Com
muita saudade e com muito amor pelo "querido velho", transcrevo, abaixo,
uma crônica escrita pelo meu saudoso mano Emir, publicada no jornal
Folha do Norte, em 08.08.1980.
Fisicamente, ele não tinha nada de excepcional. De estatura média, sempre foi magrinho, jamais havendo chegado sequer aos sessenta quilos de robustez. Mas o caráter, a força de vontade e o poder criativo que se agasalhavam naquele corpo franzino dificilmente se encontram reunidos na mesma pessoa. Naturalmente, feito de carne e osso como todo mundo,meu saudoso personagem exibia também as suas fraquezas ocasionais, como o gênio meio espoletado,e total submissão ao cigarro e outros defeitos menores. Mas as limitações se anulavam ante a grandeza individual e as façanhas existenciais com que ele se impunha à nossa emocionada admiração.
Contava-nos episódios de sua infância, passagem da juventude longínqua e naquelas histórias já se percebia que o esperto garoto e rapaz inventivo se transformariam, forçosamente, no adulto responsável e imaginoso. Atraído pelas vantagens que Henry Ford oferecia aos que se dispusessem a trabalhar como pioneiros em sua FordLandia, largou tudo em Itaituba, à margem esquerda do Tapajós, e veio tentar a sorte no Eldorado da época. Logo se afirmou pela competência e foi galgando postos na grande empresa, até ser transferido, em 1939, para Belterra, onde prosseguiu a escalada funcional.
Como instrução regular, fizera somente o curso primário por absoluta falta de condições para prosseguir os estudos. Isso não impediu,porém, que ele cultivasse o espírito a ponto de se tornar um dos maiores charadistas do Pará. Lendárias são algumas de suas realizações e eu me deleito em rememorar as princiapis. Com toda a experiência que hoje possuo do mundo, ainda não me é fácil entender como lhe foi possível sair-se tão bem daquelas dificílimas situações.
Uma tarde, ao voltar do trabalho, comunicou à família que fora convidado a ocupar uma vaga de intérprete dos americanos de Belterra. Aceitara a proposta, comprometendo-se a aprender o idioma inglês dentro de doze meses, no máximo. Ninguém pensou que ele brincava ou enlouquecera, pois todos conheciam sua vontade indomável quando tomava a decisão de executar uma tarefa. Comprou livros e, sozinho, estudava nas horas vagas, pois logo na primeira semana se desiludira de um professor local que prometera ensinar-lhe a enrolada língua. Formidável, emocionante foi o esforço daquele solitário aluno de si próprio para dominar as pronuncias e os mistérios de palavras complicadíssimas. Contudo, antes de se esgotar o prazo fixado, apresentou-se para o decisivo teste. Saiu do exame nomeado intérprete oficial da comunidade americana do Tapajós! E durante vários anos exerceu aquelas funções, falando inglês com desembaraço e correção tais que assombravam a quantos conheciam as circunstâncias em que se diplomara...
Resolveu, de repente, aprender datilografia. Comprou uma velha máquina e um método, mas logo percebeu que era grande a tentação de “colar”, de ir olhando os tipos enquanto se exercitava. Como solução imediata, fez um banquinho de madeira e recobriu o teclado: em pouco mais de um mês era um senhor datilógrafo. Também sozinho, apenas com o auxílio do talento que Deus lhe dera, conseguiu fazer tarrafas, empalhar cadeiras, encadernar livros, esculpir em cedro com serra tico-tico. Fabricava caleidoscópios lindíssimos, sabia remover defeitos de motores, entendia de encanação, eletricidade, relojoaria e conserto de rádios. Mas seu aprendizado de fotografia merece referências especiais.
Desencantado com a decadência de Belterra após sua venda para o governo brasileiro, decidiu vir embora dali, fixando residência em Santarém. Para sustentar a família, achou que era bom ser fotógrafo e, nada sabendo da profissão escolhida, passou a estudá-la. Adquiriu obras especificas,materiais, montou um laboratório modesto e dentro de uns seis meses estava em condições de se transferir para o novo domicílio. Como César, poderia dizer simplesmente: “Cheguei, vi e venci”. Há milhares de testemunhas.
Sempre com ilibada reputação, ainda desempenhou funções públicas, como administrador do velho Trapiche e tesoureiro da Prefeitura de Santarém. Alquebrado pela idade e com a missão inteiramente cumprida neste mundo, recolheu-se ao lar onde o alcançaria a impiedosa e longa enfermidade que haveria de levá-lo à paz eterna. Com edificante grandeza moral ele enfrentou a doença, sem um queixume, sem medo, em comunhão com Cristo a que se unira intimamente nos anos derradeiros. E morreu como um gigante e um santo, legando-nos luminosos e imperecíveis exemplos de uma vida superiormente aproveitada.
Lamartine disse que “não sentir vergonha do nome do pai é a nobreza dos plebeus”. A mim, porém, não basta isso: orgulho-me imensamente dele. Com a certeza de reencontrá-lo para sempre, presto-lhe hoje esta singela e comovida homenagem, muito aquém dos seus méritos. Eis o maior tipo inesquecível de minha vida: VIDAL BEMERGUY, meu pai.
