Folha - O senhor escreveu há alguns meses em sua conta no Twitter que
o afastamento de Dilma Rousseff foi um "impeachment Tabajara". Por quê?
Joaquim Barbosa - Tabajara porque aquilo foi uma encenação. Todos
os passos já estavam planejados desde 2015. Aqueles ritos ali [no
Congresso] foram cumpridos apenas formalmente.
O que houve foi que um grupo de políticos que supostamente davam apoio
ao governo num determinado momento decidiu que iriam destituir a
presidente. O resto foi pura encenação. Os argumentos da defesa não eram
levados em consideração, nada era pesado e examinado sob uma ótica
dialética.
Folha - O que sustentava esse grupo? Porque dez pessoas apenas não fazem um impeachment.
Era um grupo de líderes em manobras parlamentares que têm um modo de
agir sorrateiro. Agem às sobras. E num determinado momento decidiram
[derrubar Dilma].
Acuados por acusações graves, eles tinham uma motivação espúria: impedir
a investigação de crimes por eles praticados. Essa encenação toda foi
um véu que se criou para encobrir a real motivação, que continua válida.
O senhor acha que ainda há risco para as investigações que estão em curso?
Há, sim, porque a sociedade brasileira ainda não acordou para a
fragilidade institucional que se criou quando se mexeu num pilar
fundamental do nosso sistema de governo, que é a Presidência. Uma das
consequências mais graves de todo esse processo foi o seu
enfraquecimento. Aquelas lideranças da sociedade que apoiaram com vigor,
muitas vezes com ódio, um ato grave como é o impeachment não tinham
clareza da desestabilização estrutural que ele provoca.
O impeachment foi um golpe?
Não digo que foi um golpe. Eu digo que as formalidades externas foram observadas –mas eram só formalidades.
O impeachment não teve o apoio de setores econômicos?
A partir de um determinado momento, sob o pretexto de se trazer
estabilidade, a elite econômica passou a apoiar, aderiu. Mas a motivação
inicial é muito clara.
E qual é o problema do enfraquecimento da Presidência?
No momento em que você mina esse pilar central, todo o resto passa a
sofrer desse desequilíbrio estrutural. Todas as teorias dos últimos 30
anos, de hipertrofia da Presidência, de seu poder quase imperial, foram
por água abaixo. A facilidade com que se destituiu um presidente
desmentiu todas essas teses.
No momento em que o Congresso entra em conluio com o vice para derrubar
um presidente da República, com toda uma estrutura de poder que se une
não para exercer controles constitucionais mas sim para reunir em suas
mãos a totalidade do poder, nasce o que eu chamo de desequilíbrio
estrutural.
Essa desestabilização empoderou essa gente numa Presidência sem
legitimidade unida a um Congresso com motivações espúrias. E esse grupo
se sente legitimado a praticar as maiores barbáries institucionais
contra o país.
Durante alguns meses, em palestras, eu indagava à plateia: vocês acham
que, concluído o impeachment, numa democracia dessa dimensão, o país
sobreviverá por dois anos e meio à turbulência política que se seguirá?
E qual é a sua resposta?
Nós continuaremos em turbulência. Isso só vai acabar no dia em que o
Brasil tiver um presidente legitimado pela soberania popular. Aceito de
forma consensual, límpida, tranquila, pela grande maioria da população.
O sr. já disse que talvez o governo não chegue ao fim.
Corre o risco. É tão artificial essa situação criada pelo impeachment
que eu acho, sinceramente, que esse governo não resistiria a uma série
de grandes manifestações.
Que outros problemas o senhor vê no governo?
Os cientistas políticos consolidaram o pensamento de que o presidente
depende do Congresso para governar. E não é nada disso. Uma das
características da boa Presidência é a comunicação que o presidente tem
diretamente com a nação, e não com o Congresso. Ele governa em função da
legitimidade, da liderança, da expressão da sua vontade e da sua
sintonia com o povo. Dilma não tinha nenhum desses atributos.
