Para mim é uma honra estar aqui. Sou a 1ª advogada transexual da região sul do Brasil e, como tudo na vida das pessoas trans é extremado, comigo não poderia ser diferente. Esta é a primeira sustentação oral que faço nestes meus dois anos de advocacia e ela acontece na suprema corte do nosso país.
Sinto que estou fazendo história, mas se estou aqui perante Vossas Excelências, é porque sou uma sobrevivente. Sobrevivi ao apedrejamento moral e físico, à proibição de estar na rua e nos espaços públicos mesmo à luz do dia, à mendicância e ao sepultamento como indigente, como acontece com a maioria das pessoas trans brasileiras sem que, nem mesmo neste momento tão extremo de morte, tenham merecido respeito ao nome e ao gênero com o qual se identificam.
Também sei que falo de um lugar de privilégio, seja porque sou advogada, seja porque a minha documentação civil reflete meu nome verdadeiro e minha identidade de gênero. A imensa maioria de travestis, transexuais e homens trans não teve as oportunidades que eu tive e estão à margem de qualquer tutela, reitero, morrendo apedrejadas e a pauladas em total violação ao principio constitucional fundamental da dignidade da pessoa humana.
Somente em 2016, 130 pessoas trans foram assassinadas barbaramente no Brasil, segundo dados divulgados pela organização Transgender Europe.
Não obstante estar hoje neste espaço e gozar de certa dignidade, não fui exceção no que concerne às agruras vividas pelas pessoas trans brasileiras: “bullying” no ambiente escolar, exclusão do seio familiar quando veio à tona minha identidade de gênero, exclusão do mercado de trabalho. Estas situações que vivi por ser pessoa trans trouxeram feridas intratáveis em minha alma.
Não realizei a cirurgia de transgenitalização por não considerar que uma parte do meu corpo me defina enquanto mulher e por não ter a mínima estrutura e coragem para realizar um procedimento tão invasivo que pode colocar em risco minha vida.
A versão institucional da transfobia também está presente. No estado de onde venho, no Paraná, não há uma definição clara da competência para o processamento do pedido de retificação judicial, o que acarreta consequentes declarações de incompetência e demora jurisdicional, que se debruça em detalhes técnico-processuais e posterga a concretização dos direitos fundamentais envolvidos.
Minoria que somos, vimos bater às portas deste tribunal para pedir mais uma vez que esta corte exerça o seu papel contra majoritário, como o fez o excelentíssimo ministro Roberto Barroso quando sustentou nesta tribuna em favor do reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo.
Não somos doentes, como pretende a classificação internacional de doenças. Não sofro de transtorno de identidade sexual. Sofre a sociedade de preconceitos historicamente arraigados contra nós e nossos corpos que ousam romper as barreiras das fortes e violentas normas de gênero que invisibilizam e apagam da sociedade a nossa experiência tida como abjeta.
Não há no nosso ordenamento jurídico regulação do procedimento de retificação de prenome e designativo de sexo para pessoas trans. Este vácuo normativo nos lança a toda sorte de interferências e condicionamentos para alcançar este direito, quando ele não nos é negado ao final de anos num processo judicial custoso, do ponto de vista emocional e financeiro.
Somos obrigadas a demonstrar certo padrão de feminilidade ou de masculinidade que varia ao sabor da subjetividade que estes conceitos encerram. Muitas vezes, se nos permitem mudar o prenome, não nos permitem mudar o designativo de sexo. Temos que obter um laudo médico que ateste termos um transtorno mental. Somos ouvidas pela justiça e pelo ministério público, também são ouvidas testemunhas, e nossas memórias e intimidade são escrutinadas através de fotografias que demonstrem sermos quem dizemos ser.
Tudo para provar que nossa identidade não é um delírio. Somos acusadas de querer prejudicar direitos de terceiros ou fugir de dívidas. Somos obrigadas a uma violenta intervenção em nossos corpos mesmo quando não desejamos. É esta uma vida digna, livre, e que recebe igual consideração?
Senhoras ministras, senhores ministros, hoje pode ser um dia histórico para a cidadania de travestis, transexuais e trangêneros.
E o que pretende o Grupo Dignidade, entidade que represento nesta tribuna, é a aplicação dos princípios constitucionais já diversas vezes invocados neste plenário desde o ano de 1988: o direito à igualdade, a uma vida livre de discriminação, ao reconhecimento da dignidade humana e à liberdade.
Não apenas a nossa constituição tem comandos suficientes para corrigir esse estado de coisas que oprime e que exclui.
Também no direito internacional dos direitos humanos há ricos fundamentos que permitem demonstrar a procedência do pedido inicial. Os princípios de Yogyakarta, estabelecem que a identidade de gênero é uma profundamente sentida experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento.