MEU TIPO INESQUECÍVEL
A
velha e excelente revista “Seleções do Reader´s Digest” mantém uma
notável galeria literária de retratos humanos em que seus colaboradores
falam sobre pessoas que admiraram de forma especial. Hoje eu dou à
crônica o mesmo título usado pelo célebre periódico da imprensa
internacional, pois quero relembrar fragmentos de uma vida que me
influenciou profundamente. Ao longo da minha existência, cruzei com
criaturas maravilhosas, reverencio personalidades fulgurantes, conheço
gente que dignifica a humanidade por seus talentos e virtudes.
Entretanto, nenhum desses extraordinários filhos de Deus exerce sobre
mim o fascínio que se irradiava naquele cidadão.Tentarei justificar o
entusiasmo, aparentemente exagerado.Fisicamente, ele não tinha nada de excepcional. De estatura média, sempre foi magrinho, jamais havendo chegado sequer aos sessenta quilos de robustez. Mas o caráter, a força de vontade e o poder criativo que se agasalhavam naquele corpo franzino dificilmente se encontram reunidos na mesma pessoa. Naturalmente, feito de carne e osso como todo mundo,meu saudoso personagem exibia também as suas fraquezas ocasionais, como o gênio meio espoletado,e total submissão ao cigarro e outros defeitos menores. Mas as limitações se anulavam ante a grandeza individual e as façanhas existenciais com que ele se impunha à nossa emocionada admiração.
Contava-nos episódios de sua infância, passagem da juventude longínqua e naquelas histórias já se percebia que o esperto garoto e rapaz inventivo se transformariam, forçosamente, no adulto responsável e imaginoso. Atraído pelas vantagens que Henry Ford oferecia aos que se dispusessem a trabalhar como pioneiros em sua FordLandia, largou tudo em Itaituba, à margem esquerda do Tapajós, e veio tentar a sorte no Eldorado da época. Logo se afirmou pela competência e foi galgando postos na grande empresa, até ser transferido, em 1939, para Belterra, onde prosseguiu a escalada funcional.
Como instrução regular, fizera somente o curso primário por absoluta falta de condições para prosseguir os estudos. Isso não impediu,porém, que ele cultivasse o espírito a ponto de se tornar um dos maiores charadistas do Pará. Lendárias são algumas de suas realizações e eu me deleito em rememorar as princiapis. Com toda a experiência que hoje possuo do mundo, ainda não me é fácil entender como lhe foi possível sair-se tão bem daquelas dificílimas situações.
Uma tarde, ao voltar do trabalho, comunicou à família que fora convidado a ocupar uma vaga de intérprete dos americanos de Belterra. Aceitara a proposta, comprometendo-se a aprender o idioma inglês dentro de doze meses, no máximo. Ninguém pensou que ele brincava ou enlouquecera, pois todos conheciam sua vontade indomável quando tomava a decisão de executar uma tarefa. Comprou livros e, sozinho, estudava nas horas vagas, pois logo na primeira semana se desiludira de um professor local que prometera ensinar-lhe a enrolada língua. Formidável, emocionante foi o esforço daquele solitário aluno de si próprio para dominar as pronuncias e os mistérios de palavras complicadíssimas. Contudo, antes de se esgotar o prazo fixado, apresentou-se para o decisivo teste. Saiu do exame nomeado intérprete oficial da comunidade americana do Tapajós! E durante vários anos exerceu aquelas funções, falando inglês com desembaraço e correção tais que assombravam a quantos conheciam as circunstâncias em que se diplomara...
Resolveu, de repente, aprender datilografia. Comprou uma velha máquina e um método, mas logo percebeu que era grande a tentação de “colar”, de ir olhando os tipos enquanto se exercitava. Como solução imediata, fez um banquinho de madeira e recobriu o teclado: em pouco mais de um mês era um senhor datilógrafo. Também sozinho, apenas com o auxílio do talento que Deus lhe dera, conseguiu fazer tarrafas, empalhar cadeiras, encadernar livros, esculpir em cedro com serra tico-tico. Fabricava caleidoscópios lindíssimos, sabia remover defeitos de motores, entendia de encanação, eletricidade, relojoaria e conserto de rádios. Mas seu aprendizado de fotografia merece referências especiais.
Desencantado com a decadência de Belterra após sua venda para o governo brasileiro, decidiu vir embora dali, fixando residência em Santarém. Para sustentar a família, achou que era bom ser fotógrafo e, nada sabendo da profissão escolhida, passou a estudá-la. Adquiriu obras especificas,materiais, montou um laboratório modesto e dentro de uns seis meses estava em condições de se transferir para o novo domicílio. Como César, poderia dizer simplesmente: “Cheguei, vi e venci”. Há milhares de testemunhas.
Sempre com ilibada reputação, ainda desempenhou funções públicas, como administrador do velho Trapiche e tesoureiro da Prefeitura de Santarém. Alquebrado pela idade e com a missão inteiramente cumprida neste mundo, recolheu-se ao lar onde o alcançaria a impiedosa e longa enfermidade que haveria de levá-lo à paz eterna. Com edificante grandeza moral ele enfrentou a doença, sem um queixume, sem medo, em comunhão com Cristo a que se unira intimamente nos anos derradeiros. E morreu como um gigante e um santo, legando-nos luminosos e imperecíveis exemplos de uma vida superiormente aproveitada.
Lamartine disse que “não sentir vergonha do nome do pai é a nobreza dos plebeus”. A mim, porém, não basta isso: orgulho-me imensamente dele. Com a certeza de reencontrá-lo para sempre, presto-lhe hoje esta singela e comovida homenagem, muito aquém dos seus méritos. Eis o maior tipo inesquecível de minha vida: VIDAL BEMERGUY, meu pai.
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