segurança jurídica, criando essa análise por parte dos atores do Ministério Público e do Judiciário em geral.
Mas, por conta do protagonismo desses atores, isso não parece ser cada vez mais impossível?
Eu tinha a impressão de que, no plano do Supremo e do Congresso, isso se pode fazer primeiro com a observância das regras já existentes. Juiz do Supremo não pode ficar violando as regras procedimentais óbvias, nenhum juiz deveria poder fazê-lo. Se queremos que as nossas decisões sejam observadas, elas têm que se pautar com um grau de legitimidade e razoabilidade. Eu reparo que esse é um problema que se aprofundou porque, a toda hora, se ouvem prefeitos dizendo que os promotores querem administrar a cidade e tomam medidas. Em Brasília, o governador Rollemberg, querendo adotar OSs para a saúde, teve dificuldade porque os promotores assumiram posições corporativas a favor dos sindicatos, médicos, paramédicos, e contra diretrizes de quem tem legitimidade democrática.
O que amplia o desgaste geral.
Todo esse processo leva a um desgastamento da legitimidade e provoca reações como essa que vimos na Câmara. Quando se tem uma alternativa, uma resposta vem equivocada, mas que tem um efeito simbólico enorme. Quando você tem mais de 400 votos em um projeto de lei ordinário, significa que, se aquele conteúdo tivesse sido submetido sob forma de emenda constitucional, poderia ter virado a emenda constitucional.
A sociedade foi para as ruas criticar o Congresso por tentar desfigurar as medidas.
É normal. A sociedade não quer ser complacente com malfeitos, corrupção e coisas do tipo. Agora, é preciso contar a história inteira para a sociedade. Em geral, a sociedade recebe também o tema filtrado. Em relação às 10 medidas, elas foram concebidas, talvez, em um laboratório. As pessoas não levaram em conta que elas passariam por um processo crítico ou consideraram que diante do empoderamento de determinados segmentos, principalmente a pluralidade dos atores da Lava-Jato, elas seriam aprovadas. No que diz respeito ao habeas corpus, basta consultar qualquer advogado com alguma experiência, que ele diria que o projeto acabava com o habeas corpus no Brasil. Talvez fosse o AI-5 nosso, em relação ao habeas corpus em tempos modernos, porque praticamente não se daria mais liminar em habeas corpus a não ser que o sujeito estivesse preso. Não se daria mais habeas corpus para anular processos, trancar inquéritos e coisas do tipo.
Mas a própria Justiça não está resistindo a conceder habeas corpus?
Nesse episódio da Lava-Jato, o Supremo foi econômico na concessão de habeas corpus. Mas os tribunais de baixo, o TRF do Rio Grande do Sul e o STJ, salvo engano meu, não concederam nenhum habeas corpus. Isso mostra não que tudo esteja certo na Lava-Jato, mas que há um temor, não de um juiz de baixo, mas da opinião pública. É bom que o cidadão saiba que, quando o juiz tem medo de conceder habeas corpus, o seu direito está sendo ameaçado.
Qual a avaliação do senhor sobre o foro privilegiado?
Eu vejo ainda com muita dificuldade, porque há uma desconfiança recíproca na relação dos Poderes com o Judiciário. Seria muito fácil se tivéssemos essa tradição e a despolitização da Justiça, o que está longe de ocorrer entre nós. Imagine o poder que um governador tem na Justiça do seu estado. Não faz muito tempo, a ex-corregedora, Eliana Calmon, denunciava que as ações de improbidade não andavam no Rio de Janeiro contra os políticos, apontando um pacto entre o Judiciário e os políticos locais. Portanto, esse poder pode existir no abuso, nesse ou naquele sentido. É normal que os políticos tenham desconfiança e que possam ser expostos a um processo injusto, isso pode ocorrer. O nosso problema, hoje, no Supremo, é que o foro foi ultradimensionado, ele abrange todos os parlamentares. Mais de um terço do Congresso é investigado, o que dificulta enormemente a tarefa do Supremo, afinal nós somos 11. Os processos ficam com um relator, tendo em vista relações de continência, conexão, prevenção... Tem o ministro Teori, com a Lava-Jato, praticamente tem que dedicar todas as suas forças, aí é complexíssimo. A persistir esse quadro, não vejo que o Supremo tenha condições de continuar com essa competência. Nem mesmo qualquer tribunal.
Isso provoca uma falha sistêmica?
