domingo, 4 de setembro de 2016

A lenda do voto nulo, versão 2016

Todo ano de eleição, circulam correntes pela internet com saídas supostamente mágicas para forçar a política a ser exercida com moralidade. As duas principais balas de prata sugeridas nessas correntes são ninguém reeleger político nenhum e todo mundo votar nulo. 2016 não é nada diferente. Por isso, faço aqui uma nova versão de algo que escrevi em 2012.

Eu detesto correntes de internet. Embora a intenção seja sempre boa (só está contente com os representantes quem está muito por fora ou muito por dentro), falta noção a essas propostas.

Não que não sejam opções razoáveis individualmente. Se você conhece um candidato que nunca exerceu mandato e o acha sério, vale a pena tentar elegê-lo. Se você não achou nenhum candidato que preste, não há mal em anular seu voto. Mas é difícil combinar com gente suficiente pra não reeleger ninguém ou para todo mundo votar nulo.

Os políticos que você não quer ver eleitos sempre acabarão tendo uma razoável quantidade de votos, seja por popularidade ou por motivos menos nobres.

Não reeleger ninguém não garante melhor representação. Você pode trocar as moscas à vontade – se mantiver a iguaria que as atrai, tanto faz se as moscas são velhas ou novas. Verba de gabinete? Aumentar o próprio salário sem consultar o povão? Facinho cair nos velhos vícios dos outros, especialmente se o eleitor achar que terminou seu trabalho depois de apertar o confirma.

Mas é do voto nulo que eu queria falar aqui. Acho OK, desde que você saiba que isso implica em ter seu voto simplesmente desconsiderado.

O que elege um candidato são os votos válidos; quem votou nulo, branco ou não foi votar simplesmente lavou as mãos e deixou os outros escolherem. Em 2006, o ministro Marco Aurélio de Mello disse à Folha que voto nulo não anula eleição.

Ainda que você tope terceirizar a escolha do candidato a prefeito, estatisticamente é menos difícil encontrar um candidato que preste para vereador. Apenas na cidade de São Paulo se apresentaram 1.314 candidatos de 34 partidos – ou 24 por vaga, semelhante a um vestibular bem razoável. Pense a respeito e dê uma boa olhada. No mínimo, se você ajudar a eleger algum bom, ele pode ajudar a ficar de olho no prefeito cuja escolha você terceirizou.

Vamos analisar os votos nulos primeiro com matemática simples e depois com um caso concreto que virou corrente.

1) Matemática da quinta série

Digamos que São Longuinho do Passa Longe tenha 1.000 eleitores. Lá, vive o candidato Huguinho, com forte fama de ladrão. Também concorrem Zezinho, com fama de burro, e Luizinho, sem fama de nada e também sem votos.

Huguinho tem 200 apoiadores garantidos – entre amigos seus, gente que concorda com suas ideias e parentes de funcionários dele. Ele conta com a compra dos votos de outros 100 eleitores. Com isso, teria 30% dos votos da cidade. Sua eleição não está garantida, por isso ele bota carros de som na cidade tocando Wesley Safadão a todo volume e gritando seu nome. Isso pode lhe garantir talvez uns 50 votos de indecisos.

Um líder comunitário de Passa Longe, muito bem intencionado, resolve criar um movimento de voto nulo contra os maus políticos da cidade. Ele consegue convencer 300 eleitores a topar sua proposta. Excelente – é o número de eleitores que Huguinho, o grande motivador da campanha pelo voto nulo, tem garantidos. Chupa, Huguinho?

No dia da eleição, abrem-se as urnas. Este é o resultado:
Huguinho – 310 votos
Zezinho – 190 votos
Luizinho – 100 votos
Brancos – 100 votos
Nulos – 300 votos

Brancos e nulos não contam para o resultado de uma eleição. Contam os válidos.

Para vencer, em cidades pequenas como Passa Longe, o sujeito só precisa ter mais votos que os outros. Só onde há mais de 200 mil eleitores é preciso ter mais da metade dos votos para ganhar de primeira. Ou seja: numa capital, com a proporção de votos de Huguinho após a campanha do voto nulo, ele seria eleito no primeiro turno.

Se todos tivessem votado em alguém, Huguinho teria 31% dos votos. Com a ajuda de brancos e nulos, ele teve 51,7% dos votos válidos.

Parabéns aos criadores da campanha: deram a maior força para quem não queriam ver eleito.

2) Corrente

Andou circulando no Facebook uma corrente que louvava a consciência cívica do povo de Bom Jesus de Itabapoana, no norte do Rio de Janeiro. Eles teriam anulado quase nove em cada dez votos na eleição de 2008, forçando uma nova eleição.

Será que era isso mesmo? Claro que não. Nunca é bem assim. Por partes:

a) Sim, houve 89,2% de votos nulos na cidade. Isso porque os dois candidatos mais populares tiveram suas candidaturas indeferidas e concorreram amparados por liminares. Só que as liminares caíram antes da votação. Todos os votos para eles foram anulados, mas quem votou neles votou em alguém. Não acho que votar em candidatos indeferidos seja uma lição de cidadania, como quer a corrente.

b) O vencedor ficou sendo o terceiro colocado, que teve 6% dos votos. Isso não representa exatamente a vontade do eleitorado, embora em muitos lugares seja o que prevalece quando os candidatos são sucessivamente eliminados por conta de irregularidades. Em 2012, no Piauí, tomou posse uma vereadora eleita com apenas um voto, porque os eleitos antes dela foram cassados.

c) Inicialmente, ainda em outubro de 2008, a Justiça Eleitoral do Rio pensou em fazer novas eleições. Isso tem custo, que sai do bolso do contribuinte. Só que a Justiça Eleitoral é um caso raro no ambiente institucional. Ela é ligada ao Judiciário, mas tem funções dos três Poderes em época de eleição. Legisla, por meio das resoluções. Executa, administrando as eleições. E julga os casos de conflito. Assim, é bastante comum ela levar em conta o custo de administrar nova eleição para decidir conflitos, decidindo do jeito menos trabalhoso.

(Ainda que decidisse por uma nova eleição, não se iluda: os candidatos sairiam do mesmo ambiente político que gerou os candidatos cassados. Os partidos são os mesmos. Os grupos de influência são os mesmos. As oligarquias, também as mesmas. Mas enfim.)

d) Em dezembro de 2008, o Tribunal Superior Eleitoral se manifestou. O ministro Eros Grau decidiu que uma das candidatas bem votadas e impedidas de concorrer poderia receber os votos e ganhar a eleição. Apoiou-se numa tecnicalidade: tudo bem, suas contas foram rejeitadas, mas no momento do registro da candidatura ela não havia ainda sido condenada por isso.

e) Essa candidata que foi impedida de concorrer e depois eleita prefeita foi reeleita em 2012. Neste ano de 2016, três candidatos repetem suas candidaturas de 2012. Um dos impugnados há oito anos concorre a vice.

Mas então, o que fazer?

Se você decide escolher algum candidato, as opções são aquelas que você acha ruins. Se você não participa da escolha, outros escolhem por você.

A escolha é toda sua. É uma das muito poucas chances que você realmente tem de influir na política da sua cidade.

A única certeza é a de que o cargo disputado NÃO ficará vago e que o ocupante vai tomar decisões que afetam sua vida – ou pelo menos seu bolso. Seja quem for eleito, ele ou ela vai representar você – por menos que você goste da ideia.

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