Sobre intervenções no corpo, gostaria de destacar a íntegra do princípio número 18: Nenhuma pessoa deve ser forçada a submeter-se a qualquer forma de tratamento, procedimento ou teste, físico ou psicológico, ou ser confinada em instalações médicas com base na sua orientação sexual ou identidade de gênero. A despeito de quaisquer classificações contrárias, a orientação sexual e identidade de gênero de uma pessoa não são, em si próprias, doenças médicas a serem tratadas, curadas ou eliminadas.
Portanto, Condicionar a retificação do registro civil das pessoas trans à cirurgia, portanto, viola também norma internacional ratificada pelo Brasil no ano de 2006.
Por fim, gostaria de destacar que, como experiência interna, o gênero da pessoa não pode depender de demonstração exaustiva de certo padrão de feminilidade ou de masculinidade para que se conceda a retificação do registro civil à pessoa trans. A autodeterminação deve prevalecer a análises altamente subjetivas a respeito de conceitos que a história nos mostra ter passado por radicais alterações ao longo dos anos.
Assim, também será um grande avanço se deste julgamento resultar tese que estabeleça como critério de demonstração do gênero assumido a mera declaração da pessoa perante a autoridade judicial ou registrador.
Nesse sentido, destaco que tramita no CNJ pedido de providências a Defensoria Pública da União requer que seja expedida orientação daquele órgão aos cartórios de registro civil para que processem os pedidos de retificação de que ora tratamos sem intervenção judicial e sem exigência de cirurgia de transgenitalização. O procedimento está suspenso até julgamento desta ação.
Como corolário do princípio da dignidade da pessoa humana, a desburocratização do procedimento de retificação do registro civil na forma ora pleiteada é medida que tornará exercível o direito à autodeterminação individual, retirando entraves que a todo momento se impõem à cidadania das pessoas trans em razão.
Assim, encerro pedindo a esta corte que julgue parcialmente procedente o pedido inicial para reconhecer o direito à retificação de prenome e designativo de sexo às pessoas trans sem a necessidade de cirurgia de transgenitalização, afastando as condicionantes propostas pela Procuradoria Geral da República, isto é, idade mínima de 18 anos, prova de que a pessoa vive como pertencendo ao sexo oposto pelo prazo mínimo de 3 anos e condição atestada “por um grupo de especialistas que avaliem aspectos psicológicos, médicos e sociais”.
Estou aqui, perante Vossas Excelências, hoje, não apenas por mim, mas sim por toda uma população de pessoas que ainda sofrem imenso constrangimento e tem sua dignidade violada diariamente. Negar a uma pessoa o direito ao nome e à expressão de sua identidade é negar o direito de existir. Requer-se às Vossas Excelências, portanto, que não nos neguem este direito. Muito obrigada.
Sinto que estou fazendo história, mas se estou aqui perante Vossas Excelências, é porque sou uma sobrevivente. Sobrevivi ao apedrejamento moral e físico, à proibição de estar na rua e nos espaços públicos mesmo à luz do dia, à mendicância e ao sepultamento como indigente, como acontece com a maioria das pessoas trans brasileiras sem que, nem mesmo neste momento tão extremo de morte, tenham merecido respeito ao nome e ao gênero com o qual se identificam.
Também sei que falo de um lugar de privilégio, seja porque sou advogada, seja porque a minha documentação civil reflete meu nome verdadeiro e minha identidade de gênero. A imensa maioria de travestis, transexuais e homens trans não teve as oportunidades que eu tive e estão à margem de qualquer tutela, reitero, morrendo apedrejadas e a pauladas em total violação ao principio constitucional fundamental da dignidade da pessoa humana.
Somente em 2016, 130 pessoas trans foram assassinadas barbaramente no Brasil, segundo dados divulgados pela organização Transgender Europe.
Não obstante estar hoje neste espaço e gozar de certa dignidade, não fui exceção no que concerne às agruras vividas pelas pessoas trans brasileiras: “bullying” no ambiente escolar, exclusão do seio familiar quando veio à tona minha identidade de gênero, exclusão do mercado de trabalho. Estas situações que vivi por ser pessoa trans trouxeram feridas intratáveis em minha alma.
Não realizei a cirurgia de transgenitalização por não considerar que uma parte do meu corpo me defina enquanto mulher e por não ter a mínima estrutura e coragem para realizar um procedimento tão invasivo que pode colocar em risco minha vida.
A versão institucional da transfobia também está presente. No estado de onde venho, no Paraná, não há uma definição clara da competência para o processamento do pedido de retificação judicial, o que acarreta consequentes declarações de incompetência e demora jurisdicional, que se debruça em detalhes técnico-processuais e posterga a concretização dos direitos fundamentais envolvidos.
Minoria que somos, vimos bater às portas deste tribunal para pedir mais uma vez que esta corte exerça o seu papel contra majoritário, como o fez o excelentíssimo ministro Roberto Barroso quando sustentou nesta tribuna em favor do reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo.