Aí ela foi substituída por alguém que também não os têm, mas que acha
que está legitimado pelo fato de ter o apoio de um grupo de
parlamentares vistos pela população com alto grau de suspeição. Ele
[Temer] acha que vai se legitimar. Mas não vai. Não vai. Esse malaise
[mal estar] institucional vai perdurar durante os próximos dois anos.
E na área econômica?
O Brasil deu um passo para trás gigantesco em 2016. As instituições
democráticas vinham se fortalecendo de maneira consistente nos últimos
30 anos. O Brasil nunca tinha vivido um período tão longo de
estabilidade.
E houve uma interrupção brutal desse processo virtuoso. Essa é a grande
perda. O Brasil de certa forma entra num processo de "rebananização". É
como se o país estivesse reatando com um passado no qual éramos
considerados uma República de Bananas. Isso é muito claro. Basta ver o
olhar que o mundo lança sobre o Brasil hoje.
E qual é ele?
É um olhar de desdém. Os países centrais olham para as instituições
brasileiras com suspeição. Os países em desenvolvimento, se não
hostilizam, querem certa distância. O Brasil se tornou um anão político
na sua região, onde deveria exercer liderança. É esse trunfo que o país
está perdendo.
Isso é recuperável?
No dia em que a sociedade despertar e restaurar a Presidência através de
uma eleição em que se escolha alguém que representa os anseios da
nação, isso limpa esse "malaise", essa perda dos grandes trunfos.
O que o senhor achou da aprovação da lei de abuso de autoridade na Câmara?
Tudo o que está acontecendo esta semana no Congresso é desdobramento do
controvertido processo de impeachment, cujas motivações reais eram
espúrias.
Ou seja: a partir do momento em que se aceitou como natural o
torpedeamento do pilar central do sistema presidencialista, abriu-se
caminho para o enfraquecimento de outras instituições.
A lógica é a seguinte: se eu posso derrubar um chefe de Estado, por que
não posso intimidar e encurralar juízes? Poucos intuíram –ou fingiram
não intuir– que o que ocorreu no Brasil de abril a agosto de 2016
resultaria no deslocamento do centro de gravidade da política nacional,
isto é, na emasculação da presidência da República e do Poder Judiciário
e no artificial robustecimento dos membros do Legislativo.
Tudo isso pode ainda ser revertido pelo Senado, pelo veto presidencial
ou pelo STF. O importante neste momento é que cada um faça uma boa
reflexão e assuma a sua parcela de culpa pela baderna institucional que
está tomando conta do país.
E as medidas de combate à corrupção apresentadas pelo Ministério Público Federal e alteradas na Câmara?
Eu tenho resistência a algumas das propostas, como legitimação de provas
obtidas ilegalmente. E o momento [de apresentá-las] foi inoportuno. Deu
oportunidade a esse grupo hegemônico de motivação espúria de tentar
introduzir [na proposta] medidas que o beneficiassem.
O que o sr. acha da Lava Jato?
Eu acompanho a Lava Jato muito à distância, pela imprensa. Para mim é a
Justiça que está dando toda a aparência de estar funcionando.
O que o senhor acha da hipótese de Lula ser preso?
Eu nunca li, nunca me debrucei sobre essas acusações.
Sei que há uma mobilização, um desejo, uma fúria para ver o Lula
condenado e preso antes de ser sequer julgado. E há uma repercussão
clara disso nos meios de comunicação. Há um esforço nesse sentido. Mas
isso não me impressiona. Há um olhar muito negativo do mundo sobre o
Brasil hoje. Uma prisão sem fundamento de um ex-presidente com o peso e a
história do Lula só tornaria esse olhar ainda mais negativo. Teria que
ser algo incontestável.
Para finalizar: o senhor continua na posição de não ser candidato a presidente?
Eu continuo. Seria uma aventura muito grande eu me lançar na política,
pelo meu temperamento, pelo meu isolamento pessoal, pelo meu estilo de
vida. Eu não tenho por trás de mim nenhuma estrutura econômica, de
comunicação. Nem penso em ter.
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