A Justiça criminal como um todo, no Brasil, é muito falha, muito deficitária. Nós demoramos 12 anos, em média, para colocar alguém no júri, alguém que matou, confessadamente. Nós temos uma falha geral no sistema de Justiça criminal. Se a gente quisesse dar a função prioritária a um tema de reforma judiciária, seria para a Justiça criminal como um todo. Então, também não vamos imaginar que, passando os processos para primeiro grau, vamos ter uma dinâmica muito diferente. Vamos ter os mesmos fenômenos de prescrição, de demora e tudo mais.
Esse debate aconteceu no mensalão.
No caso do mensalão, a gente tem um bom exemplo. O processo andou no Supremo, mas os processos filhotes, que foram mandados para o primeiro grau, praticamente ficaram parados, um dia estarão prescritos. Não se pode fazer esse contraponto a partir das referências do juiz Sérgio Moro de que a primeira instância funciona e o Supremo ou outros tribunais não funcionam. Em geral, se fizerem um balanço honesto, a justiça criminal como um todo, no Brasil, é extremamente falha. Eu, como presidente do CNJ, visitei vários estados do Brasil acompanhando como está a realidade do sistema prisional e criminal. Eu encontrei, em Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco, um número imenso de processos para serem prescritos, até de homicídio. É o processo mais grave para a comunidade em geral e é o que tem, por conta das dificuldades como composição dos jurados, organização do júri, maior demora no julgamento. Tanto é que, na nossa época, fizemos mutirão para fazer júri, além de reunião com os promotores. Esse tema tem que ser tratado de uma forma completa. Não pode ficar nesse maniqueísmo de que o Supremo é mau e a primeira instância é boa, porque nós vamos encontrar vários casos de prescrição de crimes graves porque não houve andamento correto dos processos.
O Supremo se enfraqueceu nesse episódio do Renan? Nas redes circulou um cartaz com o dizer: STF, Só Tem Frouxo.
Isso é absolutamente normal. Uma das funções da jurisdição constitucional, em muitos casos, é ter capacidade de adotar uma postura contra o majoritário. A população, em geral, por conta até das informações que vocês da imprensa trazem, não tem filtro, não tem mecanismos mais sofisticados de fazer avaliação do processo. Ela opera em uma lógica binária, está certo ou errado, sou a favor ou contra o bandido. A Justiça é mais complexa que isso. É normal que isso ocorra. É preciso que nós expliquemos que, também por isso, é que se dão garantias aos juízes, diferente do que se dá até ao sistema político, porque muitas vezes ele vai ter que enfrentar esse tipo de situação.
O senhor já foi questionado algumas vezes.
Eu me lembro que, na minha presidência, eu tive que conceder dois habeas corpus ao Daniel Dantas e fui achincalhado por isso. No final, se descobriu que o criminoso era o delegado e se viu todo o abuso cometido. O grande herói da época era o juiz De Sanctis, que acabou até merecendo punição por parte do CNJ. O tribunal tem que saber conviver com isso e, claro, é importante que vocês também expliquem as decisões e não se embalem por essa toada da mídia das redes sociais. A população, em geral, diante das informações, não sendo especializada, opera nessa lógica binária, certo ou errado. Em uma comunidade ativa como é a nossa, com todos esses meios de comunicação, é compreensível isso. Agora, eu entendo, pior seria se o STF, a partir de um erro enorme daqueles, decidisse persistir no erro por coleguismo, companheirismo.
Isso não desmoraliza o STF em um momento tão crítico quanto esse que estamos vivendo?
Não, desmoralizaria o tribunal se ele tentasse implementar uma decisão equivocada do ponto de vista jurídico no critério corporativo.
Outra decisão que trouxe muita controvérsia foi a que autoriza o aborto até o terceiro mês de gestação.
Nós temos que ser mais procedimentalistas. Temos que respeitar as regras básicas, inclusive as regras do processo. Uma matéria dessa, por exemplo, não poderia ter sido decidida na turma. Se era para ser discutido o tema de fundo do aborto, três meses, dois meses, seja lá o que for, teríamos que decidir isso no plenário. Foi decidido na turma e passa a impressão de que é uma decisão que aproveita as circunstâncias, o que também não é bom para o sistema judiciário. Nós não fazemos precedentes a partir de esperteza, isso pode até funcionar no mundo político.
O que houve?
Nesse caso, justiça se faça ao ministro Marco Aurélio, ele concedeu o habeas corpus apenas no fundamento do prazo excessivo da prisão. Isso foi claramente colocado, mas três ministros decidiram enfrentar o tema substancial, só que a turma não tinha competência para isso. Não deixa de ser irônico que alguns dos participantes da votação sobre a vaquejada, que consideraram que eventualmente quebrar o rabo do boi é muito danoso e afeta a dignidade de todas as pessoas e votaram pelo fim da vaquejada, agora estão permitindo o aborto.
Como está o processo em relação à cassação da chapa Dilma/Temer no TSE?
O processo ainda está em andamento, é um processo muito demorado. O ministro Herman Benjamim está acompanhando todos os casos e depoimentos, mas esse processo, certamente, só vai ter andamento no ano que vem, a conclusão é no ano que vem.
O senhor tem um prazo, uma ideia?
Eu espero que no primeiro semestre.
A situação do Brasil melhorou nesses seis meses?
Eu tenho a impressão de que temos maior diálogo entre sistemas políticos e um ambiente de liberdade. Estamos respirando e buscando soluções. Certamente, vamos avançar. Todos os fatos que ocorreram nesses últimos anos são surpreendentes, mas muito surpreendente também é o fato de termos demorado muito com tantos órgãos de controle para desvendá-los, descobri-los. Isso foi um dado realmente preocupante e, de fato, o país chegou a frangalhos em termos de responsabilidade fiscal. Isso não só no âmbito federal, como no âmbito dos estados. É o que está havendo, hoje, de maneira mais explícita, no Rio de Janeiro, mas pelo menos outros 13 estados estão atingidos fortemente pela crise. Porque nós temos uma profunda crise após todos esses anos e precisamos enfrentar com garantia, com responsabilidade, para superá-la.
Em relação à Odebrecht, já há quem diga que o Supremo terá de ampliar muito a sua capacidade de análise técnica de processos.
Certamente, diante dos pedidos, o tribunal vai fazer os ajustes possíveis e vai tentar fazer os devidos encaminhamentos. Não haverá maiores dificuldades. Se for necessário, haverá a possibilidade de colocação de mais instrutores para trabalhar com o relator, ministro Teori. Mas vamos aguardar primeiro essa prometida enxurrada de nomes e de investigações.
O senhor é um crítico forte das 10 medidas, e os promotores, integrantes da força-tarefa, chegam a dizer que o senhor é o carrasco da Lava-Jato. Se sente ofendido?
Não, eu fico muito orgulhoso de ter sido carrasco, por exemplo, dessas medidas como o teste de integridade, aproveitamento de prova ilícita, mas isso não tem nada a ver com a Lava-Jato. Quando discutimos a Lava-Jato no plenário, lá na turma, eu tenho apoiado o ministro Teori em vários casos em que ele tem mantido as prisões. Recentemente, estive no Senado com o juiz Moro. Agora, daí a subscrever as propostas da equipe da Lava-Jato, em matéria de legislador, eu prefiro os legisladores que temos.
Por quê?
Não vejo esses personagens como legisladores e, obviamente, já estou muito velho para bater palma para maluco dançar. Quando percebo distorções, eu aponto o que é da minha responsabilidade. Não vejo que se deva empoderar ainda mais órgão já empoderado, como o Ministério Público e o próprio Judiciário. E eu sei da dificuldade de se conceder habeas corpus. Eu vejo os próprios colegas que ficam perplexos diante de determinados desafios porque precisa vir a repercussão da opinião pública. Quando se pensa em tornar mais difícil a concessão de habeas corpus, eu vejo isso com preocupação. Fico muito orgulhoso, eu gosto de traduzir, chamar as coisas pelo nome e assumir responsabilidade. Não fiz críticas pelas costas, disse as minhas divergências, agora no Senado, com o juiz Moro, face a face, dizendo as coisas com as quais eu não concordo. E sou um defensor, desde 2008 ou 2009, de uma nova lei de abuso de autoridade e não vejo que isso seja feito contra a Lava-Jato, isso se faz um favor para os cidadãos do Brasil.
O abuso de autoridade ficou para o ano que vem. O senhor enviou as sugestões?
Eu enviei, entreguei sugestões no dia e certamente ele as incorporou às ideias. Mas eu acho que podemos discutir mais o projeto. Outra coisa é dizer que um dado projeto não pode ser aprovado. Eu acho que estamos com uma lei de abuso de autoridade de 1965, e nós empoderamos as autoridades ao longo desses anos de maneira muito clara, o texto constitucional e a legislação reforçaram. Agora, questionar abuso de autoridade de promotor, de juiz e de delegado não tem nada a ver com combate à criminalidade. O combate à criminalidade tem que se dar nos termos da lei, respeitando o princípio da legalidade, se não você equipara o juiz a um justiceiro qualquer, e isso não pode ocorrer. As coisas precisam ser bem definidas e que haja um novo estatuto sobre abuso de autoridade. Todos sofrem abuso de autoridade: aquele que fica na fila, que tem que contratar despachante, aquele que é atacado por um policial, que é atingido por apreensões indevidas, invasão de domicílio.Tudo isso a lei tenta atender, portanto, não tem como foco operações policiais ou judiciais.