Não somos doentes, como pretende a classificação internacional de doenças. Não sofro de transtorno de identidade sexual. Sofre a sociedade de preconceitos historicamente arraigados contra nós e nossos corpos que ousam romper as barreiras das fortes e violentas normas de gênero que invisibilizam e apagam da sociedade a nossa experiência tida como abjeta.
Não há no nosso ordenamento jurídico regulação do procedimento de retificação de prenome e designativo de sexo para pessoas trans. Este vácuo normativo nos lança a toda sorte de interferências e condicionamentos para alcançar este direito, quando ele não nos é negado ao final de anos num processo judicial custoso, do ponto de vista emocional e financeiro.
Somos obrigadas a demonstrar certo padrão de feminilidade ou de masculinidade que varia ao sabor da subjetividade que estes conceitos encerram. Muitas vezes, se nos permitem mudar o prenome, não nos permitem mudar o designativo de sexo. Temos que obter um laudo médico que ateste termos um transtorno mental. Somos ouvidas pela justiça e pelo ministério público, também são ouvidas testemunhas, e nossas memórias e intimidade são escrutinadas através de fotografias que demonstrem sermos quem dizemos ser.
Tudo para provar que nossa identidade não é um delírio. Somos acusadas de querer prejudicar direitos de terceiros ou fugir de dívidas. Somos obrigadas a uma violenta intervenção em nossos corpos mesmo quando não desejamos. É esta uma vida digna, livre, e que recebe igual consideração?
Senhoras ministras, senhores ministros, hoje pode ser um dia histórico para a cidadania de travestis, transexuais e trangêneros.
E o que pretende o Grupo Dignidade, entidade que represento nesta tribuna, é a aplicação dos princípios constitucionais já diversas vezes invocados neste plenário desde o ano de 1988: o direito à igualdade, a uma vida livre de discriminação, ao reconhecimento da dignidade humana e à liberdade.
Não apenas a nossa constituição tem comandos suficientes para corrigir esse estado de coisas que oprime e que exclui.
Também no direito internacional dos direitos humanos há ricos fundamentos que permitem demonstrar a procedência do pedido inicial. Os princípios de Yogyakarta, estabelecem que a identidade de gênero é uma profundamente sentida experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento.
Sobre intervenções no corpo, gostaria de destacar a íntegra do princípio número 18: Nenhuma pessoa deve ser forçada a submeter-se a qualquer forma de tratamento, procedimento ou teste, físico ou psicológico, ou ser confinada em instalações médicas com base na sua orientação sexual ou identidade de gênero. A despeito de quaisquer classificações contrárias, a orientação sexual e identidade de gênero de uma pessoa não são, em si próprias, doenças médicas a serem tratadas, curadas ou eliminadas.
Portanto, Condicionar a retificação do registro civil das pessoas trans à cirurgia, portanto, viola também norma internacional ratificada pelo Brasil no ano de 2006.
Por fim, gostaria de destacar que, como experiência interna, o gênero da pessoa não pode depender de demonstração exaustiva de certo padrão de feminilidade ou de masculinidade para que se conceda a retificação do registro civil à pessoa trans. A autodeterminação deve prevalecer a análises altamente subjetivas a respeito de conceitos que a história nos mostra ter passado por radicais alterações ao longo dos anos.
Assim, também será um grande avanço se deste julgamento resultar tese que estabeleça como critério de demonstração do gênero assumido a mera declaração da pessoa perante a autoridade judicial ou registrador.
Nesse sentido, destaco que tramita no CNJ pedido de providências a Defensoria Pública da União requer que seja expedida orientação daquele órgão aos cartórios de registro civil para que processem os pedidos de retificação de que ora tratamos sem intervenção judicial e sem exigência de cirurgia de transgenitalização. O procedimento está suspenso até julgamento desta ação.
Como corolário do princípio da dignidade da pessoa humana, a desburocratização do procedimento de retificação do registro civil na forma ora pleiteada é medida que tornará exercível o direito à autodeterminação individual, retirando entraves que a todo momento se impõem à cidadania das pessoas trans em razão.
Assim, encerro pedindo a esta corte que julgue parcialmente procedente o pedido inicial para reconhecer o direito à retificação de prenome e designativo de sexo às pessoas trans sem a necessidade de cirurgia de transgenitalização, afastando as condicionantes propostas pela Procuradoria Geral da República, isto é, idade mínima de 18 anos, prova de que a pessoa vive como pertencendo ao sexo oposto pelo prazo mínimo de 3 anos e condição atestada “por um grupo de especialistas que avaliem aspectos psicológicos, médicos e sociais”.
Estou aqui, perante Vossas Excelências, hoje, não apenas por mim, mas sim por toda uma população de pessoas que ainda sofrem imenso constrangimento e tem sua dignidade violada diariamente. Negar a uma pessoa o direito ao nome e à expressão de sua identidade é negar o direito de existir. Requer-se às Vossas Excelências, portanto, que não nos neguem este direito. Muito obrigada.
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