quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

D. Paulo Evaristo Arns foi 'meu tipo inesquecível'

Por Clóvis Rossi - Folha de SP
Meu pai tinha em casa uma coleção da "Seleções do Reader's Digest", uma publicação que fazia ampla propaganda do "american way of life" (diziam até que era financiada pela CIA).

Eram revistas já velhas, quase todas dos anos 40 e 50 (meu pai nasceu em 1918 e morreu em 1969). Eu lia com especial interesse uma seção permanente da revista chamada "Meu Tipo Inesquecível".

Desde moleque, imaginava um dia escrever um texto com esse título. Cumpro hoje esse sonho, ao escrever sobre dom Paulo Evaristo Arns, o único personagem público realmente inesquecível, das centenas que conheci em mais de meio século de jornalismo.

Acompanhei-o, à meia distância, nos diferentes momentos de sua luta contra a ditadura, mas tornei-me fã incondicional quando me pus a trabalhar sob o guarda-chuva da Arquidiocese de São Paulo na defesa dos perseguidos políticos do Cone Sul (uruguaios, argentinos, chilenos, paraguaios, bolivianos).

Toda essa sub-região caíra, em diferentes momentos, sob regimes ditatoriais e suas igrejas não eram particularmente atuantes do ponto de vista da defesa dos direitos humanos, exceto alguns setores da igreja chilena.

Dom Paulo e o reverendo Jaime Wright (morto em 1999) foram os principais inspiradores do Clamor (Comitê dos Direitos Humanos para os países do Cone Sul). O grupo editava um boletim com o mesmo nome, sob a chefia da jornalista britânica Jan Rocha, correspondente da BBC no Brasil e incansável ativista dos direitos humanos.

A orientação passada ao grupo (dom Paulo não dava ordens, preferia ensinar) era a de que não déssemos importância à origem político-ideológica de cada um que procurasse a arquidiocese.

Não havia entre eles "subversivos", o rótulo aplicado pelas ditaduras a todos os dissidentes, mas apenas seres humanos perseguidos.

A arquidiocese tornou-se uma espécie de pátio dos milagres, pela quantidade de deserdados políticos que abrigou, como primeiro porto de arribação na fuga das ditaduras.

Nessa condição, desfilaram por ela as histórias terríveis que só podem contar aqueles que são arrancados subitamente de suas casas, de suas famílias, de seus países, pelo único crime de pensarem de forma diferente dos donos de turno do poder.

Era o pulmão que dom Paulo e o reverendo Wright criaram para permitir alguma respiração fora do ar tóxico das ditaduras.

Uma história em particular me tocou. Graças ao trabalho da arquidiocese e a persistência da avó, foram localizadas no Chile, mais exatamente em Valparaiso, duas crianças uruguaias cujos pais haviam sido assassinados pela ditadura.

Não se sabe como, o casalzinho foi parar em Valparaiso e acabou adotado por um casal de dentistas, que não tinha a mais remota ideia da origem das crianças.

Preparei uma reportagem contando a história para a revista "IstoÉ", onde trabalhava então, mas, na hora do fechamento, dom Paulo ligou para pedir que suspendêssemos a divulgação, a pedido do cardeal Raúl Silva Henríquez.

Como o prelado chileno não explicara a razão do pedido, dom Paulo sugeriu que eu fosse ao Chile para saber exatamente o que estava acontecendo.

Estamos falando de um tempo sem internet, sem canais de TV com notícias 24 horas, sem a facilidade de comunicação telefônica de hoje – e, pior, em tempos de ditadura nos dois países.

Fui a Valparaiso, conversei com os pais adotivos e com as duas crianças e entendi o motivo do pedido: os pais temiam, com razão, que as crianças, já adaptadas à nova situação, sofressem com uma segunda perda dos pais, se devolvidas à avó, como esta solicitava.

Voltei e a Arquidiocese de São Paulo lançou uma negociação com a avó, os pais adotivos e as crianças que terminou com uma solução satisfatória para todos: as crianças ficariam com os novos pais, mas a avó teria o direito de vê-las quando pudesse e a recebê-las para passar as férias.

Este é apenas um dos muitos casos em que a sensatez e o coração de dom Paulo praticaram o melhor dos ensinamentos cristão. Definitivamente, um tipo inesquecível